Apesar de ser repetida há muitos anos, a afirmação de que 70% da alimentação vem do pequeno agricultor não é fruto de nenhum estudo ou levantamento, sendo muito difícil precisar quando e onde surgiu o mito dos 70%. A publicação estatística mais completa e confiável sobre a produção dos pequenos agricultores analisa, na verdade, os agricultores familiares, conceito definido pela Lei nº 11.326, de 2006. Elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Censo Agropecuário 2006 calcula a produção de alguns tipos de alimentos, sem, contudo, apresentar um percentual geral, como fez o parlamentar. Além disso, o documento estima a produção agrícola, não o seu uso na alimentação.
Segundo o caderno de agricultura familiar do Censo Agropecuário 2006, cujas pesquisas de campo se deram em 2007, os agricultores familiares responderam, naquele ano, por 87% da produção de mandioca, 70% do feijão, 67% do leite de cabra e 58% do leite de vaca. Possuíam 59% do rebanho suíno e 50% do plantel de aves. As demais variáveis pesquisadas pelo instituto apresentam índices bem inferiores, se destacando o milho (46%), o café (38%), o arroz (38%) e o trigo (21%).
Embora não sejam sinônimos de pequenos produtores, os agricultores familiares também não trabalham em grandes propriedades. Conforme a Lei nº 11.326, a definição de agricultor ou empreendedor familiar rural abrange os trabalhadores rurais com terras menores do que quatro módulos fiscais e que necessariamente administram a propriedade com os familiares – que devem ser a mão de obra predominante. Assim, um proprietário que tenha 10 trabalhadores assalariados em uma pequena porção de terra não tem o status de agricultor familiar. Outro critério estabelecido na legislação é que a renda da família deve ter um percentual mínimo oriundo das atividades econômicas do empreendimento.
Professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), Rodolfo Hoffmann dedicou um artigo à análise do índice, em 2014. Ele conclui que “a afirmativa de que ‘a agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos no Brasil’ não tem base e, pior, não tem sentido”. “O reconhecimento da importância da agricultura familiar no Brasil não precisa de dados fictícios”, escreve.
De fato, é inegável a contribuição dos agricultores familiares à produção rural brasileira. Basta constatar que dentre as culturas apresentadas no censo do IBGE, aquela que apresenta a menor participação desta categoria de produtores foi a soja, com 16% da produção – que já era, na época, um dos principais itens plantados e exportados pelos grandes monocultores. Além disso, ainda segundo o IBGE, trabalhavam em propriedades familiares 12,3 milhões de pessoas, ou 74,4% da mão de obra do campo.
Apesar de equivocada, a utilização do índice de 70% não é exclusividade do deputado Valmir Assunção. A reprodução do percentual tem se tornado uma tônica nas notícias oficiais. Os portais do governo federal reproduziram o índice, por exemplo, em 2011 e em 2015, sem citar fontes. O valor também foi utilizado pela presidente Dilma Rousseff no segundo turno das eleições de 2014 para criticar as políticas públicas do PSDB para o trabalhador rural.
O valor já foi citado até pelo ministro do Desenvolvimento Agrário, Pepe Vargas. Em nota à Agência Pública, o ministério informou que a agricultura familiar é um segmento estratégico para o desenvolvimento do Brasil, com importância na soberania alimentar e nutricional, na oferta de alimentos e na redução dos índices de inflação. A pasta elaborou um estudo a partir dos dados do Censo Agropecuário 2006 que reforça o valor dos produtores familiares em muitas regiões do país. No Amazonas, por exemplo, 99% de todo o feijão foi produzido por eles e em Santa Catarina, 90% do café. Decenal, uma nova edição do Censo Agropecuário começará a ser preparada pelo IBGE em 2016 e deverá ir a campo em 2017, segundo informou o instituto.