A principal crítica à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, cujo substitutivo foi aprovado na terça-feira (27) por uma Comissão Especial da Câmara, não é uma possível demora do Congresso em votar os futuros pedidos de criação de reservas, como afirmou o deputado federal Osmar Serraglio (PMDB-PR). O maior problema apontado por juristas, ativistas e movimentos sociais é transferir para o Congresso a decisão sobre na demarcação de terras indígenas e áreas quilombolas, defendida pelo projeto. A Constituição determina que isso seja feito pela União.
O entendimento de juristas é que a demarcação de terras indígenas é um procedimento administrativo. Trata-se de confirmar o direito dos povos indígenas a uma área, ou seja, um direito pré-existente. Por isso, são feitos estudos para definir se o pedido de demarcação se justifica ou não. Se for confirmado, a demarcação é feita. “O que se pretende com a PEC é fazer com que o Legislativo participe do processo administrativo de demarcação. É um absurdo total. A própria Constituição enumera as atribuições do Legislativo e não tem nada parecido com isso”, afirmou o jurista Dalmo Dallari, em entrevista ao Instituto Socioambiental (ISA), em 2013, antes de participar de uma audiência na Câmara. “A PEC é flagrantemente inconstitucional.”
A inconstitucionalidade da proposta também foi destacada pelo jurista Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai). “A Constituição não deu direito à demarcação. Deu direito à terra. A demarcação é só o jeito de dizer qual é a terra. Quando se coloca todo o direito sobre a demarcação, se retira o direito à terra, porque aí o direito à terra só irá existir se houver demarcação. É isso que está escrito na PEC: que não há mais direitos originários sobre a terra. Aí, muda a Constituição na essência do direito colocado”, disse, durante a mesma audiência na Câmara.
Na quarta-feira (28), a Fundação Nacional do Índio (Funai) divulgou uma nota em que se posiciona contra a PEC 215. Para o órgão, a proposta representa uma grave ameaça não apenas aos direitos indígenas, mas a toda a sociedade. “A PEC 215/00 propõe a transferência de responsabilidades sobre a demarcação de terras indígenas do Poder Executivo para o Legislativo, desrespeitando a Constituição de 1988, cujos direitos ali expressos representam uma conquista de todo povo brasileiro”, diz um trecho do documento. “Na prática, essa transferência significa que a definição sobre as terras onde os indígenas poderão exercer seu direito à permanência física e cultural está sujeita às maiorias políticas de ocasião. Sabemos que hoje esta maioria representa interesses pessoais e financeiros e atua para que não seja demarcada nenhuma terra indígena, como foi dito explicitamente por parlamentares membros da Comissão Especial, que ontem aprovou a PEC 215/00.”
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) preparou uma cartilha em que explica o que é a PEC 215 e indica quais são os problemas do projeto. O documento, disponível para download, mostra as modificações que a proposta pretende fazer na Constituição. No artigo 49, a demarcação de terras indígenas é inserida como uma das competências exclusivas do Congresso Nacional. Já no parágrafo 4º do artigo 231 é inserida a expressão “após a respectiva demarcação aprovada ou ratificada pelo Congresso Nacional”. No mesmo artigo é incluído ainda o parágrafo 8º, com o seguinte texto: “§ 8º Os critérios e procedimentos de demarcação das Áreas Indígenas deverão ser regulamentados por lei”. Com isso, uma futura lei deverá definir novos procedimentos para a demarcação, diferentes dos atuais – o que poderá dificultar ainda mais o processo, uma vez que a norma também será aprovada pelo Congresso.
A aprovação da PEC 215/2000 é defendida pela bancada ruralista. Vários dos parlamentares participantes da Comissão Especial da Câmara são ligados ao agronegócio e, por isso, contrários às demarcações de terras indígenas. Uma conversa interceptada por uma escuta da Polícia Federal apontou que um advogado ligado à Confederação Nacional da Agricultura (CNA) receberia R$ 30 mil para escrever o relatório da PEC – trabalho que deveria ser feito pelo deputado Osmar Serraglio. O caso está sendo investigado pelo Ministério Público Federal. De acordo com um estudo feito pelo ISA, a aprovação da proposta pode paralisar 228 processos de demarcação.