“As lacunas e as confusões da [CLT] (…) fazem com que o Brasil seja o campeão de ajuizamento de ações trabalhistas em todo o mundo.” – Rogério Marinho (PSDB-RN), deputado federal, no relatório da proposta de reforma trabalhista (PL 6787/16).
A tese de que o Brasil seria o campeão mundial em ações trabalhistas se espalhou recentemente com o debate promovido pela reforma trabalhista, em trâmite no Senado. A informação, repetida à exaustão por jornais como O Estado de S. Paulo e o Jornal da Band, provém de estudos feitos pelo sociólogo José Pastore, autor de artigos sobre o tema. No entanto, órgãos oficiais como o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) não confirmam que o Brasil seja o líder mundial neste quesito. Além disso, especialistas afirmam que a grande quantidade de processos não se deve a lacunas da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). A frase é considerada falsa pelo Truco – projeto de checagem da Agência Pública.
A assessoria de imprensa do deputado tucano foi procurada para indicar a fonte da informação usada na frase, mas não houve retorno. A OIT afirmou não possuir nenhum tipo de comparação entre o número de ações movidas no Brasil e no exterior ou mesmo entre outros países do mundo. A entidade disse ainda não endossar nenhum estudo deste tipo. O escritório da organização no Brasil entrou em contato com a sede, em Genebra, que reitera que, por conta das diferenças entre sistemas judiciais, seria extremamente difícil executar este tipo de pesquisa comparativa. O TST também afirmou à reportagem que não realiza este tipo de comparação.
A análise que atribui ao Brasil a liderança mundial em ações trabalhistas é de autoria do sociólogo José Pastore, professor aposentado da FEA-USP. O Truco entrou em contato com o especialista. Segundo ele, seu último artigo publicado sobre o tema data de 2004 e foi veiculado no jornal O Estado de S. Paulo. Nele, Pastore se refere a dados do ano anterior para justificar sua crítica. “Em 2003, tramitaram nas varas e tribunais 2.456.327 ações, computando-se os resíduos de anos anteriores. Na França e nos Estados Unidos foram cerca de 75 mil casos e, no Japão, 2.500”, afirma o professor no texto.
Pastore enviou, por e-mail, dados mais atuais do número de processos em diversos países. No entanto, ele não afirma qual a fonte dos números e não os reúne de forma sistematizada: o mais recente dado da Eslovênia é de 2003, enquanto o dos Estados Unidos é relativo a 2014, por exemplo. Além disso, o professor reuniu apenas números absolutos, o que dificulta a comparação, já que a população nos países mencionados é bastante diferente.
Outro fator que dificulta as comparações é a diferença entre os sistemas judiciários, trazida à tona pelo próprio professor. “Na Argentina, Brasil e Paraguai, a Justiça do Trabalho é especializada. Nos demais países são varas especializadas em direito do trabalho e previdência”, disse Pastore, por e-mail.
O advogado Otávio Pinto e Silva, professor de direito do trabalho na USP e sócio do escritório Siqueira Castro, avalia que é difícil fazer qualquer tipo de comparação entre o Brasil e outros países. “Nem todos os países têm Justiça do Trabalho. É muito comum que o judiciário tenha competência para assuntos civis, trabalhistas e penais ao mesmo tempo”, diz Silva. “Para este tipo de comparação você precisaria separar apenas as ações trabalhistas. No Brasil isso é muito mais fácil porque você tem a Justiça do Trabalho e o TST”, explica.
Falhas da CLT
De acordo com dados do TST, as Varas do Trabalho receberam, em 2016, 2.756.214 processos e julgaram 2.687.198. Já de janeiro a março de 2017, o total de casos novos no 1º grau é de 643.132 processos.
Segundo o último Relatório Geral da Justiça do Trabalho, publicado em 2016, a taxa de casos novos por 100 mil habitantes na Justiça do Trabalho vem crescendo. Em 2015, o índice foi de 1.708 casos a cada 100 mil pessoas, um aumento de 1,9% em relação ao ano anterior.
No entanto, ainda que os números sejam altos e estejam aumentando, as justificativas e alegações desses processos trabalhistas não estão necessariamente relacionadas a “lacunas e confusões da CLT”, como afirma o deputado Marinho em sua frase.
O TST possui um ranking que elenca as principais causas dos processos movidos em 2017. As seis primeiras posições são ocupadas por questões relativas ao pagamento de verbas devidas ao empregado. O assunto que mais aparece no ranking é relativo a verbas rescisórias: 29,9% das ações incluem esse tema. Em segundo lugar estão demandas relacionadas a horas extras, presentes em 8,5% dos processos. Depois, surge o FGTS, assunto que aparece em 6,2% das ações. Vale lembrar que um mesmo processo pode incluir mais de um tema, por isso o número de assuntos mostrado na tabela do TST é superior ao total de ações engendradas no período.
Os 20 assuntos mais citados nos processos trabalhistas em 2017
Assunto | Incidência |
Verbas Rescisórias | 29,9% |
Horas Extras | 8,5% |
FGTS | 6,2% |
Indenização por Dano Moral | 5,8% |
Adicional | 5,2% |
Intervalo Intrajornada | 4,5% |
Salário / Diferença Salarial | 4,0% |
Seguro Desemprego | 2,9% |
Sucumbência | 2,6% |
CTPS | 2,3% |
Indenização / Dobra / Terço Constitucional | 1,9% |
Rescisão Indireta | 1,4% |
Adicional Noturno | 1,3% |
Repouso Semanal Remunerado e Feriado | 1,3% |
Indenização por Dano Material | 1,2% |
Tomador de Serviços / Terceirização | 1,2% |
Reconhecimento de Relação de Emprego | 1,1% |
Competência | 1,1% |
Alteração Contratual ou das Condições de Trabalho | 0,9% |
Reintegração / Readmissão ou Indenização | 0,7% |
Fonte: Tribunal Superior do Trabalho
O professor Otávio Pinto e Silva analisou, a pedido do Truco, os dados do TST. Ele explica que o grande número de processos trabalhistas no Brasil se deve principalmente à falta de regulamentação de um artigo na Constituição que discorre sobre demissões. “No Brasil, não há controle sobre a demissão. O empregador não precisa justificar a dispensa, não é preciso ter autorização do sindicato, o Ministério do Trabalho não precisa autorizar, nada disso. Basta que o empregador pague as verbas rescisórias e deposite os 40% do FGTS.”, explica. “O artigo 7º da Constituição tem um inciso que aborda justamente a proteção a demissões. O que é necessário é uma lei complementar para regulamentar este artigo, que nunca foi feita”, esclarece o professor. Para ele, a ausência desta lei complementar é uma das principais causas do volume de ações trabalhistas no Brasil.
No artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal está previsto que é um direito do trabalhador a “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”. No entanto, ainda que a Constituição vigente date de 1988, esta lei complementar nunca foi promulgada. O professor destaca ainda que falhas das empresas, como omissão no controle de ponto e atraso no recolhimento do FGTS, contribuem para o grande número de processos. “Como as empresas não precisam de autorização de ninguém para dispensar, elas muitas vezes o fazem sem dinheiro para pagar os direitos trabalhistas. Isso empurra o trabalhador para a via judicial”, avalia.
A partir dos principais temas citados nos processos, a advogada Adriana Giori de Barros, especialista em direito trabalhista e sócia do escritório BRG Advogados, elenca outros motivos que explicam o volume de processos trabalhistas no país. Para ela, uma das razões seria o aumento da divulgação dos direitos trabalhistas na mídia. “Consequentemente aumenta o conhecimento da classe trabalhadora desses direitos, o que faz com que o Judiciário seja mais acionado”, diz. Para ela, a principal razão do aumento no número de processos é a crise econômica. “O grande número de demissões ocorridas, muitas vezes em empresas de pequeno porte que não conseguem sequer pagar as verbas rescisórias dos seus funcionários, estimula o crescimento do número de ações”, explica a advogada.
Conclusão
Não há estudos ou pesquisas que apontem a liderança do Brasil no número de processos trabalhistas. Organizações como a OIT e TST não possuem dados comparativos entre países e não endossam comparações e estudos feitos por outras instituições.Os dados apresentados pelo professor José Pastore não são suficientes para comprovar que o Brasil é “campeão de ajuizamento de ações trabalhistas em todo o mundo”, como afirma o deputado Rogério Marinho. As informações reunidas pelo professor não estão sistematizadas, não abrangem todos países e não são relativas ao mesmo período. Também não é possível verificar se todos os dados reunidos pelo professor foram coletados segundo a mesma metodologia, o que seria necessário para obtenção de dados comparativos. O professor da USP Otávio Silva e Pinta destaca ainda que as diferenças nos sistemas judiciários impossibilita esse tipo de comparação. Além disso, especialistas consultados pela reportagem analisaram os dados do TST e avaliaram que as “lacunas e confusões da CLT” mencionadas pelo deputado não são responsáveis pelo grande volume de processos no Brasil. A maioria das ações é relacionada ao pagamento de verbas rescisórias, como FGTS e horas extras, de acordo com levantamento do TST. Para os advogados procurados pelo Truco, o número de ações aumenta por conta de fatores alheios à CLT, como o agravamento da crise econômica, a falta de regulamentação de artigos específicos da Constituição, a popularização de informações sobre direitos trabalhistas na mídia e o descumprimento das leis trabalhistas por parte de algumas empresas.
Assim, o Truco concede à frase o selo “Falso”. A análise dos dados obtidos junto ao TST, avaliados por fontes independentes procuradas pela reportagem, mostra que é impossível comparar o Brasil a outros países em termos de ações trabalhistas. Além disso, o volume de processos não está relacionado a lacunas da CLT, como afirma o deputado.