Enquanto o governo federal defende a construção de parâmetros de uma inteligência artificial (IA) “brasileira e soberana”, grupos de lobby estrangeiros que representam big techs têm atuado para influenciar o Projeto de Lei (PL) 2.338/2023, em tramitação na Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial (CTIA), que tenta criar o Marco Legal da IA. Nesta semana, o futuro dessa tecnologia no Brasil foi discutido em duas audiências públicas na CTIA e na Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação e Informática (CCT), no Senado, com debates que seguiram caminhos opostos.
Na CCT, a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTIC), Luciana Santos, defendeu que o Brasil passe a “dominar” a tecnologia e a desenvolver suas próprias soluções baseadas em IA, de forma independente das big techs. Esse seria o objetivo principal do Plano Brasileiro de IA (PBIA), lançado em julho. “Direitos fundamentais podem ficar ameaçados se a gente não tiver uma autonomia que responda às leis brasileiras”, disse em entrevista à Agência Pública. Santos ainda defendeu que “regulamentação e governança” são necessárias para responsabilizar quem usa a IA “para o mal”.
Poucas horas depois, na CTIA, os destaques foram as falas de dois convidados internacionais, integrantes de entidades de lobby das big techs que atuam em Washington (EUA). Courtney Lang, vice-presidente de política, confiança, dados e tecnologia no Conselho da Indústria de Tecnologia da Informação (ITIC, na sigla em inglês), fez sugestões à regulação e até citou artigos do PL que deveriam ser alterados ou removidos. O grupo tem Google, Meta, Apple, Microsoft e Amazon entre os membros.
Lang discorda, por exemplo, de artigos que estabelecem direitos aos usuários, pois eles “parecem indicar que há riscos significativos aos direitos humanos ao longo do ciclo de vida da inteligência artificial, o que, a meu ver, nem sempre é o caso”. Também afirmou que a imposição de obrigações aos desenvolvedores de sistemas de IA de alto risco poderia criar uma estrutura “confusa”. A ITIC enviará representantes ao Brasil na semana que vem.
A defesa de uma regulação principiológica em lugar de regramentos restritos tem sido feita pelas gigantes do setor e pelo atual presidente da CTIA, senador Marcos Pontes (PL-SP), que convidou os representantes das big techs. Além de aparecer na fala de Lang, a proposta se repetiu na fala de Matthew Reisman, diretor de privacidade e política de dados no Centro de Liderança em Política de Informação (CIPL, na sigla em inglês), que tem Google, Meta, Apple, Microsoft, Amazon, TikTok e X entre os membros. Ele destacou que a categorização de riscos feita pelo PL deveria ser mais “flexível”.
A audiência ainda contou com a participação de convidados nacionais, como Christina Aires, advogada da Confederação Nacional da Indústria (CNI); Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio); e Luis Fernando Prado, advogado e professor da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Prado também é conselheiro da Associação Brasileira de Inteligência Artificial (Abria), o que não foi citado na audiência.
“Foi uma audiência muito focada em posições muito similares, que propõem a queda dos poucos instrumentos de participação social e de transparência que o atual projeto de lei possui, por algumas organizações que têm interesses muito específicos em uma não regulação da inteligência artificial”, avaliou Tarcizio Silva, pesquisador na Fundação Mozilla e doutorando na Universidade Federal do ABC (UFABC).
Ele considera que os direitos questionados por Lang são “básicos” e devem ser mantidos no texto. Entre eles, o direito de contestar decisões feitas por IA e de não discriminação. “O medo é que realmente o projeto seja desmantelado”, concordou Paula Guedes, do Grupo de Inteligência Artificial da Coalizão Direitos na Rede, que criticou a falta de representantes da sociedade civil na audiência. Ela considera que, como está, o PL já está pronto para ser votado e permite “inovações responsáveis”.
Acatar ou não as sugestões caberá ao relator, senador Eduardo Gomes (PL-TO), que não esteve presente na audiência. O PL 2.338/2022 foi apresentado em dezembro de 2022 pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e está em tramitação na CTIA desde agosto de 2023. O prazo final da comissão já foi prorrogado três vezes por pressão do setor e falta de consenso sobre o texto.