Após um relatório encomendado pelo Ministério das Mulheres mostrar um aumento no número de vídeos publicados desde 2022 na “machosfera”, termo que define comunidades online de homens que alimentam o desprezo contra as mulheres, a ministra Cida Gonçalves reforçou a necessidade de regulamentar as redes sociais.
“Nós não podemos ter uma legislação para as redes [de televisão] e jornais livres e não ter outra para as redes que estão colocadas aí e que, na maioria das vezes, têm maior audiência que muitos dos nossos canais, que têm programas educativos e informativos. Isso o Brasil precisa discutir”, afirmou Gonçalves, em evento de lançamento do estudo, nesta sexta-feira (13).
Os pesquisadores analisaram 76 mil vídeos de mais de 7,8 mil canais e identificaram 137 canais com conteúdo misógino. Juntos, eles somam 3,9 bilhões de visualizações, 105 mil vídeos publicados e, em média, 152 mil inscritos. Os dados estão no relatório Aprenda a evitar ‘este tipo’ de mulher: estratégias discursivas e monetização da misoginia no YouTube, elaborado pelo Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais (NetLab), vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“A misoginia não é algo novo, mas vem tomando novos contornos por conta da internet”, afirmou uma das coordenadoras da pesquisa, Luciane Belin. A pesquisadora do NetLab explicou que entre os tipos de conteúdo identificados nos títulos dos 76 mil vídeos, o mais prevalente (42%) é o que incentiva o desprezo e uma insurgência masculina contra as mulheres. Também foram comuns vídeos que anunciavam técnicas de sedução e manipulação de mulheres (21,5%), além de vídeos antifeministas (6,8%) ou com defesas de papeis de gênero (5%).
“A forma de expressão de misoginia que mais aparece é a tentativa de controlar as mulheres, inferiorizar e promover a submissão feminina”, acrescentou Belin. Alguns influenciadores, por exemplo, incentivam que homens baixem aplicativos para espionar as redes sociais e acompanhar os movimentos de suas companheiras.
Na reunião, a ministra reforçou que o discurso online tem efeitos práticos no dia a dia de meninas e mulheres. “O que significa o crescimento dessa misoginia para a nossa realidade? Nós temos tido o aumento da violência contra a mulher, o aumento do preconceito, o aumento da violência sexual contra crianças de 0 a 9 anos. É um processo de naturalização daquilo que não é natural, que é a violência”, afirmou.
No Congresso, a proposta mais avançada de regulamentação das redes é o PL 2630/2020, conhecido como PL das Fake News. O projeto de lei, de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), foi aprovado ainda em 2020 no Senado, mas teve sua tramitação paralisada na Câmara dos Deputados após pressão das big techs. Em junho de 2024, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), criou um grupo de trabalho para analisar o projeto em até 90 dias, mas os parlamentares integrantes não produziram relatórios.
Além do debate no Congresso, o Supremo Tribunal Federal (STF) está julgando desde o fim de novembro a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que hoje isenta as plataformas de responsabilidade pelos conteúdos que nelas circulam.
Ódio contra mulheres também impulsiona lucro
Além de mostrar a prevalência do discurso de ódio contra as mulheres no YouTube, o levantamento do NetLab também revelou que 80% dos canais misóginos utilizam estratégias de monetização, como anúncios, superchat — quando uma pessoa paga para ter seu comentário destacado em uma live — pedidos de doações e venda de produtos.
Para a pesquisadora e fundadora do NetLab, Rose Marie Santini, esses canais têm promovido a “a criação de uma demanda onde a misoginia vira um produto a ser comercializado”. “Se constituiu um mercado de conteúdo misógino no Brasil, isso virou um negócio, e a plataforma participa desse negócio”, afirmou. Ela também explicou que, em geral, conteúdos monetizados tendem a ser mais distribuídos pelo algoritmo do YouTube a novos públicos.
Questionada pela Agência Pública sobre como as plataformas reagem quando o NetLab publica suas conclusões em estudos como o citado, Santini afirmou que as empresas ou não respondem ou tentam relativizar os números, afirmando que se trataria de um contingente pequeno de conteúdos que circulam em suas redes.
“[As empresas] se protegem com essa fala de transparência, não permitindo que a sociedade conheça o tamanho do problema”, explicou ela. A necessidade de publicar relatórios trimestrais de transparência e de identificação de conteúdos impulsionados e publicitários estava prevista na última versão do PL 2630.