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Análise

O aumento do ‘datapovo’ demonstra o efeito da formação social de crenças

Explicamos os métodos de fixação de crenças usados na desinformação digital

Análise
1 de outubro de 2022
10:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Desde o começo de julho, as menções ao termo “Datapovo” aumentaram mais de dez vezes por semana nos 121 grupos de Telegram monitorados pelo Projeto Sentinela. Saltaram de 26 menções na primeira semana observada (3 a 10 de julho) para 108 na última semana, no período de 21 a 27 de setembro.  

Gráfico demonstra as menções ao termo ''Datapovo'' entre 3 de Julho à 27 de Setembro.

Como sabemos, o termo é um trocadilho com o instituto de pesquisa Datafolha, mas esse seria de fato a real maneira de medir a vontade “do povo”. O aumento do uso da expressão nos leva à pergunta: qual é o efeito prático de uma crença?

Essa indagação nunca foi tão atual quanto agora. Segundo Charles Sanders Peirce, a consequência prática da verdade são as crenças mobilizadas na forma de opinião compartilhada. Ou seja, do ponto de vista pragmático é a crença que delineia a formação de opinião – não a verdade. Quando informações verificadas como falsas seguem sendo compartilhadas em conexões de redes sociais, fica nítido que é a intenção de se fixar uma crença, não a busca pela verdade, que impulsiona a ação de compartilhamento. Mas, afinal, por que algumas crenças persistem, mesmo quando confrontadas com evidências em contrário?

Os quatro métodos

São quatro os métodos de fixação de crenças: tenacidade, autoridade, a priori e científico. No método “tenacidade”, que é o mais rudimentar, aferra-se obstinadamente às próprias crenças, ignorando evidências em contrário, tal como se observa em bolhas ideológicas em conexões de redes sociais online.

No método “autoridade”, a crença é coagida por uma instituição reguladora, como a família, a igreja ou o partido político. É o que se observa quando um político ou celebridade emite uma opinião controversa e esta é compartilhada massivamente em conexões de redes sociais online.

No método a priori, tende-se a acreditar naquilo que se assemelha às nossas crenças precedentes porque isso nos parece mais razoável, tal como ocorre com algumas teorias de conspirações que parecem ser logicamente plausíveis.

Já  o método científico, que se encontra em constante aprimoramento, prioriza as evidências em detrimento de crenças arraigadas. É o método mais sofisticado de formação de crenças, mas historicamente o de menor alcance social.

Os métodos tenacidade, autoridade e a priori são particularmente relevantes para se compreender o fenômeno contemporâneo da desinformação, uma espécie de distorção ética da informação porque simula efeitos de veracidade independente de sua ancoragem no real.

Assim, a disseminação de desinformação é pragmaticamente orientada, pois visa a formação de opinião como efeito prático da crença que mobiliza, sobretudo em conexões digitais.

Em contexto eleitoral, o efeito prático da desinformação é reforçar uma crença que possa se traduzir em um voto na urna. 

Quando autoridades políticas declaram desconfiança em relação a instituições responsáveis pelo processo eleitoral, corrobora-se crenças arraigadas a despeito de evidências em contrário. Tal desconfiança tende a reforçar crenças semelhantes pela combinação dos métodos tenacidade, autoridade e a priori, que são potencializados pelas atuais condições técnicas de produção, distribuição e propagação de desinformação em conexões digitais. 

Sabemos que 81% da população brasileira acessou a internet em 2021. Embora um terço da população brasileira não tenha acesso à internet, 98% da classe A acessou a internet em 2021, enquanto foram 66% das classes D e E. A pesquisa do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Desinformação constatou ainda que 70% dos usuários buscaram informações ou serviços públicos na internet, o que enfatiza o papel das conexões digitais na formação contemporânea da crença.  

Um dos temas que tem mobilizado a atenção dos pesquisadores do MediaAção, o grupo de pesquisa que eu coordeno na UFMG, é a disputa de sentidos em torno das pesquisas eleitorais, mais precisamente como a expressão “Datapovo” tem sido frequentemente utilizada por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro para desqualificar pesquisas eleitorais realizadas com base em métodos científicos. 

A desinformação relacionada à expressão “Datapovo” é disseminada em conexões de redes sociais online prioritariamente por meio de imagens de apoiadores do presidente nas ruas. O intuito é demonstrar que as pesquisas eleitorais não refletem a realidade – embora, conforme explicou em entrevista ao Estadão o coordenador de opinião pública da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep), João Francisco Meira, “a crença de que o volume de participantes dessas manifestações é representativo sobre as urnas é equivocada porque não considera a amostra utilizada”.

Só que a ponderação de Meira remete ao método científico, de pequeno alcance social, mas a crença que delineia o compartilhamento de tais imagens online remete à combinação dos métodos tenacidade – desprezo por evidências em contrário –, autoridade, – endossa a opinião do presidente e outros líderes políticos –  e a priori –uma imagem vale mais que mil palavras. São métodos de fixação de crença de grande alcance social, ainda que mais rudimentares.

O mesmo procedimento pragmático de fixação de crenças é repetido e potencializado em vários episódios semelhantes associados à expressão “Datapovo”. O aumento da expressão no Telegram é apenas a ponta do iceberg.

Esses episódios reforçam a crença cujo efeito prático será a desconfiança em relação ao processo eleitoral se eventualmente o candidato Jair Bolsonaro não for reeleito.

Em 18 de setembro, por exemplo, o presidente Jair Bolsonaro disse a apoiadores em Londres: “Eu digo, se eu tiver menos de 60% dos votos, algo de anormal aconteceu no TSE, tendo em vista obviamente o Datapovo que você mede pela quantidade de pessoas que não só vão nos meus eventos, bem como nos recepcionam ao longo do percurso até chegar ao local do evento”.  

O efeito prático de tal crença ocorreu dois dias depois, quando um apoiador do presidente Jair Bolsonaro agrediu com chutes e socos um pesquisador do instituto Datafolha. Esse episódio sinaliza que a desinformação atrelada à expressão “Datapovo” é pragmaticamente orientada para reforçar a crença de que o processo eleitoral no Brasil é fraudulento e o efeito prático dessa crença tende a ser nefasto à sociedade democrática. 

É no contexto eleitoral que o fenômeno contemporâneo da desinformação ecoa com mais amplitude em conexões digitais e mobiliza esforços variados. Mas o alcance de tais esforços esbarra na capacidade de afetação social dos métodos de fixação de crenças. Notadamente, baseiam-se no método científico, de pequeno alcance, razão pela qual se faz necessário ampliar o alcance social de ações de divulgação científica e de letramento midiático para o enfrentamento mais preciso do complexo fenômeno da desinformação.

É o que muitos de nós estamos tentando fazer, em parceria com instituições. O Tribunal Superior Eleitoral, por exemplo, criou o sistema de alerta da desinformação, canal que possibilita o envio de denúncias de violações de termos de uso de plataformas digitais, especificamente relacionadas à desinformação. Parceiro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no Programa de Enfrentamento à Desinformação no âmbito da Justiça Eleitoral, o Senado disponibiliza informações úteis para o cidadão participar do combate a essa prática através do serviço “Senado Verifica: Fato ou Fake?”. A Universidade Federal de Minas Gerais também é parceira do TSE no combate à desinformação, através de seu Programa UFMG de Formação Cidadã em Defesa da Democracia. Várias iniciativas de pesquisa e extensão da UFMG integram este programa, incluindo o nosso grupo de pesquisa (CNPq/UFMG) MediaAção: Mídia, Semiótica e Pragmatismo.

São esforços inéditos em sua abrangência, e que ainda estão para demonstrar se estamos preparados, enquanto sociedade, para enfrentar a desinformação que já marcou esse período eleitoral.  

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