No começo deste ano, quando o juiz Mario Carroza, foi encarregado de investigar a morte de Salvador Allende, uma das suas primeiras diligências foi pedir o expediente judicial de 1974 que determinou em 1974 que ele havia se suicidado.
Mas a Promotoria Militar negou ter o original.
Carroza seguiu então as pistas de um anúncio que rodou a internet oferecendo o expediente em troca de $ 2 milhões de pesos (cerca de 6.700,00 reais).
O anunciante era proprietário de uma empresa de demolições, e dizia tê-lo encontrado quando demolia a casa de um ex-relator da justiça militar.
Uma semana depois desta cópia ser entregue ao empresário, o promotor militar que investigou o caso, Joaquín Earlbaum, apareceu na sala do ministro Carroza com outra cópia. O expediente original, no entanto, jamais foi encontrado.
O expediente inclui elementos que podem trazer luz a um dos fatos históricos mais controversos do século XX.
Entre eles, um inventário de 1973 entitulado “Relação de espécies encontradas pelo pessoal militar no local do suicídio”. Ele enumera bens como a espada de O’Higgins, o fuzil AK-47 presenteado por Fidel Castro, com o qual Allende teria se matado, seus óculos Mustang, seu relógio Jaegger LeCoultre e os dois cascos das balas que perfuraram sua cabeça.
A maioria destes objetos se encontram extraviados; o juiz Carroza mandou um ofício ao Exército, que deveria tê-los sob custódia, pedindo esclarecimentos.
O mesmo expediente contém também as primeiras declarações recolhidas entre 1973 e 1974. Uma delas é a do ex-ministro chileno de Defesa, José Tohá. Outra, a primeira declaração judicial do médico Patricio Guijón.
A testemunha oficial
Patricio Guijón era o menos político dos médicos pessoais de Salvador Allende. Também era o mais distraído e ingênuo. Foi o único da equipe que não se exilou depois do golpe de Estado; seguiu vivendo na sua casa, na cidade de Vitacura.
Durante a jornada de terça-feira, 11 de setembro de 1973, permaneceu trabalhando mesmo depois do presidente Allende ter liberado seus colaboradores, em virtude da proximidade de um ataque aéreo.
Guijón se lembra de que estava para sair quando fez algo “realmente absurdo”: voltou para buscar uma máscara de gás, que levaria como recordação para seu filho mais velho.
Segundo seu relato, estava nisso quando abriu as portas do salão Independência, onde Allende havia se fechado, e o viu em instantes precisos: sentado en uma cadeira, de costas para a parede, o presidente segurava um fuzil cujo cano pressionava seu queixo. Em um disparo seco, parte do crânio e do cérebro voaram pelos ares.
Seu depoimento, transmitido pela televisão pública em setembro de 1973, esclareceu dúvidas, mas também despertou suspeitas. Mas desde então Patricio Guijón virou a testemunha ocular da morte de Salvador Allende.
Mas, segundo a investigação do juiz Carroza, Guijón não foi nem de longe o único que viu Allende morto depois do tiro ou dos tiros. Tampouco foi o único que disse haver presenciado o momento exato em que aparentemente aconteceu o disparo.
Disparos secos
Apesar de haver quase cinquenta pessoas no La Moneda, poucas assistiram ao momento em que Allende se despediu de seus colaboradores mais próximos e se encerrou no salão da Independência. Menos ainda são os que sobrevivem para contar.
Um deles é o ex-detetive da Polícia de Investigações, Gustavo Basaure Barrera.
Basaure foi um dos 17 policiais que naquele 11 de setembro permaneceram leais junto a Allende no La Moneda. Resistiram ao assalto em condições muito desvantajosas, em um gesto mais de honra que eficaz.
Às duas da tarde, seu superior o informou que o presidente havia determinado que saíssem em fila indiana pela porta da rua Morandé.
Não havia muitas opções.
O La Moneda ardia em chamas, o ambiente era irrespirável e a maior parte do grupo já estava reunido naquele local. Então Basaure, que permanecia sentado em um corredor do segundo andar do palácio junto ao seu companheiro Pedro Valverde, viu Allende se despedindo e se fechando no salão Independência, afirmando que tomaria alguns minutos para meditar.
A três ou quatro metros da porta, o policial escutou “dois disparos secos, sem estampido”, provenientes do salão.
Então, diz, três ou quatro homens chegaram correndo, e abriam a porta do salão. Um deles saiu gritando que o presidente havia se matado.
-Eu não entrei no salão, mas como a porta ficou entreaberta eu vi, apesar de estar escuro, que o presidente estava em uma cadeira e tinha uma ferida no pescoço, apesar de não parecer ter sangue. Em cima estava um fuzil.
Pedro Valverde Quiñones, o companheiro de Basaure, presenciou a cena com maior detalhes, mas não vive para relatá-la.
Uma posição tanto ou mais privilegiada teve o também falecido policial David Garrido Gajardo.
Em 1987, em uma crônica da revista Análisis, o já ex policía Garrido recordou a cena nos seguintes termos:
– Estávamos no fundo do corredor, quase em frente ao living privado do presidente, quando o vi se aproximar com o superintendente Enrique Huerta, o médico Patricio Guijón e outras pessoas, que ficaram na porta quando ele entrou. Então escutei a voz do presidente que disse forte: ‘Allende não se rende’, e de imediato, dois ou três tiros. O médico disse: ‘O doutor se matou’, entrou na sala de despacho e, desde a minha posição, vi o presidente sentado, com a cabeça para trás. Havia sangue no muro.
Basaure não se lembra ter visto o médico Guijón na passagem do segundo piso, paralelo à rua Morandé. E, como muitos ex-policiais presentes neste dia no La Moneda, ele duvida que o médico tenha regressado para pegar uma máscara anti-gás.
–Não tem nenhuma lógica –diz o policial, lembrando o temor que reinava no ambiente – Nestas circunstâncias, quem iria pensar em voltar para buscar um souvenir?
O primeiro da fila
Quando se escutaram os disparos no salão Independência, os primeiros leais que resistiram junto a Allende já haviam alcançado a rua.
Mas contra as ordens do presidente, eles não eram liderados pela sua secretária Miria Contreras, mas pelo policial Eduardo Ellis Belmar. De bigodes espessos e pele grossa, mal abriu a porta e pôs um pé na rua, Belmar foi agarrado por um soldado, que o utilizou como escudo humano.
Imediatamente depois, saiu Miria Contreras.
Desde a cidade de La Reina, onde vive, o ex-detetive Ellis sustem que nenhum militar conseguiu entrar no La Moneda pela porta da rua Morandé antes que Allende se matasse.
– Quando eu recebi a notícia, os militares ainda não haviam entrado em La Moneda. Esperaram que descêssemos todos pela escada que conectava a passagem do segundo andar à porta –diz.
A mesma certeza tem o chefe da guarda presidencial de Investigações, Juan Seoane Miranda, que deixou o La Moneda depois que soube da morte de Allende.
Seoane não tem dúvida que Allende se suicidou:
-Dou fé que os soldados não haviam entrado ainda. Estávamos somente nós.
As versões dos ex-policiais coincidem. Porém, a maioria são amigos e têm o hábito de reunir-se de tempos em tempos. Encontraram-se, por exemplo, pouco antes de ser intimados a fazer declarações diante o juiz Carroza.
A única versão discordante é a de Carlos San Martín que, segundo um dos seus antigos companheiros, deu indícios da presença de militares no momento da morte de Allende.
Instante fatal
Em setembro de 1984, quando sua versão era questionada pela esquerda chilena, Patricio Guijón deu uma entrevista à revista Cauce na qual invocou a cena.
Ele disse que entrou no salão e tomou o pulso do presidente, constatando sua morte. Há aqui uma incoerência: o crânio de Allende estava aberto e destroçado. A massa encefálica estava à vista. Pra que tomar o pulso?
Logo, diz ele, em um ato instintivo, tomou o fuzil AK-47 que estava sobre o corpo de Allende e o colocou ao lado.
Nestes dez quinze minutos em que permaneceu no salão até a chegada dos militares, Guijón não se lembra de ter visto nem escutado mais ninguém. No entamto são várias as testemunhas que dizem ter visto o cadáver de Allende.
Estas contradições levantam questões sobre a tese do suicídio.
Esse ano, o jornalista chileno Camilo Taufic defendeu que Allende tentou se suicidar com uma pistola, mas ficou apenas gravemente ferido. A tarefa teria sido completada pelo superintendente do palácio, Enrique Huerta.
Laudos contraditórios
A exumação feita no final de maio tem o objetivo de constatar a identidade do corpo. Depois disso, a equipe liderada pelo médico forense espanhol Francisco Etxeberría terá a tarefa de contrastar o resultado com as perícias originais.
Dois laudos realizados em 1973 foram publicados em 2000 no livro La Conjura, de Mónica González: a autópsia e uma perícia balística.
Mas até agora, a análise de ambos pelo Serviço Médico Legal, a cargo do ministro Carroza, trouxe surpresas.
A perícia balística foi realizada por funcionários de Investigações que se reuniram em La Moneda na tarde de 11 de setembro.
Concluíram que “a morte do senhor Allende Gossens foi consequência de uma ferida de bala que tem sua entrada na região do queixo e a sua saída na região parietal esquerda. Não se descarta a possibilidade de que se trate de duas trajetórias correspondentes a dois disparos de rápida sucessão”.
O recente estudo do Serviço Médico Legal acusou uma “discordância a respeito da trajetória intracraneana do projétil disparado” nos dois laudos.
Mas será apenas depois de revelados os detalhes de exumação que a equipe poderá resolver as discrepâncias entre ambos os laudos, para enfim encerrar um capítulo da história que se arrasta há quase quatro décadas.