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Reportagem

Em cinco anos, 4,3 milhões de armas nas ruas

Nos últimos 5 anos foram comercializadas 4,3 milhões de armas no Brasil – somente de fabricantes nacionais. Número é bem maior do que se estimava. Indústria não revela produção.

Reportagem
27 de janeiro de 2012
08:11
Este artigo tem mais de 12 ano

Em outubro do ano passado, o governo federal anunciou que pretende incentivar a instalação de um “pólo industrial” ligado à indústria da defesa no ABC paulista.

O anúncio foi feito pelo assessor especial do ministério da Defesa, José Genoino, e pelo presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luciano Coutinho, durante um seminário sobre o tema em São Bernardo do Campo.

O banco estuda linhas específicas de crédito para empresas do setor que se instalarem na região. As novas medidas de fomento à indústria do setor de armamentos devem ser anunciadas pelo BNDES em meados deste ano.

O financiamento do BNDES ao setor é polêmico. Para os críticos da indústria de defesa, os fabricantes de armas e munições não devem se beneficiar do mesmo tratamento dado a outros setores industriais.

Quase 40 mil pessoas morreram em 2009 no Brasil em episódios relacionados a armas de fogo – incluindo homicídios, suicídios e acidentes – segundo os dados mais recentes disponibilizados pelo Ministério da Saúde.

Um estudo feito por Pablo Dreyfuss, que era um dos maiores especialistas no tema, mostrou que 90% dessas mortes são resultantes de crimes e o risco de morrer de ferimentos causados por armas de fogo no Brasil é 2,6 vezes maior do que em qualquer outro país.

Sete em cada dez armas apreendidas com criminosos no Brasil são fabricadas aqui, segundo uma pesquisa feita pelo Instituto Sou da Paz, que trabalha pelo desarmamento.

Pistolas (15%) e revólveres (65%) são as armas mais utilizadas pelo crime organizado, e não metralhadoras e fuzis contrabandeados, como se costuma pensar.

O delegado da Polícia Federal Marcus Vinicius da Silva Dantas, da Divisão de Repressão ao Tráfico Ilícito de Armas (DARM), confirma: os responsáveis por abastecer os criminosos brasileiros não são os traficantes internacionais. “A maioria são armas antigas que acabaram na clandestinidade. Muitas compradas por ‘cidadãos de bem’ que venderam para conhecidos, que venderam para desconhecidos. Assim a arma chega ao criminoso”, explica.

A declaração do delegado da PF é endossada pelo principal responsável por destruir as armas apreendidas, o capitão Ismael Ossayran, chefe da seção de Destruição de Armamentos do Exército de São Paulo. Segundo ele, a maioria das armas apreendidas é nacional, sendo que algumas foram exportadas para países vizinhos e reintroduzidas no Brasil.

O militar conta que é comum encontrar o mesmo número de registro em mais de um revólver ou pistola antigos e, em uma das peças, a inscrição “Made in Brazil”. Trata-se de um sinal claro de que o descontrole e as falhas de fiscalização perduram há décadas.

Armas compradas para fins esportivos ou para caça também vão parar nas mãos de assassinos, como ilustra o caso de Itupiranga, uma das cidades mais violentas do Brasil, que fica na região de Carajás, no Pará.

A pequena cidade de 42 mil habitantes, situada a 887 quilômetros da capital paraense foi uma das campeãs de violência em 2011, com 160 homicídios por 1000 habitantes, de acordo com o Mapa da Violência, do Ministério da Justiça. A maior parte destes crimes, conforme explicou o capitão da Polícia Militar Kojak Silva Santos ao repórter Guilherme Balza, do UOL, acontece nas áreas rurais. “O óbito, a maior parte, é por armas de caça ou arma branca”, diz ele.

Mesmo com essas evidências, o presidente do Comdefesa, o grupo de trabalho do setor na  FIESP, se opõe ao controle de armamentos: “Tem essas loucuras do Viva Rio de que o Brasil não precisa manter a produção de armas. A gente vai manter o equilíbrio das classes sociais provavelmente no grito, de maneira medieval”. (OUÇA TRECHO DA ENTREVISTA)

“Sou absolutamente contra o desarmamento, mas aqui é um país democrático. Já que a nação decidiu assim então a regra é manter”, diz ele. “Nós estamos vendo aí que ninguém pode mais ter seu sítio, ninguém ter mais uma grande chácara ao redor de São Paulo porque o bandido sabe que ele não vai encontrar nenhum tipo de resistência”, completa o líder empresarial. (OUÇA TRECHO DA ENTREVISTA)

Leia a parte 1: Brasil, produtor e exportador de armas

Leia a parte 2: Empresas de armas miram África e Ásia para ampliar exportações

Leia a parte 4: A bancada da bala

Quantas armas, afinal?

Não há estimativa oficial da produção de armas leves no Brasil, já que as empresas se negam a publicar os números. Assim, os dados referentes às armas comercializadas são os que mais se aproximam da realidade.

Estes dados sobre o mercado nacional são inéditos e foram solicitados ao Exército pela agência Pública.

Entre 2005 e 2010, as vendas dobraram no mercado interno. O número de unidades vendidas passou de 469.097 em 2005 para 831.616 em 2010, incluindo um pico de 1.001.549 em 2009.

Números muito superiores às estimativas feitas por grupos que monitoram o setor: em estudo recente do Instituto Sou da Paz sobre a implementação do Estatuto do Desarmamento, a produção nacional foi estimada em cerca de 250 mil unidades por ano.

Ao todo, foram vendidas 4.339.846 armas leves no Brasil nestes cinco anos, uma média de 2.377 armas comercializadas por dia. Todas de fabricação nacional. Quanto às importadas, foram 14.142, segundo o Exército.

Nesse período a Taurus comercializou 2,9 milhões de armas no país. A comparação ano a ano mostra que as vendas mais do que triplicaram em cinco anos – foram de 220 mil armas vendidas em 2005 para 775 mil em 2010.

O levantamento do Exército inclui apenas armas leves – sobretudo pistolas, revólveres e fuzis de fabricação nacional. Não contabiliza armas mais sofisticadas, usadas principalmente pelas Forças Armadas, em que predomina a tecnologia importada.

No Brasil, a responsabilidade por acompanhar o setor de armas leves é da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército (DFPC), órgão composto por 1.500 militares espalhados em 270 unidades em todo o país.

Os dados que indicam a expansão das vendas são inéditos até mesmo para o Ministério da Defesa.

Indagado sobre dados referentes à produção de armas no Brasil, o Ministerio da Defesa informou através de email que “não tem elementos” para responder às seguintes questões:

– tamanho da produção nacional de armas leves;

– quanto produzem os três maiores traficantes;

– dinheiro que o setor movimenta entre produção e empregos;

À pergunta sobre se tem controle sobre a produção afirmou: “O Ministério da Defesa tem controle da produção, mas não sabe, a priori, o tamanho das encomendas feitas”. A “título de esclarecimento” acrescentou: “o Ministério da Defesa incentiva fortalecer a Indústria Nacional de Defesa, e não ‘ampliar a produção nacional de armas'”.

O diretor-técnico da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde), Armando Lemos, afirmou não existir um levantamento sobre a quantidade de armas fabricadas no país.

“Ninguém sabe qual a dimensão da produção nacional. Buscamos incentivos fiscais para beneficiar os fabricantes, mas, sem números precisos, não dá nem para conversar com o Ministério da Fazenda. Não sabemos quanto é produzido, quantas pessoas trabalham no setor, quanto dinheiro é movimentado. Eu não sei, o (ex) ministro Jobim não sabe, ninguém sabe. As empresas relutam em repassar estes dados”.

Representantes da ONG Instituto Sou da Paz criticaram, também por nota, o posicionamento do Ministério, por entender que “ações voltadas para o fortalecimento industrial”, que envolvem ações como incentivos fiscais e investimentos em pesquisa e tecnologia para baixar custos e aumentar a produtividade “costumam levar a uma maior produção” de armas.

Jairo Cândido, da FIESP, rebate as críticas apelando para a contribuição do setor à economia nacional. “Eles estão lutando contra a indústria nacional e nós não podemos aceitar isso”.

Acrescenta: “Se o  Brasil deixar de importar armas, como é o nosso desejo, que toda arma seja nacional, e eles roubam armas dos quartéis, das polícias, de todos os lugares, é normal… o desejável é que 100% das armas que nós apreendemos seja nacional”, disse. “Eles querem que não tenha arma nacional? Que pare de produzir?”. (OUÇA TRECHO DA ENTREVISTA)

Leia a parte 1: Brasil, produtor e exportador de armas

Leia a parte 2: Empresas de armas miram África e Ásia para ampliar exportações

Leia a parte 4: A bancada da bala

Negócios silenciosos de uma indústria explosiva

Segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Defesa e Segurança (Abimde), o setor movimenta US$ 2,7 bilhões por ano, dos quais US$ 1 bilhão é proveniente de exportação.

O setor emprega 25 mil pessoas e contribui para a geração de 100 mil empregos indiretos. As maiores fabricantes são a Taurus, CBC, a Imbel, Amadeo Rossi e E. R. Amantino, também conhecida como Boito.

IMBEL

A Imbel – Indústria de Material Bélico do Brasil, localizada em Itajubá, Minas Gerais, é a única empresa estatal do setor, fabricando desde armamentos até equipamentos de comunicação para as Forças Armadas.  Começou a operar em 1977, após a fusão de algumas fábricas militares e passou por crises administrativas financeiras que resultaram em um passivo de 320 milhões de reais. O produto mais tradicional da Imbel, a pistola Colt.45, entrou no mercado americano na década de 80 e, em 1998, foi adotada pelo FBI. Atualmente, 65% da receita da empresa é proveniente da venda de rifles e pistolas. As armas pequenas da empresa são utilizadas pelo Exército Brasileiro e por forças armadas de outros países da América do Sul.

CBC

A Companhia Brasileira de Cartuchos é a maior fabricante de munições do país. A unidade principal da empresa, em Ribeirão Pires (SP), é considerada o maior complexo industrial de produção de munições do hemisfério Sul. A outra fábrica, inaugurada em Montenegro (RS), em 2000, também produz armas longas e é especializada em cartuchos de caça.

Enquanto a Taurus e a Imbel fornecem armas leves aos mercados internacionais, a CBC garante a munição para abastecê-las em mais de 40 países. Fez duas novas aquisições nos últimos anos – comprou a indústria tcheca Sellier & Bellot, em 2009, e a alemã Men, em 2007. Em 2010, a revista Der Spiegel denunciou negócios da CBC com a Líbia e o Irã, e a acusou de tentar contornar a legislação alemã sobre armas de guerra. A empresa negou.

Segundo o estudo “Armas Leves no Brasil: produção, comércio e proprietários”, feito por pesquisadores Pablo Dreyfuss, Benjamin Lessig e Julio Cesar Purcena, 70% das ações da CBC pertencem à DFV Participações, uma unidade da Cemisa, empresa controlada pela Charles Ltd., sediada nas Ilhas Virgens Britânicas, um conhecido paraíso fiscal. Outros 28% são da PCDI Participações, ligada a Brookmon Trading Corp, também com sede nas Ilhas Virgens.

A CBC tem faturamento anual estimado em cerca de 250 milhões de reais.

BOITO

A indústria E. R. Amantino & Cia. Ltda., ou Boito, sediada em Veranópolis, no Rio Grande do Sul, foi fundada em 1955. Fabrica espingardas e armas de caça, e emprega cerca de 300 pessoas. É a única empresa na América do Sul que fabrica espingarda com canos paralalelos e afirma que seus produtos se destinam a fins recreativos, como a caça e o esporte. “Não fabricamos armas para matar homens, mas sim, para estar em contato com a natureza, respeitar seus ciclos e sua preservação”, estampa o site da empresa, lembrando as palavras do fundadorElias Ruas Amantino. A companhia exporta cerca de 90% de toda sua produção de armas, principalmente para os Estados Unidos.

ROSSI

A empresa Amadeo Rossi deixou de produzir armas de fogo em 2010 e arrendou a comercialização destes itens às Forjas Taurus, mas não se conhece os detalhes do negócio. O documento de análise do CADE, o órgão público que supervisionou a transação, encobriu as principais cifras referentes às duas empresas com o escrito “confidencial”. Em 2007, a Rossi já havia transferido sua produção de armas de cano curto para a Taurus, produzindo apenas espingardas e rifles até 2010.

Porta Giratória

Embora em menor escala, no Brasil também acontece o mecanismo de “revolving door”, ou porta giratória, como são chamadas nos Estados Unidos as rotineiras contratações de autoridades do governo por indústrias de armamento e vice-versa – o vice de Bush, Dick Cheney, por exemplo, era CEO da empresa Halliburton antes de assumir o cargo.

Por aqui, o general Antônio Roberto Nogueira Terra, que durante seis anos foi chefe da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC) do Ministério da Defesa – órgão responsável por autorizar a exportação de armas e munições para outros países –, passou para o outro lado do balcão ao assumir o cargo de consultor especial da Sulbras Consultoria e Assessoria Ltda, escritório de representação da Taurus em Brasília que pertence a Renato Conill, vice-presidente da empresa. A mudança de emprego do general foi assunto de uma reportagem da revista IstoÉ, em 2004.

Mas o caso não é exceção. À frente da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (ABIMDE), por exemplo, está o almirante Carlos Afonso Pierantoni Gambôa, ex chefe do Estado-Maior da Força de Submarinos da Marinha.

Para Jairo Cândido, presidente do Comitê da Cadeia Produtiva da Indústria de Defesa (Comdefesa), da FIESP, não há “ilegalidade” nesse tipo de relação. O que não significa que seja legítima, como alerta o o jurista Luiz Flávio Gomes, um dos principais especialistas em direito penal do país: “Eticamente, você passar a compor a empresa que fiscalizou é algo bastante discutível”, diz.

A indústria também mantém laços estreitos com o Movimento Viva Brasil, uma ONG que se destacou nas campanhas contra o desarmamento e pelo fim das restrições ao comércio de armas no país.

Seu presidente, o advogado Benedito Barbosa, afirma que o MVB é um movimento independente que reúne atiradores e aficionados por armas de todo o Brasil. Bene, como é conhecido, é um defensor intransigente do livre mercado de armas no país. Em 2008, em um fórum sobre o assunto na Internet, ele deu a seguinte resposta a atiradores que ridicularizavam a cor rosa de uma pistola da CBC: “Tudo é uma questão de nicho de mercado. A pistola com certeza se destina ao público infanto-juvenil, aliás são estes que serão os atiradores de amanhã. Então, é realmente necessário que esse tipo de arma esteja disponível no mercado ou você daria uma x-ultra-multi-veloz e cara arma para o seu filho de oito anos atirar livremente? Aliás, até que enfim, a indústria nacional lembrou que existe mercado para novos atiradores”.

A independência da ONG de Bene é difícil de sustentar. Desde sua fundação, o MVB funcionou dentro do escritório de Marco Antonio Moura de Castro, um dos membros mais antigos do conselho de administração da Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), líder nacional em venda de munição. O endereço, até recentemente, era o mesmo da Assets Consultoria e Participações, empresa que tem como sócio-gerente Moura de Castro, na Rua Pedroso Alvarenga, 755 – cj 32, região central de São Paulo.

Embora se diga “amigo” do empresário, Barbosa afirma que nunca soube da relação de Moura de Castro com a CBC. “Conheci o Mike na época que ele era presidente do Safari Club do Brasil, nem sei se ele já era ou se ainda é conselheiro da CBC. Ele sempre foi atirador e colecionador de armas e esse mundo é bastante pequeno. Dificilmente alguém não conhece alguém. Quando decidi fundar o MVB ele me ofereceu um sala em seu escritório. Sai de lá devendo mais de 10 mil reais em alugueis, que ele, por amizade, jamais cobrou”, explica candidamente.

As contas da organização são fechadas ao governo e ao público. Segundo Barbosa, isso se deve ao fato de que o grupo optou por não receber verbas governamentais, nem isenção fiscal.

Leia a parte 1: Brasil, produtor e exportador de armas

Leia a parte 2: Empresas de armas miram África e Ásia para ampliar exportações

Leia a parte 4: A bancada da bala

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