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Moradores vivem sem água, sem energia elétrica e com medo de serem despejados a qualquer momento

Reportagem
24 de agosto de 2012
09:00
Este artigo tem mais de 12 ano

Morador da Comunidade da Paz, situada a cerca de 1km do Itaquerão em obras, na zona leste de São Paulo, Paulo fazia malabarismo para ligar a energia a partir de um poste da rua Castelo do Piauí, no dia 19 de maio deste ano, quando foi flagrado por uma viatura da Polícia Militar, detido e conduzido ao 39o Batalhão da PM. No dia seguinte, após pressão dos vizinhos, Paulo foi solto, mas um carro da AES Eletropaulo, escoltado por uma viatura da PM, foi até o local do “gato”, e cortou o fio condutor do ramal, a partir do qual os moradores faziam as ligações clandestinas. A Comunidade da Paz está no escuro desde então. Em julho, um morador da comunidade morreu vítima de um incêndio, provocado por uma vela acesa.

A reivindicação dos moradores pela regularização do serviço de energia elétrica tem pelo menos 12 anos, como explica Cícero Jaílson Ponciano da Silva, de 39 anos, que trabalha na construção civil:  “A gente não quer nada de graça, queremos uma coisa regularizada. E nesse tempo todo, o que fizeram para a gente de bom, entre aspas, foi isso aí”, disse, apontando para o ramal condutor de energia, recém-cortado.

Em nota oficial, a AES Eletropaulo afirmou que “nunca houve nenhuma ligação realizada pela concessionária na comunidade” e que “recebeu pedido da Polícia Militar para suspender a energia clandestina no local, em virtude das condições irregulares da rede”.

E os problemas a comunidade só se agravaram.  A água para uso doméstico, também irregular segundo a Sabesp, foi cortada após a conclusão de parte da segunda fase da obra do Parque Linear do Rio Verde, ao lado da comunidade.

A história, infelizmente corriqueira para muitos moradores de comunidades pobres do Brasil, caiu como uma bomba na Comunidade da Paz. O repentino corte de água e luz reforçou o temor da remoção: desde agosto de 2010, quando o governo paulista anunciou a construção do estádio do Corinthians em Itaquera, os moradores começaram a conviver com boatos de que suas casas seriam removidas.

Situada à margem do Rio Verde, a Comunidade da Paz também está ameaçada pelo projeto de expansão do Parque Linear do Rio Verde. Essa obra já constava no Plano Regional Estratégico de 2004, mas foi incluída no pacote de intervenções urbanas do chamado Polo Institucional de Itaquera, projeto para a Copa de 2014 previsto no Plano de Desenvolvimento da Zona Leste, da Prefeitura de São Paulo. Parte do projeto foi concluída em agosto de 2009. A segunda fase está em andamento.

“Todo mundo aqui está perturbado, porque não sabe para onde vai. Ninguém sabe o que vai ser, quanto tempo a gente tem aqui, se vamos receber Bolsa Aluguel ou vamos para outras casas” diz o motorista Pedro Furtado, de 56 anos, morador da comunidade.

Preocupados, os moradores procuraram os movimentos sociais (entre eles o Movimento Nossa Itaquera, o coletivo Copa pra quem?, e o movimento Comunidades Unidas da Zona Leste) em busca de informações oficiais sobre seu destino. Assim, acabaram se juntando a outras comunidades do bairro ameaçadas de remoção por conta das obras para a Copa.  Em setembro de 2011, 400 membros de diversas áreas em risco (entre elas as comunidades Pacarana/Zorrilho, Três Cocos e a Vila Progresso) organizaram uma reunião e convidaram a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP) para pedir orientação. Desde então, o advogado Douglas Tadashi Magami, do Núcleo de Habitação e Urbanismo da DPESP, tem cobrado da prefeitura, através de diversos ofícios, informações que respondam detalhadamente aos questionamentos dos moradores. Não conseguiram respostas convincentes até agora.

Barrados no baile

Em novembro de 2011, funcionários da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente da Prefeitura de São Paulo apresentaram o Projeto do Parque Linear do Rio Verde no anfiteatro da sede da Subprefeitura em Itaquera. Na plateia do evento, restrito a convidados, estavam lojistas, pequenos empresários, representantes do clube Rotary, membros da maçonaria e da elite do bairro. Mas também havia um morador da Comunidade da Paz, “infiltrado” por um convidado.

“Foi uma reunião quase clandestina, escondida. Só chamaram a classe média local. Conseguimos que uma dessas funcionárias, sem saber quem nós éramos, nos passasse uma cópia da apresentação de slides” contou o “convidado” ao Copa Pública.

No arquivo o projeto do Parque Linear do Rio Verde aparece de forma mais detalhada e, no décimo quinto slide, intitulado “Favelas”, há uma divisão em duas categorias: “Favelas no perímetro do parque (remoção total)” e “Favelas nos afluentes do Rio Verde (remoção parcial)”. Fadadas à remoção total estão assinaladas seis favelas, com o respectivo número de famílias que comportam: Manuel Ribas (15), Favela da Paz (300), Miguel Inácio Curi I (500), Francisco Munhoz Filho (440), Lavios (400) e Senabria (5). Na segunda categora, há três favelas listadas: Maria Luiza Americano (550), Freguesia de Poiares (47) e Jardim Marabá (137).

O morador da Paz lembra que ficou muito assustado quando viu que sua comunidade fazia parte da categoria “remoção total”.

De posse do arquivo, a dupla enviou uma cópia às mãos do advogado Douglas Magami, que acionou judicialmente a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, pedindo uma versão do projeto que contivesse ao menos um cronograma da remoção.  Após quatro meses, o órgão municipal enviou uma versão mais detalhada. No novo documento estava escrito que até 2014 seriam removidas a Comunidade da Paz (ou Miguel Ignácio Curi II, como também é conhecida) e a Miguel Ignácio Curi I. Após 2014, seriam removidas as comunidades da Lavios e Francisco Munhoz Filho.

Valter de Almeida Costa, coordenador do movimento Nossa Itaquera, recebeu as informações com indignação: “Só este ano após vários meses e vários ofícios que a Defensoria mandou para a Prefeitura, conseguiu-se finalmente o projeto da Secretaria Municipal do Verde. O projeto é claro, fala de um programa de remoção total das Comunidades da Paz e Miguel Ignácio Curi II, somando 800 famílias, até 2014. Apesar disso, até agora a prefeitura não teve contato com a comunidade”.

O Copa Pública entrou em contato com a Subprefeitura de Itaquera, que informou por meio de sua assessoria de imprensa: “Para a favela da Paz estão previstas intervenções de urbanização pelo Plano Municipal de Habitação (PMH), da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab). A secretaria só realiza realocação de famílias em áreas em que fará obras de urbanização. Não há qualquer intervenção da Sehab programada para o momento, pois os projetos para a região estão em fase preliminar de estudos; assim, a realocação das famílias ainda não está definida.”

Ou seja, ainda não há informações claras da Subprefeitura sobre o que será feito após a provável remoção.

Por sua vez, a AES Eletropaulo informou através da assessoria de imprensa que: “segundo regulamentação do setor elétrico e legislação vigente, a distribuidora não pode realizar ligações de energia em áreas de ocupação irregular com impactos ambientais ou em áreas de risco, que é o caso da comunidade Vila da Paz”, e que “a concessionária só pode instalar ligações na área após regularização da região por parte da subprefeitura de Itaquera”. Ao que a subprefeitura de Itaquera limitou-se a dizer que: “não tem competência sobre o fornecimento de energia”. Quanto à falta de água, a Sabesp informou, ainda em maio, que nenhuma rede de água foi instalada pela empresa na Comunidade da Paz e que ela não pode atuar sem o aval dos órgãos competentes.

Diálogo suspenso

A comunidade tentou falar com a subprefeitura e com a concessionária de energia mas até agora não conseguiu resultados. A última tentativa foi feita depois que a liderança da comunidade conseguiu, através de uma vereadora, contatar o promotor Maurício Lopes, do Núcleo de Habitação e Urbanismo do Ministério Público Estadual, que convocou uma reunião entre a Subprefeitura de Itaquera, os representantes da AES Eletropaulo e a comunidade.

A reunião, no gabinete do promotor Lopes, já estava atrasada quando, segundo os moradores, um “conhecido” funcionário entrou, “deu uma ‘sondada’ e saiu”, como conta Valter Costa, coordenador do Nosso Itaquera. Após algum tempo, o celular do promotor Lopes tocou. Do outro lado da linha, o subprefeito de Itaquera, o coronel reformado da PM Paulo César Máximo, ex-membro da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), braço de elite da PM, afirmou que não participaria de uma reunião com líderes comunitários e com uma vereadora do PT.

“Ele disse que não ia subir porque tinha os líderes comunitários e uma vereadora”, conta o promotor. “Eu falei para ele que ele já tinha saído da Rota e agora estava saindo do rumo também”, lembra.

Diante da impossibilidade de diálogo, o promotor expediu uma recomendação à AES Eletropaulo para que ao menos fizesse um estudo para a instalação regular da rede elétrica. A empresa se comprometeu a estudar a situação e pediu um prazo de 30 dias a partir do dia 2 de agosto. Também foi aberto um inquérito civil para apurar se a energia elétrica foi cortada com intenção de expulsar os moradores da comunidade. “Estou esperando a resposta da Eletropaulo. Se ela não seguir o prazo, vou propor uma nova ação”, afirma o promotor, referindo-se a uma ação já existente da Defensoria Pública. Segundo ele, a comunidade da Paz tem direito de reivindicar o “usucapião especial para fins de moradia”, já que está há 20 anos nesse local.

Festa, medo e maloqueiragem do bem

No último dia 18, o movimento Nossa Itaquera e o coletivo Comunidades Unidas da Zona Leste organizaram a segunda edição do Arrastão Cultural, evento voltado à integração entre movimentos sociais e comunidade, além de um encontro de lideranças entre várias comunidades ameaçadas de remoção em decorrência de obras da Copa. Em meio às oficinas de recreação com as crianças moradoras do local e outras atividades, dois fatos chamaram a atenção. O primeiro foi quando um carro preto, com vidros escuros passou devagar, gerando um certo alvoroço nas pessoas que estavam ali. Segundo os moradores, aquele carro era da subprefeitura e sempre passava por ali em reuniões e eventos. “Eram eles lá, vieram pra dar uma conferida”, disse o morador Jaílson.

Momentos mais tarde, um helicóptero com as cores da Polícia Militar de São Paulo sobrevoou o pátio da comunidade. Uma menina se aproximou de uma senhora e disse: “Tia, eu tô com medo!”. Do sistema de som instalado para o evento, ouviu-se uma voz dizendo: “É assim que o poder público trata as coisas. Não dialoga sobre moradia, mas manda a polícia patrulhar um evento desses”.

Um pouco antes, o grupo de rap Arte Maloqueira, criado em um sarau na biblioteca de Guaianazes, bairro próximo à Itaquera, também na zona leste de São Paulo, dominava o microfone. Mas por quê Arte Maloqueira? “Queríamos desconstruir vários preconceitos. O preconceito com Guaianazes, com a zona leste e até mesmo com a palavra maloca. Maloca é uma palavra indígena para moradia simples. Então nós somos maloqueiros”, me explicou Richard, um dos integrantes. Em dado momento, em uma verdadeira mistura de poesia concreta com rap, eles entoavam a letra que parecia resumir o passado e o futuro daqueles “maloqueiros” que ali estavam. Eram versos precisos a partir da desconstrução de uma única palavra, sobre um ritmo pulsante e alucinante: “Maloquerage. O maloquero age. A maloquera age. O mal o quer: age.”

*Colaborou Patrícia Cornils

 

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