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Viúva, ela virou presidente do sindicato e passou a denunciar o trabalho escravo nas fazendas de Rondon do Pará

Reportagem
8 de julho de 2013
09:02
Este artigo tem mais de 11 ano

A camisa relativamente folgada deixa transparecer a pistola. O homem que vem abrir o portão e olha antes para os dois lados da rua quase deserta tem as atenções voltadas 24 horas por dia para a moradora da casa. É um dos seguranças de Maria Joel Dias da Costa, conhecida pelos amigos como Joelma. Em Rondon do Pará, distante 532 km da capital Belém, no sudeste do estado, a história de Maria Joel é conhecida por quase todos. Ela é a viúva do sindicalista José Dutra da Costa, o “Dezinho”, assassinado em Rondon do Pará em 21 de novembro de 2000, a mando, segundo as investigações policiais, dos fazendeiros Décio José Barroso Nunes e Lourival de Sousa Costa. Dezinho era o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará e começou a lutar pela regularização das terras consideradas improdutivas visando a reforma agrária.

Depois da morte de Dezinho, Maria Joel assumiu a direção do sindicato em substituição ao marido. Continuou apoiando a luta das famílias sem terra pela desapropriação dos latifúndios improdutivos e a arrecadação das terras griladas no município. O mesmo grupo que teria feito um possível consórcio para matar José Dutra passou a ameaçar também Maria Joel.

É uma mulher pequena, de voz mansa e calma. Os cabelos são partidos ao meio e presos atrás, típico de mulheres evangélicas. Na parede da sala que emenda com a cozinha há a foto de Dezinho e outra, com a família toda reunida. Há três anos Maria Joel assumiu a coordenação da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri) em Marabá. Continua morando em Rondon do Pará, mas diminuiu as atividades no sindicato local por conta da instabilidade gerada na própria vida.

Entre maio e junho deste ano, Maria Joel teve dias novamente tensos, com a ordem de despejo de agricultores da fazenda Água Branca, onde está situado o acampamento Raio de Luz. Há seis anos 64 famílias ocupam a fazenda de pouco mais de 60 hectares, o equivalente a 60 campos de futebol. “A polícia veio para fazer o despejo, foi muito tenso, muita batalha, estivemos na iminência de um confronto de graves proporções”, relata Maria Joel. O confronto só não se concretizou porque o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará e a Comissão Pastoral da Terra obtiveram uma liminar judicial suspendendo o despejo no dia em que ele ocorreria. Mas a tensão permanece.

Atualmente existem três acampamentos à espera de regularização em Rondon do Pará. O maior e mais antigo é o da fazenda Santa Mônica, com 104 hectares e ocupado há dez anos por 58 famílias. Maria Joel não abre mão de acompanhar todos eles; tem sido assim desde que uma bala atravessou o seu caminho.

Do maranhão ao Pará

Maria Joel chegou a Rondon do Pará em 1984, vinda do Maranhão, em mais uma trajetória típica de migrantes atraídos pelas promessas de terras abundantes no Pará e de trabalho. Desde os anos 70 os governos federal e estadual atraíam direta e indiretamente esses migrantes.  Quatro anos antes, seus pais haviam se mudado do Maranhão a Rondon, atrás de terras. “Aqui se pega dinheiro é com as mãos”, exagerou a mãe de Maria Joel, incentivando a mudança da filha. O marido José Dutra estava desempregado em São Luís, capital maranhense, quando o convite bateu mais forte. Então a família bandeou para Rondon do Pará.

Maria trazia nas mãos, além da pouca bagagem, uma filha de dois anos e outro de 15 dias. E foi mais de um dia de viagem entre asfalto e estradas de chão batido. Maria estranhou a terra que encontrou. “Um barro vermelho que eu não conhecia, cheio de poeira, muitas casas de madeira, cobertas não por telhas, mas por madeira também. As estradas eram ruins, o mato fechava tudo, havia muito pasto, muito gado”.

A terra prometida parecia cumprir pouco. Havia muitas serrarias, muitas madeireiras e muita pecuária. E muita gente pobre na periferia. Não havia terra para todos, e a agricultura era difícil. Muitos migrantes corriam aos garimpos, como o de Serra Pelada, não muito distante de Rondon do Pará. “Deus do céu, chorei muito nos primeiros tempos”, lembra Maria Joel. Três irmãos dela foram trabalhar em serrarias. Trabalho pesado, longe das promessas maternas. “Foi tudo ao contrário do que minha mãe falou. Meu marido foi trabalhar em serraria, o jeito era encarar, não podíamos ficar passando fome”.

E muita gente continuava a chegar. Conterrâneos em busca de trabalho. Na casa de José e Maria, chegaram a ficar 32 pessoas espremidas em cômodos apertados. Derrubar mata era a prioridade em Rondon do Pará no início dos anos 80, mas muitas empreitadas não eram pagas ao final. Quem se rebelava podia morrer. “Se matava muita gente”, diz Maria. “Os pistoleiros andavam armados na rua, sem se importar com nada, ostentando mesmo”.

Dezinho trabalhou quase três anos em serrarias. Até que um vizinho cedeu uma terra para ele trabalhar na zona rural de Rondon. Voltou a trabalhar no roçado, atividade à qual estava acostumado desde criança. Nos dois anos seguintes travou contato com pessoas ligadas ao incipiente sindicato de trabalhadores rurais que começava a surgir para tentar brecar a violência contra os agricultores. “Ele se ligou ao PT e começou a se envolver nas questões da terra”, lembra Maria Joel.

Com a demanda de assentamentos vieram as ameaças

Na década de 90 Dezinho já era uma liderança naturalmente reconhecida.  Em 1990 tornou-se conselheiro fiscal do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Três anos depois assumia a presidência do sindicato. Dezinho começou a observar as terras improdutivas e as que poderiam ter função social. Começou a cobrar das autoridades a criação de assentamentos para reforma agrária. “Foi aí que começaram os conflitos”, diz Maria Joel. Ele chegou a escapar de três emboscadas. Passou a andar sempre protegido por companheiros do sindicato. Denunciava as ameaças. Confrontava fazendeiros.

Em casa, Maria Joel chorava e orava. “Todo mundo da família era contra o envolvimento dele com essas coisas do sindicato. No começo foi difícil eu mesma aceitar”, diz.

Foram sete anos de ameaças e emboscadas. A situação chegou a um ponto em que os próprios policiais militares escalados para fazer a proteção de Dezinho mancomunavam-se com os pistoleiros. Numa manhã, enquanto ia para o sindicato ladeado por um PM, Dezinho notou que ele fez um sinal a um pistoleiro que passava em direção contrária, sinalizando estar com a arma descarregada. O movimento intenso na rua naquele momento impediu o assassino.

Em 1997 Dezinho precisou passar um tempo fora de Rondon por conta das ameaças.. Ficou seis meses entre Belém e o município de Bragança, distante 228 km da capital, no nordeste paraense. Quando retornou, reassumiu as funções de liderança sindical. Mais ainda: foi eleito vereador. E se tornaria,  certamente, presidente da Câmara Municipal, devido à sua popularidade. Recebeu um telefonema certa tarde avisando: ele não passaria o Natal com a família. Dias depois, um pistoleiro foi assassinado. O irmão dele procurou Dezinho e informou que havia sido queima de arquivo. O pistoleiro havia desistido de matar José Dutra e foi ‘apagado’. Mas quinze dias depois da ameaça telefônica, a promessa foi cumprida.

Maria Joel passa uma pequena toalha rosa no rosto antes de iniciar o relato da morte do marido. Oferece café, depois água. Fica em silêncio alguns segundos. “Era de noite, umas 19 horas. Bateram na porta, fui atender e era um jovem, sem características que parecesse um pistoleiro. Ele criou toda uma história de uma avó que precisava ajeitar uns documentos para receber uma pensão. Sentou no sofá do meu lado, pediu água”.

Convencida das boas intenções do rapaz, Maria mandou a filha caçula chamar o marido, que jantava na casa de um vizinho, conterrâneo maranhense. Alguns minutos depois o pistoleiro observou que Dezinho estava demorando e disse que iria comprar cigarros, depois voltaria. Encontrou o sindicalista quase na porta da casa. Maria Joel ouviu quando ele começou a contar a mesma história de antes. Entrou, fechou a porta e ouviu o disparo. E o mundo não foi mais o mesmo.

Diante da impunidade, Joelma abraça a causa do marido assassinado

Maria Joel pôde ver o companheiro agarrado ainda ao pistoleiro, os dois caindo numa vala, o sangue começando a espalhar-se pelo corpo de Dezinho, o pistoleiro tentando fugir, sendo agarrado pelos vizinhos, a tentativa de linchamento. Teve frieza para impedir a morte do pistoleiro. “Eu não deixei, porque queria saber quem tinha mandado matar meu marido”.

A partir daí essa se tornou a luta maior de Maria Joel. Passou a acompanhar todo o desenvolvimento das investigações sobre a morte do esposo. Preso em flagrante, Wellington de Jesus Silva, o pistoleiro, disse que havia recebido 2 mil reais e um revólver para executar o líder sindical. As investigações levaram até o fazendeiro José Décio Barroso Nunes, o Delsão. Testemunhas ouvidas pela Polícia disseram que o fazendeiro já havia encomendado a morte de Dezinho anteriormente a outro pistoleiro, o mesmo que acabou assassinado pouco antes de José Dutra.

O pistoleiro foi condenado num primeiro julgamento, em novembro de 2006. Teve direito a um novo julgamento, por conta de a pena ter ultrapassado a 20 anos. Quatro meses depois iria novamente a julgamento e a pena se repetiria, 29 anos de reclusão em regime fechado. No mesmo ano, recebeu a progressão de regime prisional para o semi-aberto em razão do cumprimento de mais de 1/6 da pena. No dia 18 de dezembro de 2007, menos de dois meses depois de concedida a progressão, Wellington de Jesus teve autorização da Juíza da Vara de Execuções Penais de Belém, Tânia Batistello, para passar o final de ano fora da prisão. Nunca mais retornou. Há um mandado de captura expedido desde janeiro de 2008, mas nunca cumprido.

Acusados de serem intermediários do crime, Ygoismar Mariano e Rogério Dias tiveram prisões preventivas decretadas, mas nunca foram presos. O acusado de ser mandante do crime, José Décio Barroso Nunes, responde o processo em liberdade e não há qualquer previsão de quando vai a júri popular.

Mas Maria Joel não se intimidou. Dois anos depois da morte do marido assumiu o sindicato. Começaram a chegar os recados. “Diziam para eu sair, ir embora. Eu disse que iria ficar e cobrar o que aconteceu. Assumi os trabalhos do Dezinho e a luta por justiça”, diz.

Às vezes olhava para a rua e via um homem parado em frente à casa, observando. Em outras ocasiões, uma caminhonete de vidro escuro rondava. Parava na frente, a janela do veículo era aberta e um desconhecido a encarava. Por duas vezes um pistoleiro entrou na sede do sindicato, mas a quantidade de pessoas impediu que o crime fosse adiante.

Isso porque, como o esposo, Maria Joel passou a denunciar o trabalho escravo nas fazendas de Rondon do Pará. Fazendeiros foram multados e o telefone do sindicato passou a ser o emissário das ameaças. Uma delas foi cumprida. “Disseram que iriam matar uma pessoa próxima a mim. Fiquei maluca, achando que era um de meus filhos. Era um diretor do sindicato”.

Ribamar Francisco dos Santos foi assassinado em 2004. “Foi um baque muito grande”, diz Maria Joel. “Ribamar era um dos grandes companheiros e conselheiros que eu tinha”. As constantes ameaças recebidas por Maria José têm sido encaminhadas para a Secretaria de Segurança Pública do Pará e já resultaram na abertura alguns inquéritos policiais, mas nada que tenha resultado em punições efetivas.

O Programa de Defensores de Direitos Humanos tem garantido proteção permanente a Maria Joel. São dois agentes que permanecem 24 horas cuidando da sua segurança. Ela já se acostumou, mas sabe que é uma prisioneira da vida que leva.

A morosidade da justiça do Pará em julgar os mandantes do crime motivou o ingresso perante a Organização dos Estados Americanos (OEA) de um processo contra o Estado brasileiro. O caso foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA em 2004, por intermédio de uma ação conjunta da ONG Justiça Global e da Comissão Pastoral da Terra de Marabá. A OEA reconhece que há indícios claros de que agentes do Estado dificultaram deliberadamente a responsabilização dos mandantes e intermediários do crime.

Maria Joel Dias da Costa ainda espera por justiça. Viu que os caminhos trilhados por ela e pelo marido renderam frutos. A filha mais velha se elegeu vereadora pelo PT. Assim luta pela posse da terra tornou-se missão para Maria. “Ainda estou de pé. Aos 50 anos ainda não me curvaram. Nem irão”, diz na mesma voz mansa de sempre.

 

A série Marcadas para Morrer é uma parceria da Agência Pública com o Diário do Pará, com reportagem de Ismael Machado e fotos de Antonio Cícero.

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