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A Odebrecht só virou a queridinha do presidente angolano com a ajuda do Estado brasileiro

Reportagem
22 de fevereiro de 2016
12:56
Este artigo tem mais de 8 ano

A mão amiga do Estado brasileiro sempre foi determinante na estratégia angolana da Odebrecht. Não fosse o apoio da ditadura e dos governos subsequentes – que garantiram financiamentos de pelo menos US$ 4,5 bilhões nos últimos 30 anos –, a empresa não teria conseguido se alçar ao núcleo de confiança de José Eduardo dos Santos. “Todo mundo sabe que a Odebrecht é a multinacional favorita do presidente”, resume o jornalista investigativo Rafael Marques. Durante os 20 anos que durou a construção da hidrelétrica de Capanda, principal marco histórico da presença da empreiteira em Angola, quatro presidentes brasileiros visitaram o país e louvaram o empreendimento, com direito a grande destaque na imprensa local. A obra recebeu financiamentos superiores a US$ 1,5 bilhão, segundo o estudo de doutorado de Joveta José, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em janeiro de 1989, quando Angola estava em plena guerra civil, o presidente José Sarney visitou o país e ressaltou a obra durante reunião com o mandatário africano. “As partes manifestaram sua especial satisfação em relação ao andamento das obras da barragem hidrelétrica de Capanda e se comprometeram a envidar os melhores esforços para a conclusão, com êxito, das discussões com vistas à solução dos problemas financeiros da obra, inclusive com a obtenção de recursos junto a terceiros países”, diz o informe publicado pelo Itamaraty na ocasião. Em setembro de 1991, apenas três meses depois da assinatura de um acordo de paz entre o governo do MPLA e a Unita com o propósito de pôr fim à guerra civil que já durava 14 anos, Fernando Collor de Mello visitou Capanda e demonstrou o apoio do Brasil ao acordo de paz, anunciando a reabertura de linhas de crédito do Banco do Brasil à exportação de alimentos e bens de capital. Em novembro de 1996, com a retomada da guerra, o presidente Fernando Henrique Cardoso também visitou Angola, sob forte aparato de segurança. Foi até a Vila do Gamek, construída pela Odebrecht, onde moravam os operários brasileiros que trabalhavam na construção da hidrelétrica e funcionava a administração central da obra de Capanda.

Luís Inácio Lula da Silva, eleito quando Angola já não era um país conflagrado, fez duas visitas como presidente, acompanhado de comitivas empresariais, em 2003 e 2007. Em 2003, mencionou Capanda no seu discurso: “O Brasil já tem estado presente em projetos de grande envergadura, como é o caso da construção da hidroelétrica de Capanda e do projeto Águas de Luanda, além de vários outros empreendimentos nos mais variados setores”. Quatro anos depois, reforçou: “Financiamentos brasileiros tornaram possível a construção da Hidrelétrica de Capanda, o mais importante projeto de infra-estrutura do país. Nossos créditos ajudaram o país a se modernizar”. Já fora do cargo, Lula visitou Angola duas vezes, acompanhado pelo ex-diretor de relações institucionais da Odebrecht Alexandrino Alencar para a realização de palestras pagas pela Odebrecht no valor de US$ 200 mil cada uma. Na primeira visita, a palestra versou sobre desenvolvimento econômico. Na última visita, em 2014, o ex-presidente fez uma conferência para mais de mil representantes do governo e da sociedade civil sobre as políticas brasileiras de combate à pobreza. A bordo da aeronave presidencial e ciceroneado por Emílio Odebrecht, foi conhecer outro empreendimento da Odebrecht, a usina de cana-de-açúcar Biocom, parceria com a estatal Sonangol. As viagens são alvo de uma investigação criminal da Procuradoria da República do Distrito Federal, que averigua se o ex-presidente cometeu tráfico internacional de influência. Segundo a assessoria do Instituto Lula, ele faz palestras, e não lobby ou consultoria. “Em 30 anos, os políticos mudaram, entraram e saíram, desapareceram, surgiram novos. E nós estamos aqui”, resumiu o superintendente da Odebrecht em Angola, Antônio Carlos Dahia Blando, ao site Rede Angola. Na mesma entrevista, Dahia rebateu rispidamente à suspeita de tráfico de influência pelo ex-presidente Lula. “Sem nenhuma modéstia: a Odebrecht não precisa disso. No caso específico do presidente Lula interceder a nosso favor – com todo o respeito, nós estamos em Angola há mais de 30 anos. Muito antes da presidência de Lula.”

Nas asas do Banco do Brasil

Em meados da década de 1970, quando a Odebrecht chegou a Angola, era o Banco do Brasil que apoiava a internacionalização das empreiteiras brasileiras. Segundo o economista Ernani Teixeira Torres Filho, os executivos da Odebrecht “fizeram uma estratégia de internacionalização baseada no financiamento e baseada na garantia do CCR”. O CCR, Convênio de Crédito Recíproco, permitia que os bancos centrais da América Latina garantissem as exportações de empresas nacionais para o continente. O Banco do Brasil aceitava essa garantia e dava o empréstimo. “Isso junta com uma estratégia de governo. Eu não sei quem nasceu primeiro. Hoje eu tenho a nítida sensação de que o setor privado gerou o interesse dentro do governo”, diz Ernani Torres, que conhece como poucos a história do crédito à exportação brasileira. Professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele passou 35 anos no BNDES, boa parte deles como superintendente de Comércio Exterior, área que ajudou a criar ainda no governo Collor e chefiou entre 1989 e 1998. “[A Odebrecht] foi pra Angola lá atrás. Ela negociou e conseguiu viabilizar politicamente que a Petrobras criasse uma conta vinculada a Angola para pagar coisas no Brasil. Ela foi para o Peru desenvolver o mercado. Ela foi para a Venezuela muito antes do Chávez virar presidente. Eles são muito estratégicos. De todas [as empreiteiras] a Odebrecht é de longe a mais ‘eficiente’, a que mais desenvolveu tecnologia disso. As outras vão a reboque. É impressionante”, comenta Torres. Em 1988, o Banco do Brasil mantinha três linhas de crédito com Angola: uma de curto prazo, até 180 dias, para financiamento de bens de consumo, que variava de US$ 50 milhões a US$ 90 milhões; a de médio prazo, até cinco anos, servia a bens de capital como equipamentos e máquinas e variava de US$ 60 milhões a US$ 120 milhões. E havia uma linha específica para a construção da hidrelétrica Capanda. Porém, sabe-se muito pouco sobre a utilização dessas linhas, prazos, e sobre seu pagamento, informações jamais publicadas pelo Banco do Brasil. Em resposta a um pedido pela Lei de Acesso à Informação feito pela Pública, o setor de Soluções de Atacado do banco alegou que as operações “estão sujeitas ao sigilo bancário e não poderão ser individualizadas”. O banco se limita a publicar uma tabela em que constam apenas os países que receberam financiamentos a partir de 1997 através do Proex – Programa de Financiamento às Exportações. Entre 1997 e 2009, foi desembolsado US$ 1,4 bilhão para projetos em Angola, mais da metade do total no período (US$ 2,7 bilhões). Já entre 2010 e setembro de 2015, o banco financiou US$ 51 milhões em exportações para Angola, de um total de US$ 2,5 bilhões – uma redução gritante. Nesse período, Angola foi o décimo país a receber o apoio do Proex, perdendo para Cuba, China, EUA e Alemanha. Apesar da falta de transparência do Banco do Brasil, é claro que a grande beneficiária desses empréstimos foi a Odebrecht, de longe a maior empresa brasileira no país. Segundo Ernani Torres, durante a sua primeira gestão à frente do Departamento de Exportações do BNDES, era exclusivamente o Banco do Brasil que “operava as empreiteiras”. “Nosso foco era a indústria de bens e capital. Equipamento agrícola, caminhão, trator, colheitadeira, torninho”, explica. “Empreiteira a gente não queria, não. Enquanto eu estava lá, não gostávamos.” Ele diz que não havia um ambiente de apoio às empreiteiras quando o departamento foi formado porque “fiscalizar a empresa de serviço é muito difícil”. “Ela vai cobrar a administração da obra, o lucro dela e a parte toda de serviços que ela promove. A precificação disso é absolutamente fora do seu controle”, explica. “A gente tinha uma preocupação muito grande com relação que aquele dinheiro estava gerando emprego aqui mesmo. E a gente fiscalizava o tamanho do lucro das empresas.” Outro problema, na visão de Ernani Torres, é a qualidade dos bens exportados, que não são de alta tecnologia. “O que eles exportam de palpável é de baixo valor agregado. E o que eles exportam de alto valor agregado é incontrolável.” Como se vê na tabela, a queda nos empréstimos do Banco do Brasil destinados ao país africano é marcante a partir de 2008.

Ernani Torres, que voltou à Superintendência de Comércio Exterior em 2002 e ficou até 2007, conta a experiência de quem viu de perto a Odebrecht solicitar apoio a exportações. “É uma organização enorme que tem técnicos muito bons, as pessoas têm uma experiência enorme de lidar com o governo.” Nas suas palavras, “o relacionamento político é essencial”. “A empresa, a construtora, consegue a viabilidade do negócio dela junto com o governo local, o governo local aciona [o BNDES], ou ela aciona em nome do governo local. Isso é feito em Brasília, se decide o que aquilo é. O que o BNDES vai fazer é tornar aquilo mais eficiente e botar o dinheiro dele ali com uma remuneração pequena”, resume Ernani Torres. A partir de 2007, mesmo ano em que Ernani Torres deixou a Superintendência, cresceu vertiginosamente o apoio às exportações de serviços para construção no BNDES, com claro foco para as obras da Odebrecht. Entre 2002 e 2015, das 571 operações de empréstimo à exportação desses serviços, 437 foram para o grupo, totalizando US$ 7,9 bilhões, de um total de US$ 12,6 bilhões. A mudança teve origem em decisão de Armínio Fraga, que foi presidente do Banco Central durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Fraga determinou a limitação das garantias para América Latina feitas através do CCR para operações até 360 dias. As empreiteiras, que precisam de empréstimos robustos, com prazo de cerca de dez anos, ficaram de fora. Para suprir essa lacuna, o governo de Fernando Henrique Cardoso criou em 1997, por medida provisória, o Fundo de Garantia à Exportação, do Tesouro Nacional. Em 1999, ela virou lei. É até hoje a base para os empréstimos do BNDES. Um estudo do Senado publicado no ano passado mostrou que, entre 1999 e 2006, 92% das operações de apoio à exportação do BNDES foram para bens de capital e apenas 8% foram para obras de infraestrutura. Já em 2014, cerca de metade do portfólio do BNDES era formada por bens de capital. Naquele ano, a Embraer e a Odebrecht receberam 91% dos financiamentos. No período de 2007 a 2014, segundo o relatório, Angola foi o principal destino das exportações financiadas pelo BNDES, com 20% da carteira. O crescimento acompanhou o boom econômico de Angola após o fim da guerra civil, observa o relatório. “A área de exportação de serviços é uma das coisas que mais cresce no mundo atual. Na África há um grande crescimento de empresas chinesas. É um espaço de disputa de mercado”, explica o professor Luiz Carlos Prado, do Instituto de Economia da UFRJ. “Não existe exportação de serviços na África sem apoio de bancos públicos – nem da China, nem da Alemanha, nem do Brasil.” Entre 2002 e setembro de 2015, foram 3,5 bilhões em crédito para serviços de engenharia em Angola, sendo US$ 2,6 bilhões, ou 76,4%, para obras da Odebrecht. O resto foi dividido entre OAS, Prado Valadares e Camargo Corrêa. As maiores exportações para a Odebrecht em Angola se deram depois de 2007, em especial a partir do segundo mandato do governo Lula. A obra que mais recebeu financiamentos do BNDES é da hidrelétrica de Laúca, atualmente em construção, com um total de US$ 646 milhões. Mas o valor deve superar essa marca, e muito, segundo o que foi anunciado pelo governo angolano e repetido várias vezes pelos diretores da Odebrecht em Angola à reportagem, chegando a mais de US$ 2,2 bilhões. A segunda maior obra financiada pelo BNDES foi a reforma da Hidrelétrica de Cambambe, com US$ 464 milhões, seguida da construção de 3 mil casas populares em Luanda por US$ 281 milhões. Abaixo, a lista completa:

“Os passos da Odebrecht em Angola não dependem desse crédito, mas obviamente isso potencializa. E apoia a expansão da Odebrecht para outros países, por exemplo em Moçambique”, avalia a pesquisadora Anna Saggioro, do Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Relações Internacionais (Lieri), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. “Como a Odebrecht tem uma estratégia própria tão bem articulada com os governos locais, eles já chegam com os projetos prontos e bem-acabados para solicitação do crédito ao banco brasileiro. E o BNDES vê nisso a possibilidade de apoio e entrada, sem que haja tanto uma estratégia clara e direta do que queremos na África.” Especialista em economia angolana, o pesquisador português Ricardo Soares de Oliveira, professor da Universidade de Oxford, na Inglaterra, concorda: “A conversa do Brasil em África é toda pública e a realidade é toda privada”. “Há um grande investimento retórico na irmandade dos povos lusófonos e uma grande proximidade cultural, rica, entre Angola e o Brasil, mas na verdade, no terreno, a presença do Estado brasileiro e das iniciativas públicas é muito reduzida, e quem está verdadeiramente na vanguarda da presença brasileira, não somente em Angola, mas no resto dos países, é o setor privado”, conclui.

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