Claudinei Chalito, ex-superintendente do Incra em Santarém, foi mais uma vítima da governabilidade. Quando concedeu entrevista, por telefone, à Pública, em 31 de março, estava em Brasília para ter sua última conversa na sede do Incra sobre sua exoneração. “Minha saída veio no âmbito da crise institucional que nós vivemos. Foi uma indicação política que se deu no centro do governo”, comenta.
Com o desembarque do PMDB da base aliada do governo Dilma Rousseff, anunciado em 29 de março — dois dias antes da conversa definitiva de Chalito em Brasília –, o comando da Superintendência Regional do Incra em Santarém foi oferecido a Adaías Gonçalves, um apadrinhado do deputado Vicente Chapadinha (PTN-PA). Para Chalito e outros funcionários do Incra, foi um esforço de aproximação do governo com o PTN (Partido Trabalhista Nacional) às vésperas da votação do impeachment na Câmara dos Deputados. Após a divulgação do acordo pela imprensa, Chapadinha negou que estivesse negociando seu voto. “Fui acusado de que votaria a favor da presidente em troca de cargos no governo federal, o que não é verdade. Todos os cargos que indiquei foram feitos desde o início do mandato e somente agora as indicações começaram a sair. Em nenhum momento me foi condicionado o apoio à presidente em troca de cargos”, afirmou o deputado em nota à imprensa paraense. Coincidência ou não, dois dias após o voto favorável de Chapadinha à admissibilidade do processo de impeachment pela Câmara, o governo exonerou Adaías Gonçalves. À frente da SR-30 está agora a servidora de carreira Elita Beltrão.
Chalito foi exonerado sob protesto de mais de 60 movimentos sociais da região, que divulgaram uma nota de apoio à sua gestão e chegaram a ocupar a sede da superintendência com apoio de vários servidores.
Nesta entrevista à Pública, o servidor de carreira do Incra fala sobre as dificuldades de assumir o comando da superintendência após o escândalo da Operação Madeira Limpa, da Polícia Federal, que desmantelou uma quadrilha que atuava na exploração ilegal dos assentamentos de reforma agrária. O antecessor de Chalito, Luiz Bacelar, foi preso nessa operação da PF, acusado de facilitar o esquema dos madeireiros. “Eu encontrei um quadro catastrófico. O passivo é enorme, muito grande mesmo”, afirma. “É uma região que não vai se resolver nem em cinco nem em dez anos.” Milhares de beneficiários indevidos, conflitos violentos, assentamentos bloqueados e não regularizados, desmatamento crescente. O balanço feito por Chalito dá a dimensão do desafio que o Incra e a sociedade têm pela frente no oeste paraense.
O que aconteceu na sua exoneração? Foi o senhor que pediu?
Minha saída veio no âmbito da crise institucional que nós vivemos. E não fui eu que pedi a saída. Foi uma indicação política que se deu no centro do governo por conta dos conflitos institucionais que temos no Brasil. Muitos até insinuaram que eu fosse do PMDB, que com o partido saindo do governo eu estaria saindo também, mas não foi isso. Eu não tenho ligação com partido nenhum, mas tenho um lado político, apesar de ter sido escolhido por um critério técnico. Mas o meu lado político é trabalhar com os beneficiários da reforma agrária, com as suas entidades associativas, sindicatos e cooperativas. Dentre as várias alternativas, esse é o público com quem eu me relaciono, né? Diante dessa minha opção, muitas dessas organizações entenderam e prestaram apoio político a essa proposta. Isso se refletiu até com a publicação de uma nota de apoio à minha gestão, com várias entidades da região. Me surpreendeu, mas acho que a postura que eu tive lá contribuiu para isso.
O novo superintendente – Adaías Gonçalves, exonerado poucos dias depois – tem alguma ligação com algum partido político?
A gente tem informações que ele tem ligações com um deputado federal do município lá de Santarém, que é o deputado Francisco Chapadinha (PTN-PA). Nesse arranjo de forças dos partidos saindo da base aliada e outros entrando, o meu cargo foi repassado nesse esforço de recompor o governo.
Como foi assumir a superintendência após o escândalo da Operação Madeira Limpa? Que quadro o senhor encontrou?
Eu sou da superintendência do Incra no Paraná, não sou de Santarém. Quando eu cheguei lá, eu encontrei um quadro catastrófico. Numa escala de gravidade, eu diria que de 0 a 100 chegou perto de 100. E quais são os indicadores? Eram os conflitos internos entre servidores, o clima tenso que tinha. A quantidade de processos de forma irregular que estavam inclusive para o superintendente só fazer o despacho, e eu não concordei porque eu já conhecia minimamente os trâmites do Incra e eu falei: “Isso aqui tá tudo errado! Pularam aqui umas quatro, cinco etapas. Vamos ter que voltar, montar comissão”. Tive de barrar vários processos por vícios em outras etapas. Esses são alguns exemplos. Além do próprio trauma da prisão do ex-superintendente que aconteceu no meio de muitos lobistas de empresas, muita gente de fora do Incra que estava vindo para dentro do Incra para dar encaminhamento aos processos dentro dos interesses deles. Isso foi a visão de imediato. Eu já tinha noção disso, já tinha ido sabendo do passivo que ia encontrar. Só que eu sabia que os passivos não iam estar só nessa primeira impressão, a gente tinha que investigar e fuçar. Dentre os passivos maiores, teve as irregularidades dentro de assentamentos que no mês passado a CGU bloqueou no Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária – Sipra –, mais de 12 mil beneficiários. Nós tivemos mais de 15 convênios bloqueados, sem solução, com falta de parecer técnico, prestação de contas final. Na parte de supervisão ocupacional, a gente constatou irregularidades em quase todos os assentamentos — tem 150 projetos de assentamento lá, eram poucos que não tinham problemas de grandes posses dentro, com gente acumulando 20 ou 30 lotes. Eram os chamados “fazendeiros” dos assentamentos, o que gera conflito, extração ilegal de madeira. Outro ponto era que muitas peças técnicas foram feitas de maneira não adequada há algum tempo e aí provocou sobreposição de um assentamento com outro, sobreposição, por exemplo, de criar terra indígena sobre áreas de assentamento. E lá estão os assentados tendo agora a necessidade de serem remanejados — e o Incra impotente, sem capacidade de fazer isso. Isso aconteceu no assentamento Campo Verde, em Rurópolis, em que foi criada uma Resex que se sobrepôs a um assentamento do Incra de mais de 20 lotes. Aí uma terra indígena também, Cachoeira Seca, sobrepôs outro assentamento de 160 lotes. Tem assentamentos sobrepostos ao Parque Nacional da Amazônia, em Itaituba. Outro problema também foi nas áreas de várzea de rio, onde o Incra tem 49 projetos de assentamento. São os PAEs – Projetos de Assentamento Agroextrativistas –, com os povos ribeirinhos, com mais de 9 mil famílias. Ali o Incra não conseguiu encaminhar a aplicação de políticas públicas, que são os créditos de fomento, porque o Incra não conseguiu emitir o CCDRU, que são os certificados de cadastro dessa população. E esse é um problema que o Incra vai ter que resolver com a SPU [Secretaria de Patrimônio da União, órgão ligado ao Ministério do Planejamento], que é dona dessas áreas marinhas. Naquela região tem muitas famílias, muitas mesmo, que vivem literalmente dentro do rio. Esses territórios não são territórios secos, chamados de gleba, que dá para ser registrado através de matrículas em cartório. Outro passivo é, sim, essa Ação Civil Pública de 2007 sobre essa questão de criação massiva de assentamentos. Então esses são os problemas principais que geram um passivo tão grande que, hoje, seria necessário multiplicar aquela superintendência por mais de dez para dar conta de tudo isso.
Por mais de dez?
Com certeza. Por mais de dez a capacidade que tem hoje lá. Tem algumas coisas que é muito difícil até da gente priorizar porque tem muitos casos em que pode ocorrer morte de gente. Tem caso ali que a Floresta Amazônica está se transformando em cinzas. E quem está fazendo isso não são os pequenos — são os médios e grandes. É uma região que é muito difícil, que não vai se resolver em cinco nem em dez anos. Muita gente vai sofrer demais nesse meio-tempo ali. Então essa foi a agonia que eu encontrei, vindo de uma outra região completamente diferente, e enfrentei lá e fiquei estarrecido.
Sobre a ação do MPF, houve um bloqueio judicial. Há alegações fortes de funcionários admitindo terem criado assentamentos sem o rigor técnico necessário. Pelo que o senhor viu de lá de dentro, isso de fato aconteceu?
Essa ação se refere aos assentamentos criados entre 2005 e 2006. Foi logo após a superintendência ter sido criada, porque ali antes era uma unidade avançada que pertencia à superintendência de Belém. Por conta de alguns acontecimentos, principalmente a morte da irmã Dorothy Stang, aí que foi criada a superintendência de Santarém. Havia ali uma série de problemas nessa região a se resolver e foram criados realmente ali na região muitos projetos de assentamento e isso fez com que o Ministério Público alertasse para as peças técnicas que estavam sendo produzidas. Aí em 2007 o MPF ajuizou uma ação civil pública e determinou que o Incra montasse um grupo de trabalho para refazer ou então para fazer algumas peças técnicas que faltavam. E é verdade: os projetos daquela época foram criados sem as peças técnicas principais, a maioria delas era licenciamento ambiental e alguns outros problemas, como as sobreposições que eu citei. Aí o Incra agiu dentro desses grupos de trabalho e produziu muitas peças técnicas depois da criação dos assentamentos, até 2011. Em 2007 foram interditados 106 assentamentos. O Incra foi repassando as análises e alguns foram liberados. Outros foram cancelados. Ficaram três situações: alguns foram cancelados, e já ficou programado para o Incra refazer as peças técnicas e recriar esses projetos dentro do rito normativo adequado; tem os assentamentos que permanecem interditados, e aí necessita do Incra encaminhar os documentos; e teve os assentamentos liberados, que são aqueles sobre os quais o Ministério Público já se manifestou. Ocorre que essa ação civil pública estava na Vara Federal de Santarém, só que em 2011 o tribunal se manifestou e o processo subiu para Brasília. E 63 projetos permaneceram interditados. E esses projetos abrigam, eu acredito – estou sem as planilhas aqui –, mais de 10 mil famílias. É uma quantidade muito alta. O problema é que, quando o processo subiu pra Brasília, de 2011 a 2015, ele ficou parado, tanto que ainda não foi julgado. Nem em Brasília nem na superintendência foram encaminhados os demais trabalhos técnicos. Só que não dá para esses projetos simplesmente ficarem parados, porque os problemas ali dentro foram se avolumando. As famílias que já estavam assentadas, não recebendo o mínimo de assistência das políticas públicas, foram saindo, indo embora para outros locais. E aí começaram a chegar os posseiros em conluio com os madeireiros. Os conflitos e o desmatamento aí se avolumaram demais.
Que tipo de prejuízo essa criação acentuada de assentamentos sem rigor técnico gerou?
O primeiro ponto é o desmatamento. Você tem um desmatamento descomunal ali. Queimadas assim… Na época de seca, que é quando eu fui pra lá, fica insuportável. No mês de novembro, a gente sentia o cheiro da fumaça no ar dependendo do horário. Principalmente de noite era insuportável aquilo. Outro grande problema foram os conflitos: se estabeleceu conflito em todos eles. Não tem praticamente nenhum assentamento que não teve grandes conflitos com ameaças desses grandes posseiros e madeireiros que vão lá retirar madeira e inclusive expulsão de algumas famílias. A pobreza em que algumas famílias se encontram nessas áreas interditadas também é muito grande. A agressão à dignidade das famílias que estão ali é outro prejuízo que a gente pode mencionar. É um problema bem forte que se agravou.
Há quem diga que o processo de criação desenfreada se associa ao fim da II PNRA (Política Nacional de Reforma Agrária). O que o senhor acha?
Em grande parte pode até ser verdade. Essa criação de assentamentos influencia na meta da instituição, sim, além do próprio desempenho dos servidores. Isso ajuda bastante. Quanto ao final da PNRA, é difícil afirmar com certeza porque é um pouco interpretativo. Alguns decidiam, naquela época, que a criação de assentamentos era a melhor coisa a fazer, porque aquilo assegurava que a terra pública iria para a reforma agrária. A gente assegurava o apoio às famílias e assegurava que as terras não seriam destinadas, por exemplo, para grandes empreendimentos. Mas não sei se só a criação desenfreada é responsável por esse caos que eu te falei. Eu tenho dúvida se a interdição do MPF feita após a ação civil pública foi realmente a melhor saída. Quem sabe poderiam ter sido negociadas algumas situações. Algo do tipo: “Olha, você vai regularizando aqui, mas vai garantindo o atendimento das políticas públicas para os assentados”. Lá está cheio de gente, cheio de famílias. O problema se agravou muito nessa paralisação. O principal problema que aconteceu foi esse, associado à baixa capacidade operacional na região. O Incra tem baixa capacidade, mas também tava impedido de atuar naquela região. Essa interdição nos deixou impotente todo esse tempo. A gente via as coisas acontecerem, via situações e tentava regularizar, mas sabia que seria inútil porque o Incra não poderia levar as políticas públicas até lá.
O Incra tentou atuar de alguma forma para conter o desmatamento nesses assentamentos?
O tempo em que eu fiquei lá foi muito pequeno. Eu fiquei seis meses e meio. A gente teve que focar os problemas internos na superintendência, nos processos administrativos e procedimentos que estavam ali provocados pela postura e a forma como a gestão anterior tinha encaminhado. Mas essa parte do desmatamento teve demais. O próprio IPAM [Instituto de Pesquisa da Amazônia] afirma que o desmatamento aconteceu ali muito pela não entrada das políticas públicas de preservar o direito das famílias que estavam ali. O simples fato de aplicar as políticas públicas e ter o Estado brasileiro dentro desses assentamentos, isso afasta as atividades clandestinas. Com o afastamento completo do Estado, as atividades clandestinas se avolumaram sem que o Incra pudesse tomar providências em relação a isso.
Por que há tantos casos de sobreposição de assentamentos com outras categorias fundiárias, como terras indígenas e unidades de conservação?
Alguns deles foi a questão de informação mesmo. Houve uma criação de uma terra de outra categoria fundiária e depois foram notar que o Incra já tinha criado um assentamento naquele local. Na região de Rurópolis, por exemplo, foi criado um assentamento em cima do outro. O assentamento Milho Verde foi criado ali e foi um assentamento que foi, inclusive, cancelado nessa ação civil pública do MPF. Só que aí ficaram as famílias numa área em que parte era reserva de um outro assentamento e parte em cima de áreas onde já tinha família, onde o Incra já tinha assentado outras pessoas. Isso foi um dos problemas que aconteceu por falta, talvez, de uma base de banco de dados. Não sei se a gente pode estabelecer uma análise crítica dos procedimentos da Funai, mas o fato é que criaram uma terra indígena em cima de áreas de assentamento. E aí sobrou para o Incra resolver essas situações. Ou seja, o Incra criou de forma adequada, não foi o Incra que criou esse problema específico. E houve um caso de uma reserva extrativista, criada pelo Ibama e mais tarde gerida pelo ICMBio, que foi da mesma forma. Eles criaram uma reserva em uma área que já tinha destinação pelo próprio governo federal. São critérios também de outros órgãos que deveriam ser verificados. Aí algumas coisas até se avançou, hoje você tem um grupo de trabalho entre Incra e ICMBio para a destinação de todas as terras para áreas de reserva extrativista, eles consultam o Incra para saber do interesse do Incra na terra. É lógico que o interesse deles prevalece, mas é consultada também a posição do Incra.
Esses casos ocorrem só por uma questão técnica ou entrariam outros fatores, como corrupção ou questões normativas, por exemplo?
Alegar que há processos de corrupção é complicado. Eu não tenho as informações adequadas para afirmar isso com convicção. Óbvio que eu também não descarto essa possibilidade de existir. Mas a carência técnica eu tenho certeza que existe. Se tivesse um banco de dados com todas as informações naquela época de criação desses assentamentos, com uma precisão boa dos mapas, não teriam acontecido todos os problemas que aconteceram. E quem está pagando por isso são as famílias.
No caso do PA Ypiranga, houve um relatório de vistoria que constatou que havia uma grande diferença entre o mapa que constava na sede geral do Incra, em Brasília, e os mapas que constavam na superintendência de Santarém. Isso é frequente? Há muito desencontro de informações entre a sede do Incra e as superintendências?
Isso a gente notou, sim. Alguns desses casos já até sabemos como aconteceu. Por exemplo, o superintendente anterior do Incra, que inclusive continua preso até hoje, uma das formas que ele agiu foi essa. Ele diminuía o tamanho dos assentamentos na base da superintendência, forçava as famílias a sair daquela área e destinava para grandes posses. Uma dessas grandes posses foi para um empresário que também foi preso nessa operação, um empresário que explorava açaí. Então essa é uma forma do modus operandi daquela atuação que foi questionada nas operações policiais feitas sobre a gestão anterior. No caso do Ypiranga também aconteceu, assim como no projeto de assentamento Areia também. Eu tenho dificuldade de afirmar se esses têm essa relação direta de uma atuação criminosa como aconteceu em outros casos.
Em quantos PAs houve essa atuação criminosa da gestão anterior?
O processo corre sob sigilo, eu ainda não consegui ter vistas do processo. Já se sabe do projeto de assentamento Cruzeirão, que fica no município de Óbidos, que foi o assentamento onde mais aconteceram irregularidades. Houve uma redução de mais de 40 mil hectares. Reduziram uma área muito grande para quase a metade, e dentro dessa área do assentamento foi que uma dessas empresas de açaí se instalou. Tem outros assentamentos que são citados nesse caso, mas eu não consigo dizer por dificuldades de acesso ao processo.
Como era a influência dos madeireiros dentro da superintendência quando o senhor chegou?
Em muitos casos, a gente não conseguiu fazer essa vinculação. Constatamos que o mapa do assentamento estava reduzido. Nós tentamos verificar quem fez a redução, o que aconteceu. A gente via lá que tinha áreas de assentamento fora do perímetro definido nas bases, aí verificávamos na base que tinha redução dos projetos pelos processos administrativos. A gente não conseguiu avançar tanto na parte da responsabilização. Vimos também que, em muitos casos em que houve a redução na superintendência, houve a tentativa de regularização posterior pelo programa Terra Legal. Aparentemente tem uma vinculação disso: há uma redução dos processos de assentamento, eles forçavam os assentados a sair, ficavam com a posse para os laranjas e aí regularizavam pelo programa Terra Legal, e assim eles transformavam em uma área particular uma área que seria para projetos de assentamento de reforma agrária. Essa questão de mudança de tamanho dos assentamentos aconteceu em quase todos os assentamentos que estavam na ação da MPF.
Como funcionava o esquema? O superintendente facilitava a entrada dos laranjas das madeireiras na relação de beneficiários?
O que a gente soube foi isso que aconteceu, foi inclusive o que foi manifestado pela própria Polícia Federal e o Ministério Público.
Como tanta gente sem perfil de reforma agrária consegue entrar na relação de beneficiários? No caso do PA Ypiranga, há uma denúncia nesse sentido…
No caso do assentamento Ypiranga, um dos que concentraram uma quantidade enorme de lotes estava na relação de beneficiários do Incra. Só que ele foi beneficiado com apenas um lote. Na época de inclusão, ele foi beneficiado como tendo perfil e aí depois disso é que ele veio fazer essas concentrações de terra. Essa pessoa já foi notificada para devolver e reassentar no lote, inclusive as pessoas que foram expulsas dessa área. O Projeto Ypiranga tem uma especificidade que um desses reconcentradores entrou nessa área, aí curiosamente a área do projeto também foi reduzida. E eles entraram com um processo na Justiça e conseguiram um despejo de várias famílias, inclusive de forma violenta, que estavam ocupando a área legalmente, em uma decisão de uma vara que nem era a vara agrária. Isso está em processo dentro do Incra ainda. A intenção é que essas famílias sejam reassentadas e que esses lotes sejam reintegrados. Nos outros assentamentos, tem casos dos mais diversos. Inclusive a região ali de Santarém é o maior foco de homologações indevidas. E tem casos realmente em que muitas famílias que não tinham condição entraram na relação de beneficiários. Tem muitos casos em que ou por displicência ou por descuido dos servidores, não sei se teve corrupção. Mas, por algum motivo, houve a regularização de muita gente que não deveria ter entrado na relação de beneficiários. São os mais diversos problemas que acontecem.
Mas para reger o processo de relação de beneficiários falta infraestrutura, aparato técnico?
Falta bastante. Uma das agonias lá da superintendência é que a gente já dispõe de uma quantidade razoável de mapas e já dispõe de uma quantidade razoável de técnicos que sabem trabalhar com esses mapas. Mas a quantidade de equipamentos é pequena, tem muitos mapas que são malfeitos, porque foram feitos à mão. O Incra não dispunha de equipamentos para fazer esses mapas. E eles continuam hoje. Tem mapas de um metro e pouco de comprimento que poderiam ser digitalizados, mas temos dificuldade de fazer dentro do Incra. Tendo essa disponibilidade e caso a gente consiga avançar, vai evoluir muito não só nessa parte geográfica, como até nos atributos das parcelas como: nome do parceleiro, número do código no Sipra, área, enfim. Uma quantidade enorme de informações que poderíamos vincular a essas informações geográficas.
Quais as tentativas que o senhor fez para tentar enfrentar o quadro que o senhor deparou na superintendência? Como foi a experiência de consolidação da Ouvidoria Agrária Nacional e o GT de regularização fundiária?
Foram duas atividades bem diferentes. O grupo de trabalho vinculado aos assentamentos interditados foi o seguinte: em 2005 e 2006, foram criados os assentamentos; em 2007, houve a ação civil pública; entre 2007 e 2011, o Incra fez as operações para produzir as peças técnicas; em 2011, o juiz sentenciou e mandou o processo para Brasília. De 2011 a 2015, o processo ficou parado. E aí, logo que eu assumi, em setembro de 2015, até mesmo pressionado por parte das organizações dos assentados e por parte dos servidores da superintendência, nós propusemos um grupo de trabalho até para fazer a análise direitinho de todos esses assentamentos, ver quais estavam interditados, onde estavam os processos para que o pessoal pudesse fazer essa análise. Esse GT iniciou esse trabalho ainda no mês de outubro e começou a fazer a análise para verificar o que o Ministério Público alegava que faltava e o que o Incra já tinha produzido que não faltava mais para produzir um relatório. Isso foi norteando o que o Incra deveria fazer para propor ao Ministério Público para avançar nesses processos. No mês de janeiro deste ano, nós fizemos uma reunião com o MP a respeito desse tema. Nessa discussão, a gente se entendeu e a gente sugeriu que iria permanecer com esse grupo e continuar naquela mesma análise. O MP se comprometeu a dar prioridade nesse processo. E a gente queria propor encaminhamentos para que a situação fosse encaminhada mais rapidamente, para reduzir o prejuízo das famílias. Essa é a situação que eu deixei lá. Já foram feitas as análises de mais de 15 processos daqueles 63 que eu mencionei antes. A gente estava conseguindo avançar internamente. Fizemos também uma mudança em toda a equipe de gestão. Não conseguimos mudar tudo, porque era uma quantidade imensa de problemas e faltava gente para resolver todos os problemas. Outra coisa que nós criamos foi a Ouvidoria. Duas coisas que aparecem muito para quem olha para a Amazônia são: conflitos e desmatamento. Para o desmatamento, a gente precisa de um sistema de meio ambiente muito bem equipado dentro da superintendência, e para a parte dos conflitos, nós precisamos dessa Ouvidoria Agrária montada e com autonomia para poder intervir nos conflitos violentos, para reduzir o risco de morte. A Ouvidoria nem tinha ouvidor quando eu cheguei. A gente indicou no mês de dezembro do ano passado. Mas a Ouvidoria consegue fazer com que muitos desses conflitos se resolvam sem que precise chegar à superintendência. A Ouvidoria que a gente montou já estava em contato com o Ministério Público Estadual. Não conseguimos implementar totalmente ainda, até porque eu fui surpreendido pela exoneração. Mas a Ouvidoria é imprescindível, é o número um para conseguirmos agir na situação de violência na região.
O que o senhor acha que teria de ser feito dentro da superintendência para que esse quadro não se repita?
Primeiro é uma modernização tecnológica e capacitação dos servidores para lidar com essa base de dados. Depois seria criar grupos de trabalho específicos para lidar com todas essas iniciativas. A gente precisa confrontar essa seleção dos assentados, o perímetro dos assentamentos. E em termos de campo precisamos ter uma supervisão ocupacional bem consistente na maioria dos assentamentos. Tem muitos casos de assentados que concentram posses muito grandes e muitos nem têm perfil, não moram no lote, ou moram no lote e têm atividades fora do assentamento.