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Quatro professoras perseguidas por palavras e atividades nas escolas dão seu depoimento à Pública

Reportagem
30 de agosto de 2016
12:01
Este artigo tem mais de 8 ano

Apesar de os projetos de lei baseados no Escola Sem Partido ainda não terem sido aprovados em nenhuma instância (a não ser no estado de Alagoas, com o nome de Escola Livre), vários professores de todo o país estão sendo perseguidos, processados ou respondendo sindicâncias por “doutrinação ideológica” – um conceito que vem ganhando força, como aconteceu com a “ideologia de gênero”. Abaixo, depoimentos de quatro professoras que foram ou estão sendo perseguidas, receberam ameaças e mensagens de ódio e ou respondem sindicâncias junto aos órgãos de educação.

Cleonilde Tibiriçá, ex-professora da Fatec Barueri, em São Paulo (SP):

(Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)
(Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)

“Eu não sabia da existência do Escola Sem Partido até a ocasião. Eu dava aula na Fatec de Barueri, em São Paulo, desde sua inauguração em 2009 e em 2013 eu era a professora mais antiga na casa. Tinha sido coordenadora do principal curso de lá, de Comércio Exterior, e era professora concursada da disciplina de Comunicação e Expressão. Estou no Centro Paula Souza desde 2007, já dei aulas em Etecs e Fatecs e em diversas faculdades. Eu trabalho a língua a partir de textos ancorados em um contexto geográfico, sociopolítico. Porque em geral os alunos não entendem nada de gramática e vocabulário, porque a língua é trabalhada fora de contexto; aí eles morrem de tédio e não sabem fazer uma análise sintática porque não veem como isso funciona na vida real. Quando você coloca isso como coisa viva, que dialoga com a realidade, o negócio muda de figura. Sempre funcionou, sempre tive muita adesão dos meus alunos. E no meu plano de ensino estava lançado o que eu iria trabalhar no semestre; sempre trabalhei com a aprovação da direção. Tinha lá Hobsbawm, Milton Santos, Chico Buarque, Paulo Freire. Tinha também muitos artigos, alguns da Carta Capital, alguns da Veja. No segundo semestre de 2013, percebi a presença de um aluno estranho, com umas perguntas estranhas. Ele vinha me sugerir textos do Reinaldo de Azevedo e eu dizia: ‘Tudo bem que você faça essas leituras, mas a gente tem coisas melhores pra ler em sala de aula’. Os textos que ele trazia vinham sempre do Instituto Millenium. Eu só descobri tardiamente que esse moço de 35 anos era ligado a este instituto e ao Escola Sem Partido. Em outubro daquele ano, eu recebi um e-mail do Miguel Nagib, coordenador do ESP, dizendo que tinha recebido uma denúncia e uma série de documentos referentes a minha prática doutrinária em sala de aula. Dizendo que iria publicar três artigos e estava me avisando para que eu me defendesse. Eu respondi dizendo que não autorizava a publicação de artigo nenhum, que ele não me conhecia e que, se algum aluno tinha passado informações pra eles, eram informações que circulavam no interior de uma relação pedagógica e que ele não deveria ter acesso a isso. Ele ignorou minha resposta e publicou. A primeira publicação ele mandou com cópia pro diretor da Fatec de Barueri, para a superintendente do Paula Souza e para o Geraldo Alckmin. Ele dizia que eu fazia aquela prática com o dinheiro do contribuinte. Que merecia sindicância para exoneração. Eu comecei a receber uma série de apoios de professores, alunos, familiares e, por outro lado, eu exigi que a instituição saísse na minha defesa, já que meu plano de ensino estava autorizado há anos pela minha direção e pela minha coordenação. Eu tinha concurso público que atestava que eu era capacitada a exercer minha função. Eu tinha um memorial que atestava minha experiência docente e tinha a Constituição a meu favor, já que a liberdade de cátedra é garantida lá. Minha instituição se recusou a fazer minha defesa pública, disse que não era necessário. Entrei em contato com a superintendência do Paula Souza, e eles me responderam que entendiam, que estavam absolutamente do meu lado, mas que a única pessoa que poderia fazer uma declaração pública era meu diretor. Aí meu diretor se recusou. Algum tempo depois eu descobri que ele enviou uma carta ao Nagib dizendo que já tinha aberto uma sindicância. Ou seja: o Miguel Nagib ficou sabendo primeiro que eu que minha organização estava abrindo uma sindicância para saber da minha ‘ação doutrinária’. Pouco tempo depois, eu recebi de um colega professor um print em que meu coordenador curtiu uma matéria do Rodrigo Constantino em que ele estava me denegrindo. Ou seja, sem diálogo, sem conversa, sem nada, a instituição se alinhou à denúncia do Miguel Nagib. Então procurei novamente a superintendência, eles me receberam, eu fiz uma denúncia por escrito e solicitei a minha transferência de lá. Hoje eu trabalho na coordenação de ensino superior do Paula Souza e dou algumas aulas em uma nova Fatec em Santana de Parnaíba. Mas o processo está correndo, não sei o que vai acontecer comigo. Minha advogada disse que dificilmente o Miguel Nagib vai conseguir o que ele quer, mas que no momento atual as coisas mudaram um pouco porque há dois anos ele tinha menos peso, o grupo tinha menos peso. Hoje ele já é visto com outros olhos. Eu recebi mensagens de pessoas malucas me ameaçando; no Inbox, no Facebook e na minha secretaria eletrônica, dizendo que eu não merecia só ser presa por doutrinar jovens contra a família e contra Deus, que eu merecia morrer. Outra disse que eu merecia arder no inferno. Na PUC chegaram a encontrar minha filha, porque ela estava no meu Facebook, indicaram quem era ela pra um maluco e ele começou a gritar: ‘Olha a filha da doutrinadora’. Tive que mudar meu e-mail institucional de tanta ameaça. Dizendo que eu era a pior espécie de professor, mas que graças a iniciativas como o Escola Sem Partido eu seria exterminada. Minha defesa foi processá-lo, e o processo está correndo. Nunca imaginei que algo assim pudesse um dia acontecer.”

Janeth de Souza e Silva, professora do Instituto de Educação Rangel Pestana, em Nova Iguaçu (RJ):

(Foto: André Mantelli/Agência Pública)
(Foto: André Mantelli/Agência Pública)

“Eu sou professora da rede estadual desde 1984 e estou respondendo a uma sindicância por ‘doutrinação ideológica’. Sou professora de inglês e defendo a escola pública como sempre defendi a vida toda. Estamos em uma greve de cinco meses aqui no Rio, e, toda vez que tem uma greve, eu converso com os meus alunos e explico os motivos das greves e o desrespeito que os governantes têm com a educação e os educadores. Acho que eles têm o direito de saber os motivos das greves que os afetam diretamente. E parece que agora isso é tido como doutrinação. Um belo dia eu dei minha aula e, quando estava saindo, me ligaram dizendo que eu precisaria comparecer à Metropolitana 1, que fica no centro de Nova Iguaçu e que responde pela Secretaria de Educação no meu município. Assim fiquei sabendo que havia uma gravação de 40 minutos de uma aula minha, que havia uma sindicância e que a acusação era doutrinação ideológica. Não fui chamada pela coordenação da escola, extremamente autoritária, fui chamada diretamente pela secretaria. Fiquei muito surpresa, mas continuo achando que, se eu for participar de uma greve, meus alunos têm o direito de saber os motivos, mesmo porque ensino futuros professores. Eu já poderia estar me aposentando pelos meus anos de trabalho, mas continuo na escola pública porque acredito que ela deve mudar, que a gente vai conseguir melhorar a educação, quero dar uma educação de qualidade aos meus alunos. A sindicância foi aberta em novembro de 2015 e até agora não tive qualquer notícia. Aqui no Rio de Janeiro, a gente tem a família Bolsonaro a nível federal, estadual e municipal. Portanto, nas três esferas temos representantes do Escola Sem Partido. Eu, inclusive, participei da audiência pública sobre o projeto e fiquei muito assustada com os depoimentos de algumas pessoas. Apareceu até um homem vestido de Hitler. Essa lei é um verdadeiro retrocesso.”

Gabriela Viola, professora de Colégio Estadual em Curitiba (PR):

(Foto: Mídia NINJA)
(Foto: Mídia NINJA)

“Enquanto professora, acredito que o conhecimento tem que ser construído em parceria com os alunos. Cada aluno traz o seu próprio conhecimento, cultura de vida, então um tema nunca é abordado da mesma forma. Eu levo um tema e a partir de um debate ele vira um conhecimento conjunto. E minha relação com os estudantes foi construída com muito respeito, nunca precisei tirar aluno de sala de aula ou aumentar o tom de voz. E nunca tinha sofrido qualquer tipo de repressão antes do ocorrido. O ataque veio por parte de páginas de direita, principalmente por causa do autor escolhido e do ritmo de música, que é marginalizado dentro da sociedade. Existem pessoas que pensam que sua cultura é superior a outras e é um pensamento etnocêntrico. E em cada ano do ensino médio a sociologia vai focar em um aspecto. O primeiro ano do ensino médio é mais voltado à sociologia, quando os alunos entram em contato com os pensadores clássicos como Durkheim, Marx e Weber. O segundo ano é um estudo de cultura e o terceiro ano, ciência política. Esse trabalho foi realizado no primeiro ano, e eu já tinha trabalhado outros autores. Hoje em dia, a sala de aula não é mais atrativa, é um desafio para o professor fazer com que a sala inteira participe da sua aula, que se envolva com o debate, e não apenas copie no caderno. A paródia [versão do funk Baile de favela com letra falando das teorias de Karl Marx] foi uma forma que eu encontrei de fazer a sala toda participar do conteúdo. Eles que escolheram o estilo musical, fizeram a paródia. O que eu fiz, que é um papel da sociologia, foi pegar algo que estava pronto na sociedade, desconstruir isso e construir algo novo. A gente ressignificou. Aí postei a música no Facebook no domingo à noite, e, no dia seguinte, o vídeo já estava em um monte de páginas, inclusive dizendo que era doutrinação ideológica. Algumas páginas de direita me ameaçaram. Na segunda-feira à noite, o vídeo já tinha 150 mil visualizações. A coordenação do colégio me chamou e disse que era pra eu ficar em casa enquanto o Núcleo Regional de Educação resolveria o que fazer com meu caso. Não chegaram a se opor oficialmente, mas o fato de me mandarem pra casa fez como que os alunos se mobilizassem no colégio e houve duas manifestações, de manhã e à noite, e também criaram a hashtag #VoltaGabi. Na mobilização da noite, a patrulha escolar foi chamada, mas apareceram três carros da Rotam. Acho que ninguém esperava essa pressão dos alunos e acho que a repercussão negativa de me mandar pra casa influenciou na decisão de me trazer de volta. Nós, professores, estamos sendo massacrados, apanhamos na rua quando pedimos melhor alimentação nas escolas, estamos sofrendo cortes. Então, esse projeto Escola Sem Partido não quer a qualidade da educação. Ele vem de setores fundamentalistas que querem cada vez mais uma sociedade passiva e ignorante. A escola sem partido é escola de um partido só.”

Alice Aparecida e Silva, professora do Instituto de Educação Estadual de Londrina (PR):

(Foto: Allan Ferreira/Agência Pública)
(Foto: Allan Ferreira/Agência Pública)

“Eu sou professora de geografia, atualmente trabalho com ensino médio regular, profissionalizante e fundamental 9º ano e sou professora há 22 anos. Em junho, aconteceu um evento organizado pela equipe multidisciplinar do colégio em que nós debatemos a questão de gênero, desde violência contra a mulher, cultura do estupro, orientação sexual em toda a sua diversidade, e culminou no Dia Mundial do Orgulho LGBT. Nós falamos também sobre a questão geracional, acessibilidade, idosos e prevenção de drogas, foi um trabalho amplo chamado ‘Diversidade e Sustentabilidade’. Nosso trabalho foi recortado e denunciado ao Juizado da Infância e Juventude por um advogado que tem um blog chamado “Endireita Londrina”, dizendo que estávamos estimulando a erotização infantil e trabalhando a ideologia de gênero – o que, aliás, precisamos discutir porque não existe ideologia de gênero – e ensinando pornografia. Tudo porque um dos grupos, que estava trabalhando a questão da orientação sexual, levou uma drag queen para fazer uma performance na hora do intervalo. Foi uma série de atividades, mas o enfoque foi na performance da drag e em um pedaço de um filme chamado O homossexual não é perverso, perverso é o ambiente onde ele vive, de 1971. Um professor do próprio colégio fez o recorte, ele é amigo desse advogado Felipe Barros, que se apresenta como um defensor da família, da moral, da fé. A drag fez uma dança e três trocas de roupas, estava com todas as roupas. Isso está sendo chamado de pornografia. Essa atividade aconteceu no turno em que temos só alunos de ensino médio. E, em todo o trabalho que foi feito, foi feita uma arrecadação de fraldas geriátricas; professores e alunos falaram sobre o que pensam sobre drogas, direitos, deveres, diversidade sexual. Foi um semestre nesse trabalho que culminou nessas apresentações. Nós respondemos que não infringimos nenhuma lei, que trabalhamos com o conteúdo do MEC e que o foco foi o respeito à diversidade – rompermos com o machismo, homofobia, preconceito contra o idoso, responsabilidade ambiental, respeito ao outro. Fizemos esse trabalho com adolescentes, não havia crianças na escola. Eu fui muito ameaçada na página do advogado. O processo está correndo e seremos chamados pra nos defender. Já abrimos um processo contra o professor e contra o advogado. Esse advogado orienta estudantes a filmar as aulas pra denunciar os professores, como na lei da mordaça. Nas redes sociais, sofremos muito ataque, assim como na página dele. Alguns dizendo que não servimos nem pra dar aula para animais. As defesas que foram feitas nas páginas foram excluídas. As manifestações homofóbicas, machistas e racistas na escola são recorrentes. Trabalhar esses temas é fundamental. Nós vivemos em uma sociedade bastante preconceituosa e excludente, e a escola é o reflexo desse contexto.”

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