Durante o primeiro semestre de 2010, por meio da prefeitura e da Caixa Econômica Federal, o PMDB do Rio liderou a articulação do atual arranjo do Porto Maravilha, que faz jus ao título de “engenhosa operação financeira” dado pela Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (Cdurp). Esse órgão do município comprou terrenos públicos da região, repassando-os, pelo mesmo preço, a um fundo imobiliário administrado pela Caixa, o Fundo de Investimento Imobiliário do Porto Maravilha (FIIPM).
Por sua vez, o Fundo os negocia no mercado, provendo recursos para a Concessionária Porto Novo (Odebrecht, OAS e Carioca Christiani Nielsen) executar as intervenções e serviços previstos na maior parceria público-privada (PPP) do Brasil. Então, para construir, as incorpordoras compram ou negociam Certificados do Potencial Adicional de Construção (Cepacs), que permitem a construção de mais andares do que o permitido pela legislação. Assim o Porto Maravilha pode receber grandes arranha-céus e hoteis de luxo.
A reportagem descobriu que em 2010, enquanto acertava a entrada do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) na operação para garantir o pagamento da PPP, a Caixa subavaliou dois terrenos fundamentais para alavancar a operação. Ambos pertenciam à Secretaria do Patrimônio da União (SPU), do Ministério do Planejamento. E depois o próprio banco comprou os imóveis e os disponibilizou no mercado, favorecendo assim as empresas que negociam na região.
Documentos internos do governo federal analisados pela Pública revelam que, em julho de 2010, a Caixa chegou a avaliar o Pátio Ferroviário da Marítima – de 116.125 m² – a R$ 373,8 reais por metro quadrado, enquanto o mercado imobiliário negociava terrenos naquela área, próxima à Cidade do Samba, por R$ 3 mil a R$ 4 mil por metro quadrado. Nessa mesma avaliação, de junho de 2010, outro terreno cobiçado, o Pátio da Praia Formosa, uma área de 23.809 m² próxima à rodoviária do Rio, foi avaliado em R$ 212,7 por metro quadrado.
A Secretaria do Patrimônio questionou o cálculo em ofício enviado em agosto de 2010. Elencou dez problemas com os critérios de avaliação. Entre eles, o fato de que os laudos da Caixa “não incorporam as expectativas de valorização da área e o impacto do projeto de revitalização” e desconsideraram o uso misto (residencial e comercial) previsto pelo projeto do Porto Maravilha.
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“A avaliação estava muito abaixo do aceitável. Havia uma pressão da prefeitura para que as áreas entrassem para o fundo por um valor muito abaixo do valor venal, de forma injustificável. O Ministério do Planejamento chegou a solicitar uma nova avaliação, porém foi orientado pela Presidência a não intervir no assunto”, relata um representante do governo federal que acompanhou de perto as negociações.
Após questionamentos, inclusive no Conselho de Administração da Caixa, os terrenos foram de fato repassados para o FIIPM em 2012 com valores um pouco maiores: o Pátio da Marítima foi encaminhado por R$ 23 milhões (R$ 981/m2) e o terreno da Praia Formosa por R$ 53 milhões (R$ 457,3/m²). Em novembro de 2010, a partir de uma amostragem definida pelos avaliadores, o prospecto do Porto Maravilha estimava o metro quadrado da região entre R$ 620 e R$ 1.810.
De acordo com Jorge Arraes, presidente da Cdurp à época, hoje à frente da Secretaria Especial de Concessões e Parcerias Público-Privadas (Secpar) da prefeitura, no caso do Pátio da Marítima, o valor final foi 17% menor: “O valor que foi calculado ali foi para domínio pleno. Não atentamos para o fato de que a lei permitia só comprar o domínio útil. Ficamos com um crédito e depois a União ressarciu a prefeitura em terrenos por essa diferença”.
De acordo com dados de 2014 da Cdurp, o valor geral de vendas (VGV) estimado para o Pátio da Marítima é de R$ 1,8 bilhão e o da praia Formosa, R$ 7,8 bilhões. O índice mensura o potencial de faturamento de um empreendimento. O valor da transferência para o fundo do FGTS correspondeu a cerca de 1% do VGV estimado dois anos depois.
“Entre 2010 e 2012, construtoras e incorporadoras chegavam a desembolsar 40% do valor do VGV em terrenos onde empreendimentos com grande liquidez e apelo pudessem ser construídos, o que me parece ser, claramente, o caso dos imóveis situados no Porto Maravilha”, atesta Raphael Ferreira, advogado e perito em avaliação imobiliária.
Dentre os terrenos públicos considerados fundamentais para a operação (veja o mapa abaixo), o Pátio da Marítima e o Praia Formosa destacam-se por terem sido transferidos para o FIIPM a um valor bem menor do que outros, como o Clube dos Portuários, Cedae, Gasômetro e Galpão do Aplauso. Estes foram negociados entre o segundo semestre de 2013 e o primeiro de 2014 com valores que variam entre R$ 1.452 e R$ 1.999 por metro quadrado.
Jorge Arraes explica as discrepâncias com base no tempo. Segundo ele, por ter sido feita com a operação Porto Maravilha a pleno vapor, a avaliação dos outros terrenos públicos já refletia a valorização dos imóveis na região. “À medida que as obras foram acontecendo e o programa ganhando credibilidade, o terreno foi se valorizando”, explica. No entanto, a Usina do Asfalto – terreno do município próximo da Praia Formosa – também foi repassado em junho de 2012. Foram pagos R$ 41 milhões, o que significa R$ 2.899 por metro quadrado – 5 vezes mais do que Praia Formosa.
Certificados do Potencial Adicional de Construção, mais conhecidos como Cepacs
Cepacs são títulos imobiliários que podem ser negociados na bolsa de valores por meio da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Eles permitem a construção, em determinadas áreas, de mais andares do que o permitido pela legislação anterior da cidade. Por meio da Lei Complementar 101, de 2009, que modifica o Plano Diretor da cidade, o Porto Maravilha fatiou a região em zonas, como mostra o mapa acima. Para usufruírem desse potencial extra de construção, as empresas devem comprar os Cepacs do fundo do FGTS, que espera lucrar com a valorização da região.
Pertencentes à extinta Rede Ferroviária Federal, o Praia Formosa e o Pátio da Marítima estavam à espera de uma expansão dos ramais de trens que jamais aconteceu. Quando foram de fato transferidos para o FIIPM, em 2012, os terrenos eram ocupados pelo Consórcio Porto Novo e por escolas de samba como Vizinha Faladeira e Santa Cruz.
O Pátio da Marítima foi então negociado com a incorporadora americana Tishman Speyer, que está construindo um prédio corporativo de alto padrão com 21 andares. Em troca da cessão do trecho do terreno necessário para a construção e quase 195 mil Cepacs, o fundo imobiliário da Caixa será dono de 22% da área construída.
Parte do Praia Formosa foi negociada com a sociedade conhecida como Solace, formada pelo trio de empresas do Porto Novo, mais a REX, do empresário Eike Batista, e a ZI Participações. O grupo constrói um empreendimento residencial e um hotel. Além das terras, foram cedidos 68 mil Cepacs em troca de 26% da área a ser construída. Porém, até o momento, os sofisticados imóveis residenciais não foram concluídos – e não há previsão para isso. A empresa responsável pela construção limitou-se a informar à Pública que “o projeto e o cronograma de obras estão sendo readequados”.
Triangulação suspeita
Segundo a cientista política Betina Saruê, que estuda o Porto Maravilha, as terras que passaram por esse mecanismo financeiro acabaram voltando para a União, mas com menos controle e mecanismos de garantias. “A Caixa negocia o uso dos terrenos de acordo com o apetite do mercado [imobiliário]. Não existe a garantia de um percentual para uso habitacional”, diz.
Como a Cdurp repassou os imóveis ao fundo do FGTS pelo mesmo valor adquirido, e este os negociou com o mercado imobiliário, a possível subvalorização favoreceu às incorporadoras que investem na região, aponta Mariana Werneck, mestre em planejamento urbano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Na hora de negociar com o FGTS um negócio neste terreno, é claro que o investidor vai entrar com menos e, com a perspectiva de valorização no futuro, ele lucra mais. E os maiores investidores da região são as próprias empresas [Odebrecht, OAS, Carioca] que também participam da PPP”, diz a pesquisadora, cujo trabalho “Porto Maravilha: agentes, coalizões de poder e neoliberalização no Rio de Janeiro” será integralmente publicado no mês que vem pelo Observatório de Metrópoles. Ou seja: se o terreno vale menos, a incorporadora precisará investir menos quando entrar no negócio. “A subvalorização azeita a estrutura do Porto Maravilha, que introjeta a lógica de mercado no governo, mercantilizando terrenos públicos para um projeto privatizante e segregador”, diz.
Cdurp, Caixa e PMDB do Rio: uma sinergia especial
Entre 2007 e agosto de 2010, a vice-presidência de Fundos de Governo e Loterias da Caixa (Vifug) era ocupada pelo peemedebista Moreira Franco, ex-governador do Rio de Janeiro e atual secretário executivo do Programa de Parcerias e Investimentos do governo interino de Michel Temer. O cargo lhe garantia ingerência sobre o FGTS, que no final de sua gestão se transformou no principal fiador da operação do Porto Maravilha.
Desde sua criação, antes mesmo do anúncio oficial da entrada do FGTS, a Cdurp já apresentava uma sinergia especial com a Caixa. O comando do órgão recém-criado foi delegado a Jorge Arraes, que é ex-diretor imobiliário do fundo de pensão dos funcionários da Caixa. Ele escalou três ex-funcionários do fundo para assumir importantes postos na área financeira.
Forjada no primeiro ano do mandato inicial de Eduardo Paes, a operação financeira do Porto Maravilha foi consagrada em junho de 2011, quando a Cdurp vendeu todos os Cepacs ao FGTS por R$ 3,5 bilhões em um leilão de lote único. “O leilão da compra dos Cepacs foi uma encenação. O leilão foi feito para o FGTS. O edital expunha os termos acordados entre Cdurp e Caixa ao longo de meses de negociação”, aponta Mariana Werneck.
A Procuradoria-Geral da República (PGR), a Justiça do Rio, a Polícia Federal, delatores da OAS e Carioca Engenharia sustentam que Eduardo Cunha (PMDB-RJ) cobrou pelo menos R$ 52 milhões (1,5% do R$ 3,5 bilhões) em propina para liberar o dinheiro do fundo de infraestrutura do FGTS para o Porto Maravilha, por meio da Caixa. Entre os beneficiários, além do próprio Cunha, estaria Fábio Cleto, que assumiu a vice-presidência responsável pelo FGTS após Moreira Franco ter deixado o cargo. Além da indicação de Cleto, Cunha teria tido participação na indicação de Alexandre Gadelha para a presidência da Companhia Docas do Rio de Janeiro, que também possuía terrenos na zona portuária.
Sobre as acusações investigadas pela Lava Jato, Eduardo Cunha afirmou peremptoriamente que não recebeu nem combinou “com quem quer que seja, qualquer vantagem indevida, de nenhuma natureza.
Procurada pela reportagem, a Caixa não respondeu aos questionamentos da Pública.