Regulamentado pela Junta Militar que substituiu o general Costa e Silva no governo, o setor de segurança privada criou um ramo de negócios próspero para os membros das Forças Armadas e do aparato repressivo da ditadura. De acordo com documentos analisados pela reportagem da Pública, as empresas de segurança constituídas por esses agentes durante a ditadura se envolveram também em casos de tortura, assassinatos, desaparecimento, cárcere privado e outras violações de direitos humanos.
Os documentos examinados pela reportagem no Arquivo Nacional e no Arquivo Público do Estado de São Paulo são provenientes dos órgãos de segurança e tratam do período que vai do Decreto-Lei 1.034, de 21 de outubro de 1969 –promulgado para regulamentar o setor dois meses depois do afastamento de Costa e Silva, acometido por uma isquemia cerebral – até os anos da redemocratização. O decreto obrigava à utilização de “dispositivos de segurança” – vigilância ostensiva armada e sistemas de alarme – por todos os estabelecimentos de crédito. Essa foi a primeira vez que a segurança privada foi citada na legislação brasileira.
“Os roubos a banco vinham sendo praticados tanto por criminosos ‘comuns’ como pelas organizações da chamada ‘luta armada’ e geraram grande preocupação nos governos militares”, explica o pesquisador André Zanetic, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP).
O decreto conferiu poder de polícia no interior dos estabelecimentos de crédito também aos agentes de segurança privada, que, além do certificado de antecedentes criminais, tinham de obter um atestado ideológico emitido pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Para isso, os nomes dos candidatos eram submetidos ao SNI, que vetava aqueles com “inclinações subversivas”.
Os documentos mostram que nas capitais e no interior agentes de segurança privada, não raro associados ao aparato de repressão do regime, foram apontados como responsáveis por torturas, mortes e desaparecimentos.
Gama Lima e o “Cenimar privado”
A empresa de segurança privada Agents foi fundada em 1973 pelo primeiro-tenente da Marinha Francisco da Gama Lima Netto seis anos depois de ele ter passado à reserva – ele serviu no Centro de Inteligência da Marinha (Cenimar) entre 1963 e 1967. Rapidamente, a Agents se tornou uma das maiores do ramo no Brasil: chegou a contar com 200 carros e mil vigilantes. Entre suas clientes figuravam, por exemplo, a TV Globo, a Companhia Hidrelétrica de Furnas e o governo do Paraná. Também era de propriedade de Gama Lima a empresa Scorpion Comércio e Empreendimentos Ltda., especializada em equipamentos eletrônicos ligados à segurança privada. O tenente reformado fundou ainda a ASIS Brasil – Associação Internacional de Segurança, a filial brasileira da ASIS International, think tank estadunidense do ramo da segurança que reúne membros das esferas pública e privada.
Em suas empresas, Gama Lima se cercou de seus ex-colegas. O diretor técnico da Agents, por exemplo, era ninguém menos que Fernando Pessoa de Rocha Paranhos, capitão de mar e guerra que comandou o Cenimar entre 1968 e 1971. Paranhos está na lista final de agentes responsáveis por violações de direitos humanos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), implicado no sequestro do paraibano João Roberto Borges de Souza, estudante e militante do PCB, ocorrido em 7 de outubro de 1969. Segundo a CNV, Souza foi sequestrado por membros do Cenimar e do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) em Catolé do Rocha, Paraíba. O sequestro se deu depois de sua quarta prisão, quando, traumatizado pela tortura, passou a se esconder. Três dias depois, sua morte foi noticiada por uma rádio paraibana como afogamento em um açude de Catolé do Rocha. O corpo apresentava claros sinais de agressão. Segundo um boletim de 1974 da Anistia Internacional, ele foi jogado no açude depois de ter sido torturado até a morte.
Outro nome ligado ao Cenimar que aparece entre os contratados da empresa de Gama Lima é o ex-chefe do Grupo de Operações Especiais (Goesp) da Secretaria Estadual de Segurança da Guanabara, o inspetor José Paulo Boneschi. Ele chegou a chefiar o temido Departamento de Operações de Informações do Rio de Janeiro (DOI I). Boneschi era também um dos diretores da ASIS e foi citado no livro de Carlos Marighella Por que resisti à prisão (Edições Contemporâneas, 1965) como um dos principais torturadores que prestavam serviços ao Cenimar e ao DOPS da Guanabara. Entre os torturados por Boneschi está, por exemplo, Dilson Aragão. Filho de um almirante brizolista, ele foi preso pelo DOPS em 20 de maio de 1964. “Fui torturado no dia 27 de maio, das 14 às 17 horas, pelos agentes do DOPS, Solimar e Boneschi (…). Bateram-me dias seguidos e só me deixavam sair quando ficava desacordado”, contou Aragão em depoimento publicado no jornal Correio da Manhã.
O engenheiro Arnaldo Mouthé foi outro a denunciar Boneschi por tortura. “Fui colocado no escuro com um feixe de luz nos olhos, quando fui inquirido. A cada negativa às perguntas incriminatórias, recebia estrangulamento, socos, tapas e cuteladas. Fui insultado e ameaçado de morte e sequestro. Chegaram a ameaçar a minha família. Cheguei a perder os sentidos pelas cuteladas e estrangulamento”, relatou. “Os meus espancadores e torturadores são os agentes do DOPS à disposição do Cenimar, Sérgio Alex Toledo, Solimar e Boneschi e outros da Marinha.” Segundo o engenheiro, Fernando de Rocha Paranhos foi um dos oficiais da Marinha que assistiu à sua tortura. Boneschi consta como autor de vários outros episódios de tortura relatados no livro Torturas e torturados, do jornalista Márcio Moreira Alves, e é um dos torturadores listados no projeto Brasil: Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo.
Segundo reportagem dos jornalistas Chico Otávio e Alessandra Duarte, do jornal O Globo, o coronel da PM carioca Paulo César Amêndola, atual secretário de Segurança municipal do Rio de Janeiro, também trabalhava na Agents. Fundador do Batalhão de Operações Especiais da PM do Rio (Bope), Amêndola, que chegou a cumprir mandados de busca pelo Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) do I Exército, também já cumpriu missões pelo Cenimar. Em outra entrevista ao Globo, Amêndola contou que participou de uma missão na Bahia, onde prendeu o então militante do MR-8 César Benjamin, hoje secretário municipal do Rio (Educação).
Nos anos 1980, a empresa de Amêndola foi acusada de manter uma central de grampos clandestinos e chantagear diversas autoridades e instituições como o Banco Nacional de Habitação; o ex-deputado Antônio Ferreira; José Carlos de Borra, funcionário da Companhia Estadual de Habitação; o ministro-chefe do SNI Octavio Aguiar de Medeiros; e Ney Webster de Araújo, presidente da Companhia Auxiliar de Empresas Elétricas (Caeeb). A central seria comandada pelo delegado Walter Abreu, denunciado por um detetive particular que também fazia parte da empresa. A morte de um funcionário da Telerj, Heráclito de Souza Faffe, foi associada a Gama Lima. Acusado de integrar a central de grampos da Agents, Faffe foi morto com uma injeção letal na nádega esquerda. Sua morte nunca foi devidamente esclarecida.
Gama Lima foi associado também à morte do ex-jornalista e informante do SNI Alexandre von Baumgarten, mas a autoria desse assassinato nunca foi comprovada.
Sacopã: a tropa de choque privada das mineradoras da Amazônia
“Estamos interessados em nomeá-los nossos representantes para a limpeza da área de nossa sucursal em Altamira […]. Tivemos ótimas referências [de] vossa empresa nos serviços de “operação limpeza” no garimpo do Rio Traíra e no de Alta Floresta assim como na área da Brascan [em] RO.” Esse é um trecho de uma carta endereçada em janeiro de 1986 ao coronel da reserva do Exército Antônio de Almeida Fernandes, ex-comandante da Guarda Territorial de Rondônia – corporação civil que posteriormente se tornaria a Polícia Militar do estado.
A carta foi escrita por um representante da Payne Investment Company, fundo de investimentos americano com sede em Miami que estaria interessado em comprar parte da mineradora Oca, que desde os anos 1970 detinha concessões de lavra em uma área disputada por garimpeiros – onde hoje é o município de Senador José Porfírio, no Pará. O negócio dependia dos serviços de “limpeza” (expulsão dos garimpeiros da área de litígio) a cargo da Sacopã Prestação de Serviços, empresa de segurança privada com sede em Manaus e com atuação marcante em áreas de conflitos fundiários na Amazônia nos anos 1980, envolvendo, principalmente, mineradoras. A Sacopã era dirigida por três ex-integrantes do Comando Militar da Amazônia (CMA), órgão vinculado ao Exército: o coronel Antônio Fernandes, o tenente-coronel da ativa João Batista de Toledo, ex-chefe de polícia do CMA, e o tenente da reserva Tadeu Abrahão Fernandes. As negociações da Payne com a Oca não foram comprovadas pelos órgãos de inteligência, mas a carta demonstra que Payne conhecia algumas das práticas da Sacopã, que não eram lá muito secretas.
A discrição não fazia o estilo da Sacopã. Em uma entrevista ao repórter Laurentino Gomes, da revista Veja, em novembro de 1985, Tadeu Abrahão Fernandes se gabou da procura pelos serviços da empresa. “É tanto serviço que não dá para respirar”, disse. Quase a totalidade – 90% – dos vigilantes da empresa eram egressos das Forças Armadas, segundo o próprio Fernandes. Ela cobrava caro pelos serviços, sobretudo se houvesse risco de resistência nos conflitos agrários. “Não somos jagunços: somos prestadores de serviços, especialistas em posseiros e garimpeiros”, definiu o ex-tenente do Exército. Ele exaltou os dois feitos da empresa até então: a “limpeza” de territórios pertencentes às mineradoras Brascan e Paranapanema ocupados por garimpeiros no Mato Grosso e em Rondônia nos primeiros anos de vida da Sacopã, ainda no regime militar. Fernandes exaltava a Sacopã como “a melhor empresa de segurança rural do país”.
No alvorecer da democracia, a Sacopã continuava em alta. Outra mineradora, a Brasinor, contratou a empresa de segurança para dar fim a um conflito com garimpeiros que se arrastava desde 1983. A Brasinor havia comprado concessões para exploração dos garimpos Madalena e Cajueiro, no município de Altamira, no Pará. A área já era ocupada por garimpeiros e indígenas anteriormente e o conflito se arrastava desde então. No início de 1985, a mineradora – cujo diretor industrial era Oscar Luiz da Silva Júnior, ex-tenente e filho do general Oscar Luiz da Silva, ex-comandante do III Exército – contratou a Sacopã para dar fim às animosidades. O conflito nos garimpos Cajueiro e Madalena foi deflagrado no dia 2 de fevereiro daquele ano, já com Tancredo Neves eleito para presidir o país na redemocratização.
Os documentos do SNI descrevem espancamentos, prisões ilegais e até episódios de tortura contra índios, barqueiros e garimpeiros locais durante a “operação limpeza”, que começou com 20 homens da Sacopã. “Eles me jogaram no terreiro e me bateram com coronha de espingarda e me juraram com ponta de faca nos meus pés. Eles disseram que aquele local não era meu, era da firma Brasinor, e disseram que aquela área não era indígena”, relatou o indígena Manoel Curuaia, apelidado de “Índio Noá”. As áreas da Brasinor estavam em disputa: indígenas remanescentes das etnias Kuruaya e Xipaya viviam em áreas próximas às concessões da Brasinor desde os anos 1940 e já tinham contato com a população local desde então. Os índios já haviam se integrado aos seringueiros e, posteriormente, aos garimpeiros que vieram com a descoberta de ouro nos anos 1970.
Dentro da área de lavra da mineradora, a índia Maria das Chagas Lopes Curuaia, sobrinha de Índio Noá, vivia com o marido, o garimpeiro João Lima, e reivindicava a demarcação da área. Em depoimento prestado na sede da Funai em Altamira, ela contou que ficou sob a mira de quatro espingardas enquanto seus pertences eram destruídos. Depois foi expulsa da própria casa. “Disseram para eu sair, que a casa não era mais nossa, era deles”, afirmou. Em outro relato, o garimpeiro Edward de Souza Silva relatou que foi obrigado a chupar peças de chumbo entregues pelos homens da Sacopã antes de ser levado algemado para o avião que o conduziu à delegacia de Rurópolis. “O avião decolou. O tenente [comandante da ação da Sacopã] falou que ia jogar nós de cima do avião. No meio da viagem, bateram no Neguinho [outro garimpeiro preso]”, contou Edward. A Polícia Federal abriu um inquérito para apurar esses fatos, mas a investigação não prosperou.
Em outubro de 1985, a Sacopã foi requisitada novamente por uma mineradora. Dessa vez, a cliente era a Paranapanema, uma das maiores do país, que ostenta até hoje o título de maior produtora nacional de estanho refinado. Assim como a Brasinor, a Paranapanema tinha nos seus quadros um militar, o coronel da reserva e engenheiro Nelson Dorneles da Silva, assessor regional da empresa e responsável por pelo menos duas subsidiárias no Amazonas.
A Sacopã participou do despejo de índios Tukano e garimpeiros de uma área pertencente a uma subsidiária da Paranapanema, a Rio Marmelos S.A., em São Gabriel da Cachoeira (AM), no alto Rio Negro. A empresa chegou em abril de 1986 à região da serra do Traíra, onde a Rio Marmelos detinha concessões de pesquisa mineral. Ali fazia meses havia um conflito instaurado desde que garimpeiros chegaram à região e passaram a ocupá-la, invadindo uma terra indígena. Quando o conflito atingiu as terras da Rio Marmelos, a Sacopã entrou em ação, detendo 20 garimpeiros que ocupavam áreas da Rio Marmelos. A operação foi descrita como “facílima” por Fernandes. “Eles formam um bando de cagão. […] Quando o pau comeu, todos eles se entregaram”, vangloriou-se em entrevista ao Jornal do Comércio, de Manaus. A imprensa amazonense, que cobriu o caso na época, atesta a participação da Sacopã na prisão dos garimpeiros. “Quando a gente estava preso no barracão, o capitão Humberto tentava explicar quem comandava a operação. De repente, para provar isso, chegou o soldado mais antigo do grupo, o PM Thomé, e ordenou: ‘Thomé, diga para o pessoal aqui quem é que está nos pagando’. O soldado, sem refletir, respondeu que era a Paranapanema e quase foi agredido pelo oficial”, afirmou Juvenal Ayres, um dos garimpeiros detidos, em entrevista ao jornal A Crítica.
Os documentos dos órgãos de inteligência registram outro episódio envolvendo a Sacopã em solo amazonense, dessa vez no município de Presidente Figueiredo. Em junho de 1985, o professor Egydio Schwade e sua companheira, Doroti Alice Schwade, estavam sentados em frente da sede da Funai em Brasília quando um indígena da etnia Waimiri-Atroari perguntou: “O que é que civilizado joga de avião e que queima corpo da gente por dentro?”. O casal ficou perplexo – Schwade pertencia ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão indigenista ligado à Igreja Católica. Nos meses seguintes, durante um trabalho de alfabetização feito pelo casal com os indígenas, perguntas semelhantes foram se repetindo. “Por que Kamña [civilizado] matou Kiña [como os Waimiri-Atroari chamam a si mesmos]?” “O que é que Kamña jogou do avião e matou Kiña?”
“A gente se comunicava com eles por desenhos, e os desenhos retratavam esses episódios de violência”, conta Schwade. Foi a partir desses diálogos que se tomou conhecimento de diversos episódios de violência sofridos pelos Waimiri-Atroari – os casos foram apresentados na Comissão Estadual da Verdade do Amazonas.
Os índios denunciaram violências cometidas por pessoas ligadas à Taboca Mineração, outra subsidiária da Paranapanema, dirigida pelo coronel Nelson Dorneles e protegida pela Sacopã. Entre os anos 1970 e 1980, na área ocupada pela Taboca havia pelo menos nove aldeias indígenas – fotografadas pela Funai em 1968 – que desapareceram. Os índios chegaram a fazer expedições em busca dos parentes mortos nessas aldeias, por eles chamados de Tikiriya, mas não os encontraram. “Como era uma área controlada pela Sacopã a serviço da Paranapanema, quem mais poderia ser responsável por esses episódios?”, questiona Schwade, que durante o trabalho de alfabetização já ouvira dos índios frases como: “Taboca chegou, Tikiriya sumiu, por quê? Por quê?” e “A casa toda furada. Parede caiu. Taboca foi no lugar onde Tikiriya morava”. Um dos indígenas chegou a desenhar a maloca com o telhado furado e as paredes caindo.
Em outra área da Paranapanema, a hidrelétrica do Pitinga, além do desaparecimento de indígenas, foram registrados episódios de violência contra trabalhadores do canteiro da usina. Em 12 entrevistas colhidas na tese de mestrado do pesquisador Denison Silvan Menezes, ex-funcionário da Paranapanema entre 1983 e 1987 e mestre em sociedade e cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), ex-operários descrevem ações violentas da Sacopã. “A guarda patrimonial era muito rígida e tinha muita autonomia para se impor aos trabalhadores. Tinha até cela na guarita, para prender os trabalhadores, e, às vezes, levavam os coitados para um canil, com cães pastores-alemães dentro. Eu mesmo fiz o piso do canil. Soubemos de um caso em que os guardas chegaram a tirar a unha de um cidadão. Ele precisava falar algo e, como não falou, arrancaram as unhas dele”, contou a Menezes o pedreiro Edmar Fonseca.
No fim dos anos 1980, a Sacopã foi contratada pelo fazendeiro Newton Tavares para atuar na fazenda Guanabara, em Normandia (RR). Tavares havia comprado a fazenda em 1968 e vivia em litígio com os índios Macuxi que habitavam a região. Nos anos 1980, ele contratou a Sacopã. Os Macuxi denunciaram a atuação da empresa de segurança em relatos colhidos pelo jornal Igreja a Caminho, editado pelo Centro de Informação da Diocese de Roraima. “Foram dois anos de terror e medo, dois anos de cárcere em um curral que o Newton Tavares denominou por conta própria de Maloca de Santa Cruz”, relatam os Macuxi. Os índios chegaram a acusar os homens da Sacopã de tentativa de estupro contra uma Macuxi e reagiram – chegaram a manter os agentes de segurança sob cárcere privado. Cerca de 15 índios foram presos na ocasião.
Segundo um documento do SNI datado de 1989, a Sacopã não possuía autorização da Polícia Federal para prestar serviços de segurança até então. “Durante certo período, essa empresa prestou serviços de segurança a fazendeiros e mineradoras, no estado de Roraima – sem estar legalizada para isso”, afirma o documento.
A VIP e o saque aos garimpos de Minas
Fundada em Belo Horizonte em 1975, a VIP Vigilância Industrial e Particular era de Edmar Moreira Batista, ex-presidente da Itatiaia Empresa de Segurança e Estabelecimento de Crédito e, posteriormente, deputado federal pelo DEM. Os documentos do SNI registram que, em 1986, a empresa tinha em seus quadros policiais civis do antigo aparelho repressivo da ditadura militar. Entre eles estava o ex-delegado da Metropol Gabriel Ignácio Prata Neto, destituído do cargo durante o governo de Aureliano Chaves (1975-1978) por denúncias de tortura e depois secretário adjunto de Segurança Pública de Minas Gerais. Thacir Omar de Menezes Sia, ex-superintendente da Polícia Civil e membro do Dops de Minas Gerais, também fazia parte da empresa.
Segundo o informe do SNI, os policiais civis vinham ocupando garimpos nos municípios mineiros de Nova Era, Antônio Dias e Itabira através da VIP. “Esses policiais estão armando indivíduos condenados pela Justiça e policiais militares reformados, com a cobertura da Empresa de Segurança VIP, que contrata os interessados e presta o apoio logístico aos trabalhos do grupo”, relata o informe do SNI. A denúncia relatava também que os homens da VIP haviam se apropriado de minérios em diversos garimpos dos três municípios, expulsando os garimpeiros locais. Nessas ações, eles frequentemente usavam coletes da Polícia Civil de Minas Gerais. As pedras extraídas dos garimpos eram vendidas ilegalmente em Itabira.
Milhares de garimpeiros haviam migrado para a região com a descoberta de lavras de alexandrita em Antônio Dias em 1986; dois anos depois, foram encontradas minas de esmeralda no município de Nova Era. Sob a justificativa de manter a segurança nos garimpos, os agentes da VIP tomaram as melhores lavras da região. Em 12 de janeiro de 1989, uma equipe chefiada pelos delegados Gabriel Ignácio Prata Neto, Antonio Edson Deroma, Mauro Santiago Neves e Thacir Omar de Menezes Sia expulsou 500 garimpeiros da fazenda Quilombo, em Nova Era, com a ajuda de pistoleiros locais. Segundo o informe do SNI, a ação incluiu ex-capitão do Exército João Câmara Gomes Carneiro, reconhecido pela diretora do grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, Cecília Coimbra, como um de seus torturadores.
O caso foi denunciado por Sergio Casadei, presidente da Cooperativa Mista dos Garimpeiros do Centro-Leste de Minas Gerais em telex enviado ao então ministro da Justiça Oscar Dias Corrêa. “Tendo em vista ameaças que estamos sofrendo por parte de elementos da Polícia Civil de Minas Gerais pelo fato de termos denunciado a ação destes elementos contra garimpeiros da região de Itabira, Antônio Dias e Nova Era, solicitamos a V. Excia. garantias de vida para nós e nossos familiares”, escreveu Casadei.
A Solução, tropa da PM usada nos conflitos agrários em Goiás
A empresa A Solução – Empreendimentos e Serviços em Imóveis Ltda. foi fundada em 1983 em Goiânia. Na primeira alteração contratual, Irineu da Silva Mattos, tenente-coronel do Exército e ex-secretário de Segurança Pública de Goiás (1975-1979) entrou como sócio majoritário. Nos anos seguintes, a empresa teria muito serviço pela frente.
Com o lançamento do Plano Nacional de Reforma Agrária, em 5 de junho de 1985, pelo recém-empossado presidente José Sarney, as ocupações de terra se multiplicaram em todo o país. Em Goiás, a reação foi imediata. Irineu se juntou a outras pessoas que, como ele, eram proprietárias de terra para fundar o Movimento de Defesa do Direito de Propriedade, que posteriormente se tornaria a União Democrática Ruralista (UDR). Entre os companheiros de Irineu estavam, por exemplo, o coronel Aníbal de Carvalho Coutinho – também implicado pela CNV por participação na execução, desaparecimento forçado e ocultação dos cadáveres de dois militantes do Movimento de Libertação Popular (Molipo) – e o hoje senador Ronaldo Caiado (DEM-GO).
A Solução oferecia treinamento para os funcionários das fazendas, mas, segundo um informe do SNI, seus quadros eram compostos basicamente por ex-policiais militares goianos, alguns expulsos da corporação. Um dos principais conflitos envolvendo a empresa de Irineu ocorreu no município de Colmeia, norte de Goiás, hoje estado do Tocantins. Desde 1972, 86 famílias ocupavam terras públicas que integravam a fazenda Vale do Juari, com mais de 5 mil hectares de área. Em janeiro de 1986, o Grupo Executivo das Terras do Araguaia e Tocantins (Getat) vistoriou o local, que seria desapropriado para a reforma agrária. O pretenso proprietário da área, Luiz Espíndola Cardoso, conseguiu na Justiça uma liminar de reintegração de posse. Durante o despejo, segundo relatórios da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o posseiro Diolino Costa de Lima foi torturado. Mesmo assim os sem-terra voltaram à fazenda, e o fazendeiro contratou os serviços da Solução. Em 17 de março de 1986, acompanhados de policiais militares, os homens da Solução foram à fazenda para mais um despejo. Três posseiros (dois adultos e uma criança de colo) morreram. No mesmo dia, o ex-soldado da PM de Goiás Iracílio Cícero Batista de Farias, que prestava serviço à Solução, foi morto.
À época, a morte de Iracílio foi atribuída aos posseiros, mas um documento do SNI diz que ele morreu após uma discussão com outro ex-policial contratado para prestar serviços à Solução. A morte ocorrera antes mesmo do despejo, para o qual ambos haviam sido contratados pelo tenente-coronel reformado José Fernandes Mourão, segundo um informe do SNI. Os documentos mostram que, além de chefe de segurança nas mineradoras locais, Mourão era o grande aliciador de policiais para os quadros da Solução. A versão do SNI foi confirmada pela ex-companheira de Iracílio, Marineide de Abreu Passos, e por outras testemunhas. A Solução sempre negou que contratasse policiais para seus quadros. Em outro documento, a empresa admitiu ter adquirido armas irregularmente.
No mês mesmo de março de 1986, a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) e a CPT entregaram um dossiê sobre o caso ao presidente José Sarney. Depois disso, houve reiterados casos de sequestros e espancamentos de posseiros e tiroteios com feridos de ambos os lados. Quando o decreto de desapropriação finalmente saiu, o fazendeiro Luiz Cardoso entrou com um mandado de segurança. Enquanto o caso estava na Justiça, o posseiro Vilmone Campos da Silva foi morto em uma festa e seu irmão, Ione Campos da Silva, baleado. O conflito só cessou com a criação do assentamento, em 1989.
A Solução é uma das poucas empresas abertas na ditadura que permanecem ativas até hoje.
Outro lado
A Pública tentou contato com todas as empresas ainda existentes e com as pessoas citadas nesta reportagem, mas não conseguiu contato com os personagens envolvidos.
Crédito da arte interativa: Bruno Fonseca/Agência Pública