Na última semana, uma decisão polêmica do vice-procurador geral da República fez com que um inquérito do pré-candidato à Presidência Geraldo Alckmin (PSDB) que estava no Superior Tribunal de Justiça (STJ) fosse enviado para a Justiça Eleitoral de São Paulo. No inquérito que corre em sigilo, o tucano é investigado por receber da Odebrecht mais de R$ 10 milhões em doações eleitorais via caixa 2.
Luciano Mariz Maia, o vice-procurador geral, oficiou aos ministros do STJ na semana passada para pedir que remetessem a outras instâncias os processos envolvendo os cinco governadores que haviam deixado o cargo para concorrer a outros postos nas próximas eleições. No caso específico de Alckmin, Maia sugeriu que o inquérito não fosse encaminhado à Justiça Federal, com o argumento de que, por ora, havia apenas indícios de crime eleitoral. A ministra relatora Nancy Andrighi acatou a orientação, o que gerou a discussão sobre a aplicação de critérios diferentes em relação ao ex-governador.
Para o advogado Fernando Neisser, da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), a decisão de Maia – acertada do ponto de vista técnico, segundo ele – causou estranheza porque destoa da linha de atuação da força-tarefa da Operação Lava Jato. “O problema é que a força-tarefa da Lava Jato, tanto a que atua em Curitiba quanto a que atua no Supremo Tribunal Federal, para evitar perder o controle dos processos – ou seja, para evitar que fossem para a Justiça Eleitoral –, construiu a narrativa das acusações contra todo mundo nestes quatro anos falando que há caixa dois, mas sem dizer, no final: “Portanto, praticou-se o crime do artigo 350 do Código Eleitoral”. Se dissessem, o processo obrigatoriamente teria que ir para a Justiça Eleitoral. No meu modo de ver, houve uma estratégia absolutamente injustificada e ilegal”, afirma Neisser. O advogado, porém, critica o caráter sigiloso do inquérito.
O vice-procurador-geral da República alega que as investigações sobre Geraldo Alckmin não apontaram indícios do crime de corrupção, apenas de caixa 2 eleitoral – razão pela qual o inquérito que tramitava no STJ foi encaminhado à Justiça Eleitoral de São Paulo. Como você analisa esse posicionamento?
Por mais estranha que possa parecer, a decisão está correta do ponto de vista técnico. O que não está correto do ponto de vista técnico é uma dezena, uma centena de outras decisões que não levaram à Justiça Eleitoral situações similares. No sistema brasileiro, há as justiças especializadas e as justiças residuais. Tudo aquilo que não se encaixa, por nenhum nível de especialização, numa determinada Justiça, cai na justiça comum, que é a estadual. O primeiro grau de especialização que pode haver é envolver o interesse da União: quando ocorre um crime considerado federal por lei, como a lavagem de dinheiro, ou envolve uma pessoa da União ou um ministério como parte interessada, saio da justiça comum e levo para a Justiça Federal. Além disso, há justiças temáticas especializadas, que não têm a ver com quem participa do processo, mas com o assunto que está sendo debatido, e uma delas é a Justiça Eleitoral. A regra geral – e isso está escrito no Código Eleitoral, está escrito na CLT, quando falamos de Justiça do Trabalho, no Código Penal Militar, quando se trata da Justiça Militar – é que, sempre que houver um crime próprio de uma justiça especializada, o processo vai para lá, e ela tem competência para julgar todos os outros crimes que forem conexos àquele. Quando pensamos numa situação de caixa 2, um sujeito que ou recebeu recursos e não contabilizou numa campanha ou fez despesas e não contabilizou, ele, em tese, pode ter praticado crime previsto no artigo 350 do Código Eleitoral – a falsidade para fins eleitorais. Ou seja, ele, como candidato, tinha a obrigação de prestar contas à Justiça Eleitoral e o fez, mas disse que arrecadou dez, quando, na verdade, arrecadou doze. Aquela informação que ele mandou é ideologicamente falsa, não representa a realidade. Isso é um crime eleitoral, que pode ou não ter sido acompanhado de outros crimes. Esse dinheiro recebido a mais, por exemplo, pode ser fruto de um outro crime – corrupção, lavagem, roubo de carga, crime organizado, sonegação fiscal –, como pode também ser apenas um valor não contabilizado mas “limpo”. Isso significa que, quando mando esse processo para a Justiça Eleitoral, não quer dizer que acabou a possibilidade [do investigado] responder por outros crimes, mas que, tendo em vista que existe um apontamento de crime eleitoral, este é o lugar adequado para julgar este e quaisquer outros crimes conexos que surjam ao longo da investigação. Trocando em miúdos: Alckmin pode responder por uma ação penal que impute a ele a prática de falsidade ideológica eleitoral? Sim. Essa mesma ação pode vir a lhe imputar crime de corrupção, lavagem ou qualquer outro? Pode também. Será a Justiça Eleitoral que analisará todos esses crimes? Em tese sim. O ponto-chave para essa questão é dizer se esses crimes são conexos ao eleitoral, se fazem parte de um mesmo agir criminoso. Isso vai surgir no momento em que o Ministério Público Eleitoral apresentar a denúncia: o promotor dirá: “Olha, aparentemente, na minha leitura, só existiu caixa 2” ou: “Existem estes e estes crimes conexos, portanto tudo tramitará na Justiça Eleitoral”. Ou ainda: “Existiu o caixa 2, que tramitará na Justiça Eleitoral, e há indícios fortes de outros crimes não conexos, portanto essa parte da investigação eu mando para a Justiça que for própria para julgar”.
O tratamento dado a Alckmin não seria diferente do tratamento dado aos demais políticos investigados por caixa 2 na Lava Jato?
Quem lê as notícias dos últimos quatros anos sem conhecimento jurídico, se fizer a pergunta “do que trata essa operação?” chegará à resposta de que ela se trata basicamente de corrupção e caixa 2 em campanhas eleitorais. Essa é a leitura óbvia para qualquer pessoa que analisa isso de fora. O problema é que a força-tarefa da Lava Jato, tanto a que atua em Curitiba quanto a que atua no Supremo Tribunal Federal, para evitar perder o controle dos processos – ou seja, para evitar que fossem para a Justiça Eleitoral –, construiu a narrativa das acusações contra todo mundo nestes quatro anos falando que há caixa dois, mas sem dizer no final: “Portanto, praticou-se o crime do artigo 350 do Código Eleitoral”. Se dissessem, o processo obrigatoriamente teria que ir para a Justiça Eleitoral. No meu modo de ver, houve uma estratégia absolutamente injustificada e ilegal, pois o promotor não tem essa disponibilidade para investigar, encontrar dois crimes e decidir que só vai processar por um, já que, se processar pelo outro, sai da aba dele o controle daquilo; promotor não é dono de processo. Mas assim foi feito até alguns casos baterem no STF – porque havia pessoas com foro por prerrogativa de função – e o Ministério Público, até então comandado pelo Rodrigo Janot, entrar com a ação dizendo que só havia crime de corrupção – o termo “crime eleitoral” é tabu e não pode ser dito. A defesa dessas pessoas alega: “Escuta, o que o Ministério Público está narrando aqui é caixa 2 e, se houver caixa dois, pouco importa que também há corrupção, tudo tem que ir para a Justiça Eleitoral”. E o Supremo começa a dar algumas decisões no sentido de mandar alguns processos para a Justiça Eleitoral. Essa decisão de agora chama tanto atenção porque já partiu do próprio procurador, que não é membro da força-tarefa da Lava-Jato e me parece, numa primeira análise – frisando que não conheço o caso a fundo, não li o inquérito sobre o Alckmin, até porque está em sigilo de justiça –, estar aplicando a mais recente jurisprudência do Supremo sobre o caso: a que diz que, quando existir alegação de caixa dois eleitoral, é a Justiça Eleitoral que investiga, e, se houver outros crimes, é ela que analisa ou fatia o processo e manda para outra Justiça. A decisão está certa, só salta aos olhos porque uma pessoa com um peso político importante conseguiu um ponto fora da curva, ainda que numa curva correta.
O fato de essa decisão destoante ter partido do vice-procurador-geral da República pode ser fruto da mudança de comando no Ministério Público Federal, antes chefiado por Rodrigo Janot e agora por Raquel Dodge?
Não tenho como fazer essa estimativa, seria um chute, seria irresponsável. O que posso dizer é que o posicionamento desse procurador difere do posicionamento uniforme da força-tarefa da Lava-Jato. E, penso eu, é um posicionamento correto, por mais que chame atenção.
Muitas das críticas ao posicionamento do vice-procurador são motivadas pela impressão de que, com o deslocamento do inquérito para a Justiça Eleitoral, Alckmin pode escapar de uma eventual denúncia por corrupção. Mas existe a possibilidade de ele ser investigado por outros crimes, certo?
Caso se entenda que houve omissão de receitas da prestação de contas no valor de R$ 10 milhões e que essa quantidade foi uma troca por um ato de ofício qualquer devido ou indevido por parte do governador, isso [configura] um crime de corrupção conexo a um crime de falsidade ideológica eleitoral. Alckmin responderá a uma ação penal com as duas imputações e [caso condenado] receberá uma pena por cada uma: em relação à corrupção, virá do Código Penal, e referente à falsidade, do Código Eleitoral. A Justiça Eleitoral também aplica o Código Penal. Alckmin está fora do rótulo Lava Jato, mas está sujeito a responder pelos mesmos atos criminosos comuns àqueles que são investigados pela Lava Jato.
Qual caminho o inquérito de Alckmin percorrerá na Justiça Eleitoral a partir de agora?
Esse processo cai obrigatoriamente na 1ª Zona Eleitoral de São Paulo. Todo inquérito é supervisionado por um juiz, neste caso pelo juiz titular da 1º Zona Eleitoral, que o enviará ao promotor eleitoral. Este determinará as medidas naturais do inquérito, a única diferença é que a polícia que trabalha para a Justiça Eleitoral é a Federal. O delegado ou delegada que receberá este inquérito para tocar as diligências será um delegado ou delegada federal. Quando o promotor entender que há ou não elementos, pedirá o arquivamento ou apresentará a denúncia ao juiz. É um rito muito parecido com o da ação penal, há pequenas diferenças de prazo por conta do Código Eleitoral, mas nada que mereça menção.
A força-tarefa da Lava Jato em São Paulo pode, de fato, pedir o compartilhamento dos autos para fazer uma investigação própria?
Sim. Como o inquérito é sigiloso até o momento, de duas uma: ou o promotor pede o levantamento de sigilo e o juiz o levanta, ou, mantido o sigilo, pode apresentar um pedido de compartilhamento, e, se o promotor [eleitoral] concordar, pede ao juiz. Se ele deferir o pedido, a força-tarefa em São Paulo pode investigar em paralelo aquilo que acredita que possa ter acontecido, inclusive um crime de corrupção.
Ainda se justifica que o inquérito esteja sob sigilo?
Esse sigilo também é um pouco atípico neste momento. Isso começou com aquelas petições do Janot, das quais uma boa parte ficou no Supremo, uma parte foi para o STJ e uma parte desceu para a Justiça Federal. Das petições que ficaram no Supremo, o Janot pediu posteriormente o levantamento do sigilo e o Fachin deferiu. Portanto, um político com foro por prerrogativa de função no Supremo que eventualmente esteja respondendo a um inquérito rigorosamente idêntico ao do ex-governador Geraldo Alckmin está com sua investigação aberta, sendo vasculhada pela opinião pública e pela imprensa há tempos, enquanto Alckmin, por entendimento no Ministério Público, que não pediu, e da relatoria no STJ, que poderia ter determinado [o fim do sigilo] e não determinou, tem se beneficiado disso – tanto que hoje [sexta-feira, 13 de abril] o furo da Folha de S.Paulo é que Alckmin foi ouvido e ninguém soube. A minha expectativa, até em prol da transparência neste período eleitoral, é que seja levantado esse sigilo tão logo o inquérito chegue à Justiça Eleitoral. É necessário.