O cheiro de cloro misturado a outros produtos de limpeza exalava pelo chão da cozinha e da sala. Sob a supervisão da avó, Wlaedson Domingos dos Santos, 19 anos, fazia a limpeza. Minucioso e perfeccionista, conferiu se fez um bom trabalho antes de voltar para a posição original os eletrodomésticos arrastados durante a faxina. Há um ano, Wlaedson seguia a mesma rotina, quando foi acusado de participar de um assalto a carga na região de Embu das Artes, em São Paulo.
Era dia 27 de novembro de 2017, quando por volta de 10h30, Wlaedson foi até a casa do amigo Diego. Enquanto conversavam, escutaram tiros. Diego ficou apreensivo com o irmão de 10 anos que brincava na rua. Ao sair, ambos foram surpreendidos por um rapaz que entrou correndo na residência. Em seguida, um policial militar também entrou e rendeu os três jovens, sob a acusação de roubo. Eles foram conduzidos para o 47º DP do Capão Redondo, onde uma vítima fez o reconhecimento de Wlaedson como um dos assaltantes.
Enquanto a faxina seguia no último dia 3 de dezembro, uma mulher gritou da ponta da viela: “Ô, filho, me ajuda aqui”. Era Laudinete Domingos, a mãe de Wlaedson, que chegava do mercado. Após ter acomodado os mantimentos, Laudinete se serviu de um café e acendeu um cigarro. Encostada na porta, ela relembrou ao repórter a última audiência que tratou do caso do filho, inocentado definitivamente da acusação de roubo de carga. O drama da mãe e de toda a comunidade, que se mobilizou para provar a inocência do acusado, que ficou preso provisoriamente durante cinco meses, foi registrado pela Pública na videorreportagem abaixo.
Durante esse período sem o filho e buscando respostas para as suas angústias, Laudinete iniciou acompanhamento psicológico, indicada por um dos ativistas de direitos humanos que conheceu no decorrer da luta para provar a inocência do filho. Frequentava as sessões semanalmente e se esforçava para cumprir a agenda de encontros. Mas somente ser escutada não amenizava a sua aflição. Por que ela estava ali?, indagou a psicóloga. A resposta estava pronta, ela só não tivera a oportunidade de falar: “Ah, tem um ‘todo’ que me faz vir: a consideração da doutora em me atender; as pessoas que me ajudam, mas não é bem o que quero. Preciso que alguém me diga que eu não estou errada. Que não é justo o que fizeram com a minha família”. Sem resposta, a psicóloga deixou que ela a visitasse quando se sentisse à vontade. Laudinete não voltou: “Ela só me escutava, aquilo me deixava mais nervosa”.
No dia 26 de abril, após cinco meses preso, Wlaedson teve a liberdade provisória concedida, depois de o juiz entender que ele não deveria continuar privado da liberdade, uma vez que tanto os policiais quanto a vítima não compareceram à audiência marcada naquela data. Laudinete levou oito testemunhas a favor do filho. No outro dia à noite, ele foi recebido com faixas, cartazes, presentes; choro, risos, abraços, em uma grande festa organizada pela comunidade, sempre convicta da sua inocência.
Mas, após a euforia comunitária, a preocupação de Laudinete voltou. Não só pelas imposições que a liberdade provisória prevê, mas também pelo sentimento de medo. Laudinete sabia que ele permanecia “preso” a um processo ainda sem desfecho. “Durante este período, a minha família ficou desestruturada. De certa forma, eu queria que ele continuasse preso aqui, dentro de casa, mas ele é jovem e tem o direito de ir para rua, mas tinha medo que algum policial o reconhecesse e o forjasse. Passou muita coisa pela minha cabeça.”
Laudinete não se conforma com os cinco meses do filho no cárcere. “Ele pagou uma cadeia sem dever nada. As pessoas que causaram isso nas nossas vidas estão impunes. Eles simplesmente não apareceram [nas audiências] ou dizem que não lembram mais do que aconteceu, vão embora e está tudo certo? Minha indignação é essa. É algo que eu não aceito. Acho que quem faz isso com uma pessoa tem que pagar. Pra mim, a única coisa que mudou é que eu não estava vendo meu filho atrás das grades. Mas dizer que isso amenizou o sofrimento, não! Foi um ano que tiraram da gente. E esse ano eu não vou esquecer nunca. Não me conformo.” Em casos assim, a família pode, por exemplo, ingressar com ação civil requerendo danos morais.
Outra preocupação da mãe é referente à situação do filho na Justiça. Ambos estão preocupados: quando ele for em busca de trabalho, ou se for abordado pela polícia na rua, vai constar a passagem em seu nome? “Pra mim, a justiça só será feita quando não constar passagem ao puxar o antecedente dele. Não quero que quando puxar fique nem como inocentado. Se constar alguma coisa, mesmo inocentado, nenhum dono de empresa vai dar oportunidade para ele. Ele passou na cadeia, ficou marcado, é um carimbo e acabou! Tem que devolver o nome do meu filho sem passagem nenhuma porque ele não fez nada para ter essa mancha no nome.” Segundo o advogado de defesa, José Roberto Telo Faria, o “processo será retirado do sistema” e não constará nenhuma informação sobre o que aconteceu, o que significa que Wlaedson, pela lei, tem direito a ter a ficha limpa. O prazo para que isso aconteça é de em média 50 dias após a sentença definitiva.
Outra perspectiva que preocupou a família foi a financeira. Laudinete não sabe ao certo quanto gastou no período de um ano. Só com advogados, foram aproximadamente R$ 10 mil. Todo cidadão tem por direito um defensor público, mas Laudinete só ficou sabendo dessa informação depois que já havia contratado os serviços particulares. Além disso, houve gastos com os deslocamentos e alimentação para as visitas semanais. “Eu tinha vergonha na fila, porque eu demorava para levar o jumbo [itens como cigarro, produtos de higiene pessoal, mantimentos, roupas etc., que são levados no dia de visita por familiares e/ou amigos para os detentos] e era pouco. Sorte que tinha uns vizinhos que me ajudaram – doavam alimentos e dinheiro para condução. Foi bem difícil”, relembra.
Vulgo inocente
Quando começa a falar sobre o que aconteceu, Wlaedson fixa o olhar no chão, fazendo expressões como de quem ainda tenta entender o que houve. Relembra que durante o primeiro mês detido se isolou, conversava pouco, somente o necessário. A cadeia tem as suas regras e, quando um detento entra na cela, deve “passar a ciência”, ou seja, explicar o motivo que o fez parar ali. No entanto, ele não precisou. O rapaz que, de fato, havia cometido o assalto caiu na mesma cela e relatou o que aconteceu. “Ele disse que não me conhecia, que eu não havia participado do assalto, que eu estava lá de inocente.” Os companheiros de cela souberam, então, que Wlaedson fora forjado. As palavras de consolo vieram dos próprios presos: “Pra gente que tá no erro já é difícil, imagina pra você que é inocente”. E este foi o apelido dado a ele durante o encarceramento: “Inocente”.
Nos dias de visita, o jovem evitava que os familiares percebessem quanto estava sofrendo. Evitava chorar na frente da “sua coroa”, pois sentia que ela estava “perdendo a fé”. Durante um período, pediu para a irmã não ir mais visitá-lo, pois ficou difícil suportar vê-la chorando todas as vezes que ia até o presídio CDP II em Guarulhos, região metropolitana de São Paulo. “Eu não ficava bem de ver eles [os familiares] assim. Fazia de tudo para mostrar que estava forte, que conseguia suportar; não queria que vissem que eu estava triste. Ao mesmo tempo, não acreditava no que estava acontecendo comigo. Às vezes, achava que era um pesadelo e falava com Deus: ‘Quero acordar, não pode estar acontecendo isso comigo, não fiz nada’. Mas depois de um tempo eu vi que estava acontecendo mesmo”, desabafa.
Daqui para a frente
Durante a última audiência, no dia 29 de novembro, o júri ouviu um dos policiais que participaram da prisão, as testemunhas de defesa e, ao final, os réus. As provas produzidas pela defesa convenceram o juiz e o Ministério Público da inocência de Wlaedson. O fato de as testemunhas afirmarem que Wlaedson já estava na casa de seu amigo horas antes do roubo provou que ele não estava no local e hora do crime.
Apesar de inocentado, ele aguarda o resultado da sentença, que não foi emitida por causa de “problema no sistema”, alega o advogado. Mas “podemos afirmar que [o resultado] será favorável, já que todas as provas produzidas apontam para sua absolvição, aliás, o próprio juiz do caso e a promotora já acenaram nesse sentido”, ressalta o advogado.
Quando questionado sobre o que pretende fazer daqui em diante, Wlaedson responde rápido: “Recuperar o tempo perdido”. Mas poucos segundos depois reflete sobre a resposta e mais uma vez dá espaço ao medo. “Eu falo assim, mas eu não tenho vontade pra nada. Sair, tenho medo. Meus amigos me chamaram para sair, fiquei em casa. E se acontecer algo pior comigo? Todo lugar tem polícia. Prefiro ficar em casa. Hoje, na verdade, eu vivo com medo. Ontem mesmo passaram quatro viaturas na rua, só senti medo! Vou ficar em casa, pelo menos aqui me sinto mais seguro. Apesar que, no dia do acontecido, eu estava praticamente na casa de um familiar, né? Na verdade, hoje em dia, nem em casa você tem sossego. E a gente vive assim, tudo com medo.”
Cerca de 40% dos presos no país são provisórios
No início de agosto deste ano, a então presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, apresentou para os conselheiros do CNJ a nova versão do Banco Nacional de Monitoramento de Presos (BNMP 2.0).
De acordo com os dados parciais apresentados pela ministra, existem no Brasil cerca de 600 mil presos, dos quais 95% são homens e 5%, mulheres. Cerca de 40% são presos provisórios e 27% respondem por roubo.
Para o advogado de defesa, a resposta para isso pode estar na forma como o Judiciário atua: “Infelizmente, nosso sistema judicial é seletivo. Quem é pobre fica preso provisoriamente até que seja julgado, ou seja, se ao final for absolvido o juiz que manteve a prisão nada sofre. Ainda vivemos num estado burguês, não são levadas em conta as garantias constitucionais. No caso do pobre, existe uma cultura do aprisionamento. Felizmente no caso do Wlaedson, conseguimos sua liberdade antes do final do processo, mas é uma exceção quando se trata de acusação por crime de roubo.”