O Congresso Nacional deve decidir este ano se o nome “agrotóxico” será banido ou não do país. Caso o Projeto de Lei (PL) 6.299/2002, conhecido pelos opositores como “Pacote do Veneno”, seja aprovado, o termo será substituído nos documentos oficiais e nas embalagens dos produtos mandatoriamente por “pesticida”, “defensivo agrícola” ou “defensivo fitossanitário”. Mas a palavra, de uso quase exclusivo por aqui, tem um pai e criador – e ele é totalmente contra a mudança.
Alterar uma nomenclatura pode parecer apenas um pequeno detalhe entre as diversas alterações propostas pelo projeto de lei, mas, para Adilson D. Paschoal, do Departamento de Entomologia e Acarologia da Escola Superior de Agricultura Luiza de Queiroz (Esalq) da USP, esse é um ponto crucial. “É um retrocesso inadmissível e tendencioso, visando ocultar a verdadeira natureza desses produtos, isto é, sua natureza tóxica”, resume.
“Sabendo o agricultor que o produto é tóxico, ele ou o usa com redobrado cuidado ou procura por outra forma de controlar a praga, o patógeno [doença] ou a planta invasora [daninha]. No passado, o agricultor já usava a expressão ‘veneno’. Além disso, os termos [defensivo agrícola e fitossanitário] apresentam vários inconvenientes”, completa.
A palavra “agrotóxico” nasceu no Brasil, em 1977, a partir de um livro de Adilson D. Paschoal. Quarenta e dois anos depois, o professor avalia que a mudança “ visa ocultar a verdadeira natureza desses produtos, isto é, sua natureza tóxica.”
O termo agrotóxico tem origem do grego: ágros (campo) e toxicon (veneno). Segundo Adilson Paschoal, ao contrário do que dizem os críticos, não se trata de uma prática ideológica destacar a origem tóxica do produto. “É o emprego de um vocábulo com todo o rigor exigido pela ciência e a exatidão terminológica exigida pelo nosso idioma”, explica, em entrevista à Agência Pública e Repórter Brasil. Antes do seu famoso trabalho de 1977, termos como pesticida, praguicida, defensivo agrícola e biocida eram usados nos campos científico e etimológico brasileiro, enquanto nas ruas e no campo “veneno” era a palavra mais comum.
Fora do Brasil, o termo “pesticida” (do latim pestis, a doença, e cida, o que mata) é adotado oficialmente por países de línguas francesa (pesticides) e inglesa (pesticides). Praguicida (do latim plaga, a praga, e cida, o que mata), é usado nos países espanhóis (plaguicida). Segundo Adilson, os termos não são adequados para a língua portuguesa. “Pesticida significando ‘o que mata a peste’, e ‘peste’ é doença, o vocábulo não pode ser usado com sentido geral, englobando pragas, patógenos e plantas invasoras. Mesmo para doença o termo é inadequado, uma vez que não é a doença que se mata. O que se mata são os seus agentes causadores: os patógenos”, exemplifica.
No livro Pragas, praguicidas e a crise ambiental: problemas e soluções, Adilson propôs a substituição dos termos utilizados até então por agrotóxico, para incluir todos os produtos de natureza tóxica usados na agricultura. “O termo não é apenas etimologicamente correto, como também o é cientificamente. A ciência que estuda os efeitos desses produtos é chamada toxicologia”, explica.
A expressão teve aceitação nacional e, em 1989, a partir da Lei Federal nº 7.802 tornou-se a nomenclatura correta para definir os produtos tóxicos utilizados na agricultura brasileira.
Resistência ao termo
Quase 30 anos antes de o PL 6.299/2002 ser apresentado à Câmara, tentativas de desabonar o termo “agrotóxico” já eram comuns, lembra Adilson.
Nos anos 1960 e 1970, o alerta sobre o futuro ambiental da humanidade soava, e os agrotóxicos apareciam pela primeira vez no centro do debate. Em 1962, o livro da bióloga Rachel Carson Primavera silenciosa, publicado nos Estados Unidos, alertou o mundo sobre os venenos, a partir de quatro anos e meio de estudos sobre os efeitos na saúde humana do DDT, principal pesticida da época.
Quinze anos depois, a publicação do doutor Adilson teve impacto semelhante no Brasil. Assim como Rachel Carson, ele foi bombardeado de críticas. “A indústria química produtora desses tóxicos reagiu, procurando contradizer o que a ciência provava ser verdadeiro. Não foi diferente comigo. Meus argumentos científicos mostraram de que lado estava a verdade e, com isso, criou-se toda uma estrutura em defesa da vida”, conta.<
Aos 77 anos de idade, doutor Adilson vê agora o debate se repetir no Brasil. Apresentado há quase duas décadas, o PL 6.299/2002, de autoria do ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi, ressurgiu com força nos últimos dois anos, devido ao crescimento do poder da bancada ruralista. O texto foi aprovado na Comissão Especial na Câmara dos Deputados no ano passado e agora segue para votação em plenário. Após isso, precisa passar ainda pelo Senado Federal e pela sanção presidencial.
Para Adilson, o termo “defensivo” é “o mais incorreto, ambíguo, utópico, vago e tendencioso”. Isso porque, etimologicamente, significa “próprio para a defesa”, mas não indica defesa de quem.
“Se é defensivo agrícola, então a defesa é da agricultura, não especificando tratar-se de substância tóxica para o controle de espécies daninhas. Deduz-se disso ser qualquer técnica usada na defesa da agricultura um defensivo agrícola.” Nessa acepção, métodos orgânicos e de controle de erosão do solo poderiam também ser chamados de defensivos agrícolas, diz o professor.
“Quando pensamos em termos da natureza, tais produtos não podem ser encarados como instrumentos de defesa, mas de ataque maciço contra todo tipo de vida. E de destruição e perturbação do equilíbrio da natureza”, avalia.
Viés ideológico
Sem saberem disso, os deputados que defenderam com ímpeto o PL 6.299/2002 na Comissão Especial destinada à regulação de Defensivos Fitossanitários atacaram a criação de Adilson. Um dos maiores defensores da mudança era o deputado federal Valdir Colatto (MDB-SC). Na terminologia da palavra “fitossanitário”, fito significa planta e sanitário, sanidade, repetiu durante reuniões da Comissão o político, que é engenheiro agrônomo. “Quando usamos esses produtos [agrotóxicos] na agricultura, os chamados venenos são remédios para curar a doença da planta. Veneno para quem? Para um inseto, uma praga, uma doença. Não para o humano”, afirmou em reunião deliberativa da Comissão, em 16 de maio de 2018.
Membros da bancada ruralista criticaram diversas vezes o que chamam de “viés ideológico” do debate. Em audiência pública em setembro de 2017, Valdir Colatto e Adilton Sachetti (PSB-MT) criticaram a ausência de cientistas com posições divergentes sobre os efeitos dos agrotóxicos.
Por outro lado, os termos defendidos pela bancada ruralista recebem uma enxurrada de críticas desde a instauração da Comissão Especial. “Está induzindo a população brasileira ao erro, dizendo-lhe ‘isto aqui não tem mais veneno, agora tem produto fitossanitário. Pode beber; pode usar! Não há mais problema”, argumentou o deputado federal Chico Alencar (Psol-RJ) na Comissão em maio do ano passado.
Depois das críticas, o relator da comissão, Luiz Nishimori (PR-PR), adicionou o termo “pesticida” ao texto votado. “É o termo usado em todos os países, menos aqui. Queremos modernizar o nosso projeto e todo o setor, e isso passa pela alteração do nome”, explica o deputado à reportagem. Para Nishimori, a terminologia “agrotóxico” traz uma imagem negativa ao produto. “Pensamos esse projeto não só para o agricultor, mas também para o consumidor final. Dizer que vai passar agrotóxico ou veneno no produto dele não fica bem. ‘Pesticida’ seria bem habituado, e é esse o atual modelo usado no mundo”.
O relatório de Nishimori, aprovado pela Comissão em junho do ano passado, indicou o termo “pesticida” para tornar-se a nomenclatura oficial do Brasil. Porém, segundo o relator, o texto volta para debate no plenário e depois no Senado. Por isso, ainda há chance dos termos “defensivo fitossanitário” ou “agrícola” voltarem ao debate.
Defensivo agrícola é ideológico, diz estudo
Um estudo realizado pela equipe do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade de Caxias do Sul descobriu que o uso do termo “defensivo agrícola” carrega mais viés ideológico do que a palavra que ele pretende substituir.
O trabalho foi feito por seis professores e investigou a produção científica da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações entre os anos 2005 e 2015 que utilizavam os termos “agrotóxico” e “defensivo agrícola”. A investigação constatou a existência de quatro teses e 16 dissertações com o uso da nomenclatura “defensivo agrícola”.
“Na análise destas 20 publicações com o termo “defensivo agrícola”, 15 publicações, o que representa 75%, utilizaram o termo com conotação primordialmente positiva”, apontou o trabalho.
Os pesquisadores concluíram que o motivo do emprego do termo “defensivo agrícola” não são dúvidas sobre qual expressão é correta, mas sim “uma tendência antiga ligada aos interesses da indústria e do comércio de agrotóxicos em valorizar os aspetos positivos em defesa dos cultivares e da produtividade; deste modo, permanece uma confusão para os agricultores, os consumidores e a sociedade em geral”.
Avaliação internacional
Nem mesmo outros países de língua portuguesa usam o termo “agrotóxico” como terminologia oficial. Em Portugal, “pesticida” é o principal nome oficial, mas a palavra “agrotóxico” também é constantemente utilizada.
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Com o passar dos anos e o impacto do grande uso de venenos no Brasil, a expressão passou a ser conhecida por estudiosos e especialistas de outras nações, ganhando até variações em inglês (agrotoxicants) e espanhol (agrotóxico).
Entre os latinos, a expressão brasileira chega a ser elogiada. “O termo ‘agrotóxico’ descreve que são produtos tóxicos e químicos, e na nossa visão traz um histórico de mudança para a eufemística agrícola. Termos como ‘defensivo’ invisibilizam o efeito letal sobre organismos vivos que o produto tem”, explica Fernando Bejarano, diretor da Rede de Ação sobre Pesticidas e Alternativas do México (Rapam).
Fernando Bejarano conta que debate semelhante ao brasileiro está ocorrendo no México. Por lá, a associação Proteção de Cultivos, Ciência e Tecnologia A.C. (Proccyt), defensora do uso de agrotóxicos, se apresenta como “indústria para a proteção de cultivos”. E também luta para substituir o termo “praguicida” pelo mais suave “agroquímico”.