Mais do mesmo. Assim a advogada da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Marabá define os dois anos que se passaram desde o Massacre de Pau D’Arco. Em 24 de maio de 2017, um grupo de policiais assassinou dez trabalhadores rurais que ocupavam a Fazenda Santa Lúcia, no município de Pau D’Arco (PA). O caso foi a maior chacina do campo brasileiro desde o Massacre de Eldorado dos Carajás, município da mesma região do Pará, em que a polícia atirou contra uma marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), deixando 21 mortos e 69 feridos. “Apesar da repercussão e da gravidade de alguém se sentir autorizado a entrar numa área e assassinar dez pessoas, qual foi a penalização? Nenhuma, praticamente. É a sensação de impunidade que a gente sempre vive aqui com relação a todos os casos que a gente acompanha”, resume Andréia, acostumada à impunidade dos assassinos e descaso por parte do Estado brasileiro na região do sul e sudeste do Pará, que historicamente é a que mais concentra assassinatos no campo no Brasil.
Os executores do massacre ainda não foram a júri e o inquérito que visa identificar os mandantes, ainda não foi concluído, dois anos depois. Sobreviventes voltaram a ocupar a área, junto a um grupo de 200 trabalhadores liderados pela Liga dos Camponeses Pobres (LCP). Está marcada para o próximo dia 4 de junho a reintegração de posse da Fazenda Santa Lúcia, mesmo com suspeita da fazenda estar sobreposta a um assentamento, o que significa que ali pode ser uma área pública. Segundo a CPT, outras dez ocupações na região do sul e sudeste do Pará podem ter o mesmo destino.
No campo da responsabilização criminal, ainda não há conclusão do inquérito da Polícia Federal que visa a identificar os mandantes – e os executores nem foram a júri. Tudo como costuma acontecer por lá: segundo um levantamento do historiador Airton dos Reis Pereira, apenas 1,6% dos casos de assassinatos relacionados a conflitos no campo na região do sul e sudeste do Pará foram elucidados. Entre 1964 e 2010, 960 trabalhadores, advogados e agentes de pastorais foram mortos. “É preciso por fim a esta barbárie. Os mandantes precisam ser responsabilizados! Pela mãe que enterrou o próprio filho, no dia do aniversário dele. Pelas crianças que ficaram órfãs, e pelos sobreviventes que fugiram pela floresta e escaparam da morte naquele dia, mas tiveram suas vidas para sempre destroçadas”, cobra a nota da CPT lançada nesta sexta-feira.
Em entrevista à Pública, Andreia Silvério resume a situação do processo criminal e dá detalhes sobre a ação possessória que tramita em relação à fazenda Santa Lúcia.
Qual a situação do processo criminal em relação aos executores do Massacre de Pau D’Arco?
Os executores foram presos em 2017 e ficaram presos até finalizar a instrução do processo. Depois que foi finalizada a instrução, eles foram colocados em liberdade. [Os policiais apontados como responsáveis foram soltos em junho de 2018, após uma série de idas e vindas na Justiça paraense e em instâncias superiores]. Nesse ano, houve a sentença de pronúncia. Ao todo, foram 17 policiais denunciados pelo Ministério Público e 16 desses 17 policiais denunciados foram pronunciados [ou seja, deverão ir ao Tribunal do Júri responder pelos crimes apontados pelo MP]. Agora, a gente entra na fase de apresentação dos recursos da defesa e da acusação. Os policiais apresentaram recursos ao Tribunal de Justiça tentando reverter essa sentença de pronúncia. Após finalizado o prazo de recursos e ocorrendo o julgamento desses recursos, o próximo passo é que seja marcado o Tribunal do Júri para os policiais que não tenham tido a situação deles modificada no processo. Por enquanto, eles estão soltos porque o entendimento da Justiça é que o que justificava a prisão deles era que a fase de instrução ocorresse corretamente. Como não houve nenhum fato por parte deles no sentido de colocar em risco a vida dos sobreviventes do massacre ou de atrapalhar as investigações, eles permaneceram soltos.
Em relação aos mandantes, como está a situação?
Essa investigação e essa ação penal não identificaram quem foram os mandantes dos assassinatos. Isso é uma expectativa que a gente tem para com a Polícia Federal com relação ao resultado daquilo que eles chamaram de segunda fase das investigações sobre o massacre e que a gente ainda não tem retorno. As pessoas que estão envolvidas no conflito ainda não tem resposta por parte do Judiciário e da Polícia Federal sobre em que fase está essa investigação, se os mandantes já foram identificados, se vai ser proposta algum tipo de ação penal contra eles. Isso é uma coisa que ainda não temos definição. Não sabemos nada. O que a gente sabe é que existiu essa primeira fase de investigação que identificou os policiais que participaram e houve a denúncia em relação a eles. A Polícia Federal continuou essa investigação em outro inquérito para identificar os mandantes, mas completados dois anos esse inquérito ainda não foi concluído e não temos resposta com relação a isso.
Não há nem suspeitos? Nomes de pessoas que estejam sendo investigadas ou que a polícia tenha feito algum tipo de diligência?
Houve algumas diligências de busca e apreensão que envolveram os pretensos proprietários da fazenda Santa Lúcia, que é a família Babinski. [Três membros da família Babinski foram alvos de diligências da PF em maio de 2018 durante ações de busca e apreensão que aprenderam documentos e celulares de pessoas tidas então como suspeitas pela polícia de envolvimento com o Massacre]. Aconteceram essas apreensões de celulares e outros itens tanto dessa família como de outras pessoas, mas a gente ainda não sabe nem com relação a essa busca e apreensão qual foi o resultado. Não sabemos se foram encontradas provas com relação ao envolvimento deles ou se foram encontradas provas que relacionem eles aos policiais envolvidos com o massacre. Isso oficialmente. Informalmente, nós ouvimos comentários de que muito possivelmente haveria envolvimento entre vários pretensos proprietários de terra na região que teriam orquestrado o massacre para dar um recado a todos os ocupantes de terra da região. Seria uma ação articulada e combinada entre esses atores ligados ao latifúndio da região. Uma espécie de consórcio entre vários proprietários para efetuar o massacre e dar esse recado aos demais ocupantes de terra.
Vocês chegaram a procurar a Polícia Federal para ter mais informações?
Nessa fase mais recente, não. O que a gente soube é que um delegado de fora, que não era da região, é quem estava investigando. Era uma pessoa com a qual nós não tínhamos contato, diferente do delegado que investigou a primeira fase. Não temos contato com ele ainda.
O que foi colhido de provas contra os executores? O que há contra eles?
O processo de investigação foi muito bem feito, muito bem realizado. Além dos depoimentos dos sobreviventes do massacre, que são muito detalhados, há também os laudos de balística e de necropsia dos corpos, além do laudo de reconstituição do crime que consegue descrever com detalhes a participação de cada um dos policiais no Massacre. Para além disso, também teve a delação premiada de dois policiais civis que estiveram envolvido na operação de alguma forma e que ajudou na questão da individualização das condutas dos policiais.
O que foi dito na delação premiada?
Eles relataram basicamente a participação de cada um dos policiais, dos atores centrais do massacre: como foi o planejamento da operação, o momento em que eles chegaram na sede da fazenda, como os policiais se dividiram em grupos para buscar os trabalhadores e como foi o momento em que eles chegaram no local em que aconteceu o massacre. Como os policiais se dividiram em grupo, um grupo de policiais militares foi na frente. Esse grupo foi responsável pela abordagem dos trabalhadores rurais e depois teria chegado um segundo grupo de policiais incluindo um delegado e um investigador da Deca [Delegacia de Conflitos Agrários]. Quando eles chegaram ao local, já tinham encontrado seis pessoas mortas e quatro pessoas feridas. Segundo eles, teria havido uma pressão por parte dos demais policiais para que eles também participassem das execuções e para que todo mundo saísse dali dizendo que houve na verdade um confronto e não uma execução planejada. Nesse momento, principalmente o investigador conta que ele atirou contra as pessoas que já estavam feridas e eles finalizaram as execuções matando as pessoas que ainda não estavam mortas. Segundo eles, houve uma série de pressões no sentido de que eles saíssem dali e todos contassem a mesma história: a versão de que eles foram à área para cumprir mandados de prisão, mas foram recebidos a tiros pelos trabalhadores rurais, que eles revidaram e dez trabalhadores teriam sido mortos nesse contexto. Só que desde o início a versão não se sustenta. Óbvio, a primeira pergunta é: como há um conflito armado e de um lado morrem dez pessoas e do outro ninguém nem é ferido? Os policiais nem relataram que alguém tenha sido baleado ou algum tipo de tiro ou rajada tenha atingido as viaturas. Os laudos de balística, que identificam a localização dos tiros nos corpos das vítimas, deixam claro que foi utilizado o mesmo padrão em cada uma das vítimas. Tudo aponta muito mais para a versão de que existem execuções planejadas, pela forma como os policiais adentraram no local, o sentido dos tiros, tudo evidencia que os tiros não foram deflagrados em situação de confronto. Mas os policiais agiram sim no sentido de modificar a cena do crime. Os trabalhadores estavam armados também, eles não tiveram tempo de reação, mas portavam armas. Os policiais pegaram uma das armas e colocaram na mão dos trabalhadores já mortos e atiraram com essa arma no sentido de identificar num exame posterior a pólvora na mão dos trabalhadores como se eles tivessem atirado. Isso foi uma coisa que eles tentaram fazer. No exame, não ficou comprovado que os tiros deflagrados pelas armas deles tivessem sido dados por eles próprios, o que evidenciou muito mais que os policiais tentaram atuar depois para modificar a prova do crime. Eles não aguardaram a perícia, não fizeram fotos ou qualquer tipo de registros da cena do crime. Ao contrário, eles retiraram os dez corpos do local e levaram direto para o IML em Redenção (PA).
O que os policiais alegam? Eles mantêm a versão do confronto?
Em geral, eles mantêm sim a versão do confronto. Nem todos os policiais falaram. A grande maioria adotou a estratégia de se manter em silêncio. Os que se pronunciaram foram pessoas que, de certa forma, não teriam tido uma participação central. Alguns deles relataram que estavam no segundo grupo de policiais, que chegaram depois e encontraram as vítimas já mortas e que a única participação teria sido no sentido de retirar as vítimas do local do suposto confronto. Eles alegam que as vítimas teriam sido retiradas do local não para alterar o cenário do crime, mas para tentar prestar socorro, já que algumas vítimas apresentavam sinais vitais, e que tentaram levá-las rapidamente a Redenção.
Em casos de júri, há uma grande influência no modo como as mortes repercutem. Muitas vezes, mortes associadas a policiais tendem a ser automaticamente endossadas por parte da sociedade por uma visão maniqueísta que associa a polícia ao “bem” e qualquer vítima da polícia ao “mal”, em detrimento das provas e das circunstância do crime em questão. Vocês temem que essa visão influencie no veredito dos jurados? Ou mesmo a influência social e política dos fazendeiros e policiais em comparação a ocupantes de terra?
Com certeza. Na grande maioria dos casos que a CPT acompanha, casos de julgamento por execuções, assassinatos, normalmente a gente sempre requer o desaforamento do processo se não para a capital, Belém no caso, ou para alguma cidade próxima em que a influência dos réus do processo não seja tão forte sobre as pessoas. Isso é uma coisa muito evidente. Em geral as pessoas que são acusadas de assassinato ou de serem mandantes de assassinatos nesses casos de conflito são pessoas de muita influência, de poder econômico e influência pessoal. Logo depois do massacre houve atos de rua em apoio aos policiais e fazendeiros. E conversando com alguns advogados e defensores há a percepção de que existe apoio social à ação dos policiais ainda mais no cenário político que a gente está vivendo agora, isso fica ainda mais evidente.
Em relação à questão da terra, qual a situação da área da Fazenda Santa Lúcia? Há uma ação possessória envolvendo a área…
Tem uma ação possessória tramitando na Vara Agrária de Redenção. A ação é anterior ao massacre, ela é de 2013. Esse processo continua tramitando. Depois da ocorrência do massacre, um novo grupo de cerca de 200 famílias reocupou a terra. O que a gente vem pautando, desde que aconteceu o massacre, é que a área seja desapropriada para assentamento e que contemple também um grupo de cerca de 15 pessoas que são sobreviventes do massacre. Há um processo administrativo tramitando no Incra para a destinação da área para a reforma agrária, é um processo de compra e venda, esse processo foi praticamente encerrado. Ele está em Brasília. A última informação que temos é que está se aguardando apenas o pagamento da área por parte do Incra. Finalizado o governo Temer, não foram pagos os valores da compra do imóvel. Com base nesse argumento e com base na paralisação completa da reforma agrária no governo Bolsonaro, os fazendeiros requereram do juiz o cumprimento de uma decisão de reintegração de posse que já existia na ação possessória, mas que estava suspensa em função da negociação no Incra. E o juiz revigorou a decisão liminar de reintegração de posse. Esse é o risco que as famílias correm agora: despejo. Inclusive tem uma audiência marcada para o início do mês de junho, no próximo dia 5, chamada audiência de desocupação, na qual o juiz intima as famílias e as pessoas envolvidas no conflito para discutir os temas da desocupação. Como uma área onde aconteceu um massacre, dez trabalhadores foram assassinados, se passam dois anos aguardando uma resposta por parte do Incra no sentido de que a área seja comprada e destinada à reforma agrária e não existe essa resposta? Paralelamente a isso, há uma suspeita de que a Fazenda Santa Lúcia esteja sobreposta a uma área de um assentamento vizinho, o Projeto de Assentamento Nicolina Rivetti. É um fato novo que surgiu.
Como é essa sobreposição?
Há um estudo feito pelo advogado responsável pelo processo, dr. José Vargas Júnior, onde foi identificada a sobreposição. Isso foi levado recentemente para dentro do processo. Os órgãos de terra já tinham sido questionados inclusive nesse sentido e a resposta que eles deram é que não tinha nenhum tipo de sobreposição ou problemas com relação à documentação da área. O estudo que o Vargas fez apontou o contrário e ele está alegando isso para tentar suspender a realização da audiência e por tabela suspender o despejo das famílias da área. É um argumento que deveria ser considerado, pois se há uma suspeita de que a área é uma terra pública o juiz deveria investigar esse fato para ter clareza sobre e ele e aí sim: se for comprovado que é área pública, segue o processo. Se existir essa comprovação de que é uma área de assentamento, o juiz não pode conceder essa reintegração.
[Em contato com a reportagem da Pública, o advogado José Vargas Júnior afirmou que na ação possessória de 2013 foram concedidas reintegração de posse só com base nas matrículas apresentadas pelos pretensos proprietários da fazenda Santa Lúcia. Segundo ele, após solicitada a cadeia dominial da área, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) confirmou que as matrículas têm origem em um título emitido pelo órgão nos anos 60, mas não confirmou se o título de fato conferia o domínio à área onde está a fazenda. “Aparentemente, cruzando o georreferenciamento informado pelos fazendeiros no próprio processo com as coordenadas que constam no título do Iterpa, haveria sobreposição de cerca de 80% da área da fazenda ao PA Nicolina Rivetti. Além disso, as informações sobre o PA que constam no processo administrativo de criação do assentamento no Incra não coincidem com as que foram prestadas pelo Incra e pelo Iterpa na ação possessória”, afirmou Júnior.]
Como estão as condições de vida das pessoas que estão ocupando a fazenda?
É uma situação bastante complicada. A ocupação tem 200 famílias, são vinculadas à Liga dos Camponeses Pobres (LCP), e, como eles estão nessa situação, vivem na incerteza. Não sabem qual vai ser a resposta do Incra, sabem que há uma ação possessória tramitando na Vara Agrária, mas não sabem qual vai ser o posicionamento do juiz, se vai ter despejo ou se não vai ter despejo. Como que se toca a vida com essas ameaças? Ameaça de despejo, ameaça de morte. Eles estão ocupando, fazendo suas plantações, tentando se consolidar. Mas a ameaça de despejo é iminente. Outra situação específica é a dos sobreviventes do massacre.
Por que?
Eles não superaram o trauma do massacre, não conseguiram reconstruir suas vidas depois do que aconteceu no dia 24 de maio de 2017. Eles voltaram à ocupação, continuam com os traumas e lembranças do dia do massacre. Vivem com medo constante. Não tiveram nenhum tipo de amparo por parte do Estado, nenhum tipo de reconhecimento como sobreviventes de um massacre. Eles não tiveram apoio nenhum: nem financeiro, nem social, nem assistencial, nem psicológico. Alguns permaneceram durante um tempo no programa de proteção às vítimas e testemunhas, mas solicitaram desligamento. O programa tem regras muito rígidas de você se afastar do local onde está sendo ameaçado, de se afastar do convívio dos seus familiares. Eles não conseguiram continuar no programa. A maioria saiu e voltou para a área de ocupação. Lá eles não têm apoio nenhum mesmo. O tratamento que o Estado dispensou tanto aos sobreviventes quanto aos familiares foi de muito descaso. Tanto isso de os corpos terem sido retirados do local, irem para o IML em Redenção, terem ficado amontoados na mesma sala aguardando realização de perícia, terem sido retirados em carrocerias de caminhonetes sem nenhum tipo de tratamento adequado. Quando os familiares receberam os corpos, eles não tinham sido nem mesmo tratados como deveriam, estavam em estado de putrefação. Uma situação muito chocante. O tratamento tem sido esse, de descaso absoluto desde o Massacre.
Ou seja, apesar da repercussão nacional o caso se desenrolou como tantos outros…
Exatamente. Apesar da repercussão e da gravidade, de alguém se sentir autorizado a entrar numa área, assassinar dez pessoas, qual foi a penalização? Nenhuma, praticamente. É a sensação de impunidade que a gente sempre vive aqui com relação a todos os casos que a gente acompanha. A sensação é a mesma.