“Nas democracias, qualquer político vulgar flagrado em delito menor perde a pose, entra em crise depressiva e faz deplorável figura ante o olhar da multidão. É que não se imunizou previamente, por imersão nas águas lustrais da auto-beatificação ideológica, contra o sentimento de culpa. Acossado pelas denúncias, ouve brotar de dentro o clamor da sua própria consciência moral que, longamente reprimida, retorna das sombras para condená-lo, justamente no momento em que ele mais precisaria reunir suas forças para defender-se dos adversários externos. Então vacila e cai. Foi assim que caiu Nixon. Foi assim que caiu Collor”.
O texto, escrito em fevereiro de 2002 e publicado no jornal O Globo, faz parte da coletânea de artigos que Olavo de Carvalho, ex-comunista, ex-astrólogo e filósofo autodidata incluiu no livro “O MÍNIMO QUE VOCÊ PRECISA SABER PARA NÃO SE UM IDIOTA”, lançado em 2013 e reeditado em 2017, atualmente na lista dos livros mais vendidos em função da influência do autor, pelo menos até aqui, nas decisões do presidente Jair Bolsonaro e filhos.
Em “O único mal absoluto”, título do artigo, Carvalho dispara contra a esquerda, mas a situação descrita faz agora lembrar o inferno astral vivido agora por seu pupilo. O presidente criou um sério atrito com o Supremo Tribunal Federal (STF) e com o Congresso ao compartilhar pelas redes sociais um artigo em que o autor crava que o país se tornou ingovernável por causa dos interesses corporativos. Ao mesmo tempo, estimulou seus correligionários a realizarem neste domingo 26, manifestações de apoio ao seu governo. Uma movimentação que deixou Congresso, Judiciário e até correligionários com um pé atrás, apreensivos sobre o rumo que a crise pode tomar.
Usando seu conhecido o método “morde, assopra”, assim que o caso repercutiu, provocando animosidade entre os poderes, Bolsonaro recuou, e, para tentar aparar as arestas, convidou o presidente do STF, Dias Toffoli, para um encontro no Palácio do Alvorada. Ao final de meia hora de conversa, anunciou que não participará dos atos, afirmou em nota que “a harmonia reina entre nós na busca de soluções dos problemas nacionais” e disse não concordar com críticas aos outros poderes. Toffoli deixou o Alvorada sem dar declarações, mas a um interlocutor do STF disse que o encontro se deu num clima de civilidade e que “foi uma oportunidade para reafirmar que a democracia avança com o diálogo, sintonia e o respeito entre os poderes”.
É um claro recado de que Legislativo e Judiciário não aceitarão insinuações de aventuras antidemocráticas.
Na Câmara e no Senado é consenso que Bolsonaro esgotou seu pacote de provocações ideológicas e, se quiser continuar tendo algum apoio para governar, terá de mudar o estilo. “O presidente está tentando jogar a população contra STF e Congresso porque quer assumir poderes absolutos. Está se descuidando dos requisitos básicos da democracia, que são o respeito, a independência e a harmonia entre os poderes. Temos um semestre perdido com uma pauta de costumes e provocações. O país está dando sinais de impaciência”, diz o líder da oposição na Câmara, Alessandro Molon (PSB-RJ).
O líder do MDB, Baleia Rossi (SP) dá de ombros para o método adotado por Bolsonaro (“é um estilo”), acha que o Congresso cumprirá com mais relevância seu papel político, mas não vê os últimos acontecimentos como sintomas de fim de governo. Embora o senador José Serra (PSDB-SP) tenha desengavetado um velho projeto pela adoção do parlamentarismo (recurso que também foi usado para que João Goulart pudesse assumir o governo diante da renúncia de Jânio Quadros, mas que não evitou o golpe de 1964), Rossi acha que apostar numa mudança de regime a estas alturas seria como colocar o carro na frente dos bois. “Seria casuísmo”, diz. Rossi é parlamentarista mas, seguindo a lógica de seu partido, aguarda a evolução dos movimentos políticos.
“Ninguém sabe onde tudo isso vai dar. Depende da loucura do Bolsonaro e do centrão”, avalia o líder do PSOL, Ivan Valente (SP). “Parece que Bolsonaro quer a ponta da baioneta governando. É uma eterna disputa, como se o Brasil fosse um videogame”, afirma a deputada Érica Kokay (PT-DF). O senador Plínio Valério (PSD-AM) acha que a atitude do presidente em estimular manifestações contra o Congresso e o Judiciário inquieta o país. Ele diz que ao falar de boicote contra o governo, o presidente deveria “dar nome aos bois”, apontando os responsáveis.
“O Congresso não é um quartel. Pensar diferente não é ser inimigo. Aqui prevalece o consenso, convencimento, o debate. Assim é o parlamento. O presidente diz que o Congresso atrapalha, mas manda para cá pauta requentada. A da Previdência nem chegou ainda”, afirma Valério. “A verdade é que Bolsonaro não estava minimamente preparado para governar o país”, acrescenta o senador Veneziano Vital do Rêgo, líder do PSB (PB).
Para os congressistas ouvidos pela Pública, os primeiros cinco meses de 2019 revelaram um presidente despreparado para a função, que tenta governar pelas redes sociais, suscetível às influências nocivas de familiares e de seu guru, Olavo de Carvalho. Os avanços e recuos, sintomas da falta de base parlamentar, são reflexos de um governo autofágico, dividido entre tecnocratas, militares, familiares e a nova geração política que emergiu com o PSL, amparada em líderes de baixa representação. É um governo tão afundado em conflitos internos que acaba ocupando parte do papel da oposição.
O líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo, sequer consegue participar dos encontros com o presidente da Casa, Rodrigo Maia, que o excluiu de sua agenda. Foi uma represália a um meme divulgado pelo deputado do PSL nas redes sociais, em que Maia, carregando um saco de dinheiro, aparece associado ao estilo toma-lá-dá-cá. Maia cortou relações com o líder, ao mesmo tempo em que elevou o tom de críticas ao governo.
Ao partir para o confronto, o governo acabou unindo a oposição e fortalecendo o Centrão (PP, DEM, PRB, MDB e Solidariedade), que pressiona por espaços na Esplanada. Na quarta o bloco demonstrou sua força na aprovação da medida provisória que garantiu a reforma administrativa e impôs mais uma derrota ao ministro da Justiça e da Segurança, Sérgio Moro ao decidir que o COAF volta para a estrutura do Ministério da Economia.
“O que temos é um ambiente de conflito e ausência de articulação por parte do governo. Quem busca o equilíbrio hoje é o centro democrático, que ajudará o Congresso a cumprir seu papel”, afirma o líder do PP na Câmara, o deputado e ex-ministro das Cidades, Aguinaldo Ribeiro (PB).
“Bolsonaro precisa governar. Não é que estamos numa crise: o país não sai da crise. Todo dia tem um fato novo, produzido pelo presidente, pela família ou pelo partido dele. Até quando o país aguenta?”, pergunta o deputado Rubens Bueno (PPS-PR).
“Não tô vendo crise”, diz Eduardo Bolsonaro
Para os apoiadores do presidente não há crise e as hipóteses de impeachment, afastamento ou renúncia nem entram no vocabulário. “Não tô vendo crise. Impeachment é forçação de barra do Reinaldo Azevedo (articulista da Folha de S. Paulo). O Instagram tem mais gente que ele”, afirma o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o filho zero três do presidente.
Eduardo não quis falar sobre a manifestação marcada para este domingo. “Prefiro não entrar nessa polêmica”, disse, instantes antes de um líder das entidades autônomas dos caminhoneiros, João Henrique Garcia de Moraes, se aproximar dele para pedir um conselho. “Tem jornalista aqui. Não posso falar”, desviou-se.
O rapaz queria um sinal verde para convocar um grande “carretaço pacífico”, com milhares de caminhoneiros desfilando pela Esplanada em apoio a Bolsonaro. Eduardo se esquivou, mas a assessoria do deputado demoveu João Henrique, que também critica o STF e Congresso.
O presidente Bolsonaro já afirmou que não participará das manifestações, mas deixou sua tropa de choque do PSL livre. “A democracia garante participação de forma ordeira. É um direito ir às ruas com a liberdade para se manifestar democraticamente. O Bolsonaro vai entregar o que prometeu durante a campanha. Tem o livre arbítrio para falar. Vai ser o melhor presidente”, afirma, com entusiasmo, o deputado Hélio Lopes (PSL-RJ), major licenciado da PM.
Um homem de paz
O clima de conflito entre Congresso e Planalto na sessão de ontem foi quebrado pelo deputado Pastor Sargento Isidório (Avante-BA) que, com a inseparável Bíblia de capa preta debaixo do braço, foi ao microfone para sugerir ao presidente da Câmara que criasse uma comissão ou o indicasse como interlocutor junto a Bolsonaro com argumento, para ele, lógico.
“Entendo que é chegada a hora de buscar uma interlocução. Essa casa precisa tirar uma comissão ou (indicar) um parlamentar para conversar com o presidente da República. Pelo perfil dele, me sinto preparado para ir até ele, se for necessário. Venho da Bahia e sou conhecido como doido. E pra conversar com doido, só outro doido”, disse, arrancando gargalhadas do plenário. O vídeo viralizou na internet. O deputado estava revoltado com o decreto do porte de armas que, segundo alerta, se não for derrubado, vai liberar armas privativas das forças armadas para civis.
No primeiro turno das eleições do ano passado ele flertou com Bolsonaro, mas desistiu ao ver a pauta de costumes. Votou no Cabo Daciolo no primeiro turno. No segundo, foi de Fernando Haddad.
“O país precisa de paz e ele quer armar a população com fuzil. Não estava preparado. Ganhou a eleição com blefe, se aliou a um guru feiticeiro, fez pacto com o diabo, com as funerárias e com a indústria de armas e quer transformar o país num faroeste, num bang-bang. Bolsonaro confundiu o ‘amai-vos uns aos outros” da Bíblia com armai-vos uns aos outros”, disse o deputado à Pública. Sargento do Corpo de Bombeiros da Bahia, Isidório jura ter sido “curado do homossexualismo” e de uma vida nas drogas e no crime ao encontrar Deus nos textos da Bíblia.
No Congresso o suspense fica por conta das manifestações deste domingo. As declarações do presidente são vistas como uma estratégia para, nos bastidores, botar pilha nos organizadores, na tentativa de realizar um ato superior ao dos estudantes, professores e sindicalistas, ocorrido na semana passada. No dia 30, é a vez do ato das oposições. O Congresso está de olho nas ruas para decidir qual carta jogar no futuro do governo Bolsonaro.