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Levantamento inédito da Pública apurou que, de 228 denúncias, apenas duas não foram arquivadas

Dados
12 de junho de 2019
13:34
Este artigo tem mais de 5 ano

“Senhor, eu te louvo, porque esse homem tem valores cristãos. Que nem os hackers, Senhor, consigam mudar aqueles votos da urna. Que ninguém consiga, ó Deus, de alguma maneira, desfazer o propósito melhor para nossa nação. Capacita Jair Bolsonaro, dá palavras sábias, dá saúde. Blinda o teu filho até de uma gripe. Querendo o Senhor, que, no dia 1º de janeiro, esse homem possa subir a rampa do Planalto.”

Essa foi uma das declarações do pastor Josué Valandro Jr., da Igreja Batista Atitude, durante as eleições 2018. Do alto do púlpito multimídia no templo da Barra da Tijuca, o pastor orou pelo então deputado, chamou-o de justo e correto, criticou a falta de credibilidade de outros candidatos, rebateu fake news contra Bolsonaro — “isso é sem-vergonhice, não é amor” — e ainda afirmou que não é preciso concordar com tudo que ele pensa para amá-lo e para que Deus interceda por ele. Valandro, inclusive, chamou a atual primeira-dama, Michelle Bolsonaro, para subir ao palco e ser igualmente ungida — ela é membro do ministério de surdos da Igreja.

A atuação do pastor (veja video abaixo) não passou despercebida: ao menos quatro pessoas registraram denúncias no Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ), acusando a atuação do religioso de propaganda irregular — a legislação eleitoral não prevê o crime de abuso de poder religioso, mas o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem caracterizado a prática como abuso de poder econômico. O próprio TRE do Rio havia afirmado que uma das prioridades das eleições de 2018 era “combater o abuso do poder religioso para garantir a competitividade entre os candidatos e a higidez eleitoral, assim como o combate às fake news”, disse o procurador regional eleitoral Sidney Madruga. Contudo, as quatro denúncias sobre apoio do pastor Valandro a Bolsonaro foram arquivadas pelo tribunal.

Além das quatro denúncias acima, a Igreja Batista Atitude foi citada em mais 45 relatos de apoio a Bolsonaro durante cultos — todas as denúncias também foram arquivadas.

A Pública procurou o pastor, que não respondeu até a publicação da reportagem. Em matéria da Época, Valandro afirmou que nunca fez campanha para Jair ou outros candidatos, apesar de reconhecer ter rezado por deputados federais e estaduais — e durante um culto, para o governador Wilson Witzel, com a presença do próprio político. Segundo a reportagem, a Igreja Batista Atitude teria mais de 10 mil fiéis e vem batizando mil novos membros a cada ano.

Os casos envolvendo a Batista Atitude são cerca de metade das denúncias que se relacionam a Jair Bolsonaro. Ele é o candidato mais citado nos relatos, com 89 casos junto a líderes evangélicos e católicos. Ao todo, a reportagem listou mais de 200 denúncias de apoio político em igrejas ou envolvendo líderes religiosos durante o ano passado. O partido de Bolsonaro, o Social Liberal (PSL), também é o mais mencionado — há 94 denúncias contra a legenda, seguido pelo Partido Republicano Brasileiro (PRB), com 25. Os relatos abarcam 13 dos 26 estados brasileiros.

Apesar da quantidade de denúncias, poucas se transformam em processos contra os partidos e candidatos — das 226, 200 foram arquivadas na própria unidade que recebeu a denúncia. Os motivos, segundo a reportagem apurou, são variados. Há denúncias com poucas informações, acusações sem provas (fotos, vídeos ou áudios que registrem o que é denunciado), relatos sem data da ocorrência ou sobre eventos futuros, mas há também casos que não foram apurados pelos tribunais apesar de descreverem, com clareza, pedidos de votos por lideranças religiosas, como os envolvendo o atual presidente.

Nem todas as denúncias, contudo, são sobre pregações explícitas como as da Atitude. Uma delas envolvendo a Igreja Universal, de Edir Macedo, descreve referências indiretas a Jair Bolsonaro. “Dentro da Igreja Universal, até mesmo durante o culto, pastores buscam influenciar os votos dos fiéis em favor do candidato a presidente Jair Bolsonaro. Mas a propaganda é feita de forma dissimulada, pois os pastores costumam se referir ao candidato Jair Bolsonaro como ‘aquele que levou a facada’”, diz a peça, arquivada pelo TRE-RJ.

Outra denúncia, dessa vez envolvendo a Igreja Católica, afirma que padres da região de Magé, no Rio, teriam pedido apoio a Jair Bolsonaro utilizando argumentos da sua campanha, como as insinuações de envolvimento de Fernando Haddad com o “kit gay”. “Todos os padres de Magé estão fazendo campanha para Bolsonaro. Estão ameaçando as pessoas dizendo que quem vota a favor do kit gay e aborto não é bem-vindo na igreja e está em pecado mortal. […] Os padres e líderes religiosos estão intimados a fazer áudios e divulgar no WhatsApp. Solicito presença de fiscalização nos horários de missas e com gravação das missas”, aponta o relato.

A Universal unge seus candidatos

O PRB, ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, é a segunda legenda com mais denúncias no levantamento da Pública — 25 no total. Elas citam apoio de religiosos a diversos políticos eleitos pelo Rio de Janeiro: em 2018, o PRB elegeu 30 deputados federais e 42 estaduais, além de um senador em Roraima e um vice-governador do Maranhão.

A situação mais frequentemente relatada pelas denúncias é a de orações para candidatos do partido comandadas por líderes religiosos. “O candidato [Carlos Macedo, candidato a deputado estadual] é mencionado pelos pastores da igreja no momento das orações para que eles sejam abençoados. Sendo que antes é ensinado aos membros da igreja da importância em votar em bons candidatos de origem evangélica”, diz uma das denúncias, que foi arquivada.

Há também denúncias que acusam os pastores de divulgar notícias falsas durante os cultos, para incentivar o voto em candidatos apoiados pela igreja. Um relato acusa pastores da Universal de dizer que “se não votar no Bolsonaro, as crianças vão passar a receber o kit gay, e ainda virar homossexuais”.

Existem também relatos de panfletagem na porta de templos. “A Igreja Universal do Reino de Deus está fazendo campanha e distribuição de adesivos e panfletos dentro do templo religioso e na porta do mesmo. Para evitar serem flagrados estão guardando material de campanha em uma casa próxima e distribuindo aos membros nos finais de culto”, diz a denúncia, que acusa a Universal no Rio de propaganda irregular. “Pastores também usam do púlpito nos cultos para pedir votos para candidatos do PRB no Senado, Dep. Federal e Dep. estadual. Jovens da igreja inclusive menores de idade estão sendo estimulados a panfletar para os candidatos em ruas próximas.” A denúncia trazia ainda os horários de início e término nos cultos da igreja acusada.

Poucas denúncias geram processos, poucos processos levam a condenação

Entre as mais de 200 denúncias reunidas pela Pública, apenas duas não foram arquivadas — uma acabou em condenação e a outra gerou multa ao denunciado.

Em Santa Catarina, na Igreja do Poder de Deus, houve um dos poucos casos de líderes religiosos condenados por propaganda irregular. O ministro de confissão Emerson Júnior Ferreira foi multado em R$ 2 mil por fazer propaganda favorável a Jatir Balbinot, candidato a deputado estadual pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT).

Segundo o processo, o ministro insistiu que os fiéis votassem no candidato da igreja e convencessem os familiares. “É claro, só o seu voto, o seu voto é importante, é importantíssimo, mas tem que ser o seu voto e da sua família. Quem tá entendendo? Tem que ser o seu voto e da sua família. Eu quero que você lute pra conseguir, no mínimo, dez votos. No mínimo! Ah, se eu falar pro meu familiar de política, ele vai achar ruim. Deixa achar ruim, o importante é você não ficar calado. Fazer sua parte. […] Meu Pai consagra a vida do senhor Jatir, o nosso candidato estadual, como também o senhor Manoel Dias, o federal”, relata o processo.

Na defesa, o religioso argumentou que, por ter vindo de anos de trabalho em Portugal, “desconhecia as vedações impostas pela legislação eleitoral”.

Já no Piauí, o Ministério Público Federal expediu uma recomendação para a Igreja Assembleia de Deus, recomendando que “não faça propaganda eleitoral a qualquer candidato durante seus cultos e em seus templos”. A ação ocorreu após denúncias que a igreja apoiava as candidaturas de Ciro Nogueira (Progressistas) e Wilson Martins (PSB) ao senado, além de Idoneil Mesquisa (PHS) para deputada federal e Tiago Vasconcelos (PHS) para deputado estadual.

“É importante que a nossa legislação passe por uma revisão”

Em junho de 2018, o Ministério Público Eleitoral recomendou aos líderes religiosos que não fizessem propaganda eleitoral no local destinado aos cultos. A recomendação explicou que a prática pode configurar abuso de poder econômico, visto que o abuso de poder religioso não está previsto como crime na legislação.

Como explica o especialista em direito eleitoral e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Fernando Neisser, denúncias de apoio religioso a candidatos têm sido julgadas com base na previsão de abuso de poder econômico — um parâmetro amplo — além de multas aplicadas a políticos por propaganda em local inadequado. “Para que exista abuso, você tem que ter um nível de gravidade maior. Uma fala isolada em um culto não seria considerada como abuso”, comenta. “A falta de parâmetros [sobre abuso] joga no colo da Justiça Eleitoral uma subjetividade muito grande.”

Em agosto de 2018, o TRE-SP concluiu a cassação do mandato do vereador Anderson Pereira (PSDB), de Limeira, no interior paulista. O processo partiu de denúncias sobre a participação do ex-vereador em cultos. Inicialmente, a Justiça Eleitoral havia julgado improcedente a acusação contra o político, afirmando que seria “temerário” que cidadãos que comungam da mesma crença não possam se organizar para eleger representantes que tenham as mesmas convicções.

“Quanto mais aberta e subjetiva a legislação, mais espaço tem para os viés pessoal do julgador ou julgadora influenciar nesse processo”, explica Neisser. “É importante que a nossa legislação passe por uma revisão”. Essa revisão, segundo ele, não deve ser feita apenas para incluir o crime de abuso religioso, mas também para refletir sobre o que não seria classificado como abuso — e as implicações disso para o cenário eleitoral. “Um juiz ou magistrado que é totalmente contra a influência da religião na política pode ver abuso em qualquer coisa, enquanto um juiz que concorda pode não ver abuso em nada.”

Segundo a legislação eleitoral, candidatos e partidos políticos não podem receber doação direta ou indireta de entidades religiosas.

A Pública entrou em contato com as igrejas e pastores citados na matéria. Apenas a Universal respondeu, afirmando que “no período eleitoral, dentro daquilo que a lei permite, a Universal apenas incentiva a todos os cristãos, de todas as denominações, que escolham candidatos comprometidos com os valores da família e da fé”.

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