Buscar

José Dutra da Costa foi morto por denunciar desmatamento, grilagem e trabalho escravo; advogado do caso falou sobre a condenação do latifundiário com alcunha de "juiz" no Pará

Entrevista
26 de agosto de 2019
10:00
Este artigo tem mais de 5 ano

Após quase 20 anos, o fazendeiro Décio José Barroso Nunes foi condenado pelo júri do Fórum Criminal de Belém (PA) a 12 anos de prisão. Conhecido como Delsão, no dia 14 de agosto ele foi considerado o mandante do assassinato do sindicalista José Dutra da Costa, o Dezinho, morto por pistoleiros em 21 de novembro de 2000, em Rondon do Pará. Condenado em primeira instância em regime fechado, o fazendeiro pode recorrer em liberdade.

Delsão já havia sido condenado a mesma pena em abril de 2014, mas à época o Tribunal de Justiça do Pará (TJ-PA) anulou o júri por considerar que o fazendeiro teve o direito de defesa prejudicado. Cinco anos depois, em abril deste ano, um novo julgamento foi marcado, mas suspenso após abandono do promotor.

Em nota, organizações de direitos humanos, como Justiça Global e Terra de Direitos, afirmaram que a condenação neste mês de agosto “é uma vitória contra a violência e a impunidade no campo”. Então presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará, Dezinho havia denunciado Décio José Barroso Nunes por desmatamento, grilagem de terras e por utilização de trabalho análogo à escravidão e passou a receber ameaças constantes. O sindicalista chegou a escapar de duas tentativas de homicídio antes de ser assassinado com três tiros na porta de casa. A viúva do sindicalista, Maria José Dias da Costa, assumiu a presidência do sindicato após o assassinato do marido e desde então vive sob escolta policial.

Para explicar o caso, a Agência Pública entrevistou o advogado Marco Apolo Leão, da Sociedade Paraense de Defesa de Direitos Humanos (SDDH), que atuou como acusação no processo contra o fazendeiro. Ele afirma que a morosidade da resolução do crime “retroalimenta a violência no estado”. “A gente espera que não tenha mais nenhuma reviravolta. Mas aqui no Pará, com esses tribunais que a gente tem, é capaz de tudo”, diz.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

José Dutra da Costa, o Dezinho, morto por pistoleiros em Rondon do Pará

O que motivou o crime?

O que motivou o crime foram três situações básicas. A primeira, que o fazendeiro Décio Barroso tinha terras griladas e o sindicato rural de Rondon do Pará estava defendendo que essas terras fossem usadas para a reforma agrária. A segunda questão é que o sindicato havia denunciado a existência de trabalho escravo nessas terras. E o terceiro motivo é que o Dezinho também recebeu denúncias de homicídio que haviam sido praticados pelo fazendeiro, e ele estava se preparando para fazer essas denúncias. Fora o fato de que o Dezinho já tinha sido ameaçado pelo fazendeiro e já havia denunciado a ameaça para o secretário de Segurança Pública.

Qual é o conflito na região?

Na região tinha uma situação muito forte de grilagem e trabalho escravo. A disputa pela terra era muito grande, e o fato de ser terra grilada possibilitava que os camponeses pudessem disputar essa terra. Mas existia um consórcio de fazendeiros que era muito parecido com o que aconteceu com a Dorothy Stang. Só que lá eles chamavam de “cabala”, não era consórcio. E o chefe dessa “cabala” era esse fazendeiro que tinha a alcunha de “juiz”. Eles, na verdade, contratavam pistolagem para cometer crime contra trabalhadores rurais. A região, na época e até hoje, é conhecida por ter muita violência.

Atualmente como está o conflito na região?

O fato de ter tido uma grande reação contra o assassinato do Dezinho, e essa situação ter sido, inclusive, denunciada na OEA, a gente acredita que ajudou um pouco a amenizar as ameaças contra as principais lideranças. Mas de vez em quando existem casos de homicídios lá na região. A própria viúva de Dezinho vive sob escolta diária até hoje por conta das ameaças.

O que aconteceu nos julgamentos?

O primeiro julgamento [que ocorreu em 2014] foi anulado porque o Tribunal de Justiça do Estado do Pará entendeu que não tinha motivo para a condenação dele. É uma decisão inexplicável. Os únicos que podem te explicar por que o primeiro julgamento foi anulado são os desembargadores.

Quando foi anulado?

Foi em 2016. Mas a gente não viu e não vê motivos para esse julgamento ter sido anulado, porque as mesmas pessoas que foram depor nesse julgamento foram depor agora. E agora, inclusive, ele foi condenado com mais folga ainda. O novo julgamento [em 2018] foi adiado porque o juiz do caso, na época o Raimundo Flexa, não permitiu que o Ministério Público exibisse o depoimento de testemunhas no plenário, o que fez o promotor entender que o juiz agiu errado e se retirar do julgamento.

E o julgamento de agora, de 14 de agosto?

Teve esse novo julgamento agora, e a família [do Dezinho] resolveu ir, já que o Ministério Público deu uma demonstração de estar interessado, de boa-fé no caso. Porque é muito difícil, a família se expõe muito. Não foi apenas um acusado, teve o julgamento do pistoleiro Wellington, teve o julgamento dos intermediários do crime, que foram absolvidos. No caso do Delsão, em Belém, o pessoal se expõe muito. É um cara perigoso. Essa é a terceira sessão de julgamento que foi marcada para julgá-lo.

Como foram os julgamentos dos pistoleiros e dos intermediários do crime?

O pistoleiro foi condenado, mas ele fugiu da prisão depois, o Wellington. O intermediário, Igoismar, fugiu, a gente não sabe do paradeiro. A gente acredita que esses caras estão mortos, que teve queima de arquivo. Até porque teve uma testemunha ocular do crime, chamado Magno, que foi assassinada. É o cara que dava depoimento sobre uma caminhonete muito parecida com a do Delsão que foi julgado agora e condenado, e que a gente espera que não tenha mais nenhuma reviravolta. Mas aqui no Pará, com esses tribunais que a gente tem, é capaz de tudo.

Momento em que a justiça paraense profere a sentença do fazendeiro Décio José Barroso Nunes

Como esse último julgamento se encaminhou?

Tem uma testemunha que fala como foi a preparação da morte do Dezinho. Essa testemunha, que já esteve em proteção no ProVida, foi trazida pelo MP, então é uma testemunha fundamental, tanto no outro julgamento quanto nesse de agora. E ela relata como foram os preparativos para matar o Dezinho. O Dezinho, na verdade, foi vítima de duas tentativas de homicídio que falharam, aí o pistoleiro que falhou foi assassinado, que é irmão dessa testemunha; e na terceira tentativa deu certo, os caras conseguiram matar o Dezinho. Era um esquema muito bem organizado, inclusive com omissão de autoridade do sistema de segurança pública, com a situação de uma rede de pistolagem, com colaboração de outros fazendeiros.

Foi um julgamento em primeira instância. O fazendeiro recorre em liberdade?

Sim, vai recorrer em liberdade. O que é estranho também. O sistema jurídico brasileiro fala o seguinte: quando existem ameaças a testemunhas, as pessoas têm que ser presas. Mas nesse caso, também, inexplicavelmente, não foi. Mas o MP recorreu, e a gente vai aguardar o desfecho.

O processo se arrasta há quase 20 anos. Qual o efeito dessa morosidade?

É muito ruim porque de certa forma retroalimenta a violência aqui no estado. Desde 1980, são quase mil assassinatos no campo. E esse julgamento só acontece depois de muita pressão da família. A gente acredita que o Estado brasileiro, a Justiça, tem uma dívida muito grande com esse tipo de situação, e de certa forma é também responsável pela violência, já que demora a julgar e em muitos casos [o assassino] fica impune.

Para saber mais do conflito

O Brasil chegou a ser denunciado à Organização dos Estados Americanos (OEA) como corresponsável pelo crime de Dezinho. Em 2010, o Estado brasileiro assinou um acordo perante o órgão internacional, reconhecendo sua responsabilidade, e se comprometeu a implantar políticas públicas relacionadas à luta pela reforma agrária.

Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o mandante do crime possui cerca de 130 mil hectares de terra em Rondon do Pará, parte delas em terras públicas.

Além disso, o latifundiário responde a mais de 30 embargos do Ibama por crimes ambientais e cinco centenas de processos na Justiça do Trabalho.

Durante a investigação da morte de Dezinho, foram abertos outros quatro inquéritos para apurar a participação de Delsão na morte de trabalhadores de suas serrarias, mas nenhuma das investigações foi concluída. Além do fazendeiro, condenado como mandante do assassinato na última semana, outras quatro pessoas foram julgadas pelo crime. O pistoleiro que assassinou o líder sindical Dezinho foi condenado a 27 anos de prisão pelo crime em 2006, mas no ano seguinte fugiu após saída temporária e segue foragido. O fazendeiro Lourival de Souza Costa e o capataz Domício Souza Neto foram julgados e absolvidos das acusações de envolvimento em 2013. Apontados como intermediários, os irmãos Igoismar Mariano e Rogério Dias tiveram a prisão decretada à época, mas nunca foram encontrados.

A entrevista é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro.

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Leia também

O dia em que não deu mais: “Ou eu saía ou eu morria”

Por

Refugiado de Anapu que vivia na mesma gleba onde a missionária Dorothy Stang foi assassinada conta por que os agricultores continuam a ser acossados por pistoleiros no Pará

Polícia aponta fazendeiros como possíveis mandantes de morte de sindicalista no Pará

Por

Investigação ainda não descartou outras hipóteses para a morte de Carlos Cabral, em Rio Maria; motivação indica conflito por terra em área indígena

Notas mais recentes

Brasil Paralelo gastou R$ 300 mil em anúncios contra Maria da Penha


Kids pretos, 8/1 e mais: MPM não está investigando crimes militares em tentativas de golpe


Investigação interna da PM do Maranhão sobre falsos taxistas estaria parada desde julho


Semana tem reta final do ano no Congresso, Lula de volta a Brasília e orçamento 2025


Ministra defende regulação das redes após aumento de vídeos na “machosfera” do YouTube


Leia também

O dia em que não deu mais: “Ou eu saía ou eu morria”


Polícia aponta fazendeiros como possíveis mandantes de morte de sindicalista no Pará


Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes