No Pará, o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa, assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), foi o mais atingido pelas queimadas que tomaram a Amazônia em agosto, mês que já registra a maior média de focos de incêndio dos últimos 21 anos. Encravado entre as áreas rurais das cidades de Novo Progresso e Altamira, que ocupam posições de destaque no ranking de municípios com maior registro de fogo na recente onda de queimadas, o PDS é o assentamento que mais sofreu incêndios neste mês e no acumulado de 2019, de acordo com um levantamento da Agência Pública feito com base em dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
O PDS, que atualmente abriga cerca de 300 famílias, teve 197 focos de incêndio em seu interior neste mês: alta de 319% em relação a agosto de 2018, quando ocorreram 47. De cada seis queimadas que ocorreram em assentamentos em solo paraense no mês, uma foi no interior do Terra Nossa. Além disso, o PDS é a terceira área mais incendiada em agosto em comparação a assentamentos, terras indígenas e unidades de conservação no estado. “O PDS e a Floresta Nacional [Flona] do Jamanxim foram as áreas públicas que registraram mais incêndios na nossa jurisdição”, afirmou à Pública o procurador federal Paulo de Tarso Moreira, do Ministério Público (MPF) em Itaituba, que atua na região sudoeste do Pará.
Queimadas no assentamento coincidem com “dia do fogo”
O PDS e a Flona também estão na área de influência da BR-163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA), um dos principais corredores de escoamento de soja do país. O entorno da BR-163 foi uma das regiões onde houve a maior incidência de queimadas neste mês no Pará, segundo dados da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do estado.
No último dia 5 deste mês, o jornal Folha do Progresso noticiou que fazendeiros estavam organizando um protesto – que ganhou a alcunha de “dia do fogo” – para “chamar atenção das autoridades”, já que na região o avanço da produção acontecia “sem apoio do governo”. Segundo a publicação, a manifestação marcada para 10 de agosto consistia em “acender fogos em limpeza de pastos e derrubadas”. “Precisamos mostrar para o presidente [Jair Bolsonaro] que queremos trabalhar e o único jeito é derrubando. E para formar e limpar nossas pastagens, é com fogo”, disse um fazendeiro ouvido pelo jornal sob anonimato. Os dados do Inpe mostram que as queimadas explodiram no entorno da BR-163 justamente a partir do anúncio do “dia do fogo”.
Um levantamento realizado pela Pública revela que também a partir de 10 de agosto o PDS Terra Nossa passou a ter aumento dos focos de incêndio. Dados do Inpe indicam que em 9 de agosto foram registradas sete queimadas no interior do projeto de assentamento. Já no dia 10, os focos mais que quadruplicaram: foram 31 queimadas. No dia 11, houve 35 queimadas e, a partir de então, as queimadas diminuem.
A Polícia Federal (PF) investiga as circunstâncias da realização do “dia do fogo” e a possível participação de fazendeiros no ato – líderes de entidades de classe de Altamira e Novo Progresso negaram qualquer participação.
Segundo o MPF, existe um histórico de articulação de lideranças de produtores rurais de Novo Progresso contra autoridades ambientais. Em agosto de 2017, por exemplo, foi deflagrada a Operação Onda Verde, do Ibama, que coibiu a atuação de madeireiros e garimpeiros ilegais na área rural de Novo Progresso. Após a operação, viaturas do órgão de fiscalização ambiental foram incendiadas. A PF encontrou indícios de orquestração da queima de viaturas por lideranças rurais locais por meio das redes sociais, o que também foi apontado como método utilizado no “dia do fogo” em reportagem da Globo Rural. “As queimas foram articuladas por meio das redes sociais e do WhatsApp. Então já há um histórico desse tipo de articulação na região”, afirma o procurador federal Paulo de Tarso Moreira.
Cenário assustador
O cenário é assustador ao longo de todo o trecho da BR-163 entre Itaituba e Novo Progresso até chegar ao PDS Terra Nossa. Por entre a mata verde, foi possível constatar que existem grandes extensões de florestas reduzidas a cinzas. A fumaça encobre a visibilidade na estrada, irritando olhos e narizes dos motoristas que por ali transitam. Mesmo em áreas protegidas como a Flona Jamanxim labaredas de um amarelo vivo iluminaram por diversas vezes o caminho da reportagem até o assentamento.
Ao longo da extensão do PDS, que também margeia a BR-163, o cenário é de continuidade em relação às queimadas observadas na estrada. No assentamento, localizado em área protegida pela Constituição e destinada ao uso sustentável, o fogo não poupou nem mesmo os topos dos morros, classificados como Áreas de Preservação Permanente (APPs) no Código Florestal. A maioria dos focos de incêndio encontrados pela reportagem concentra-se nas muitas fazendas que estão ilegalmente no interior do projeto de assentamento.
Os incêndios ocorreram no interior das fazendas, sobretudo em áreas que ainda apresentavam cobertura vegetal e estavam contíguas aos pastos. No entanto, as queimadas atingiram também os pequenos agricultores residentes no PDS. Segundo relatos, pelo menos três ocupantes dos lotes de reforma agrária tiveram suas casas incendiadas.
A região é historicamente marcada por conflitos pela posse da terra. Existem ao menos 130 fazendas no interior do projeto de assentamento. Entre elas estão propriedades irregulares, algumas passíveis de regularização, que já estavam lá quando da criação do PDS em 2006, e áreas griladas, abertas por fazendeiros após a destinação da área de 149 mil hectares do projeto; uma extensão destinada à reforma agrária quase equivalente à da cidade de São Paulo.
Em uma vistoria in loco finalizada em 2018, o Incra identificou 76 fazendas ilegais no interior do PDS que, ao contrário das fazendas irregulares, não são passíveis de regularização. Segundo o órgão, elas deveriam ser retomadas pelo patrimônio da União para receber pessoas que atendam aos critérios da reforma agrária. Além disso, existem áreas detidas por fazendeiros que somam milhares de hectares, algo completamente fora dos parâmetros do público-alvo dos assentamentos.
“Se quisessem fazer alguma coisa, que fizessem comigo”
Alguns agricultores afirmaram à Pública que as queimadas foram criminosas, provocadas, sobretudo, por funcionários de fazendas vizinhas. Em alguns casos, o fogo vai até o limite das cercas das grandes propriedades. É o caso da agricultora Antônia Ribeiro de Carvalho Souza, que enche os olhos d’água com a cena que se apresenta em seu lote.
Sobre o chão negro, coberto de cinzas, suas vacas e bezerros lutam para encontrar uma sobra de pasto para comer após o incêndio que destruiu boa parte de sua propriedade. “Se quisessem fazer alguma coisa, que fizessem comigo, mas não com uns [animais] inocentes desses que agora não têm nem como comer”, lamenta. Do antigo pasto, o que não foi consumido pelo fogo perdeu-se pela seca. Os animais amontoam-se nas poucas sombras restantes para escapar do sol escaldante do meio dia – o fogo consumiu também árvores próximas, como os pés de coco babaçu, que ela usava como fonte de renda. Próximo a um enorme tronco de castanheira ainda fumegante, mesmo após 11 dias do incêndio, Antônia mostra um bezerro recém-nascido e conta que o animal está em fase de amamentação, mas que a mãe está dando pouco leite por falta de alimento, já que o capim foi quase todo queimado. “Estamos mantendo ele só na ração”, diz.
A agricultora fez um boletim de ocorrência na Polícia Civil de Novo Progresso para documentar o incêndio em sua casa, ocorrido no último dia 13 deste mês. “Deixei minhas criações aqui no corredor [estrada vicinal] e corri para a delegacia para fazer o registro”, diz. Antônia pediu auxílio ao filho para não perder os animais, mas não conseguiu salvar um dos bezerros, que acredita ter sido consumido pelas chamas.
Antônia é vizinha de cerca de um fazendeiro que ocupa irregularmente a área do PDS, destinado a assentados de reforma agrária. Mesmo em uma área alta, acometida por fortes ventos, o fogo teve precisão milimétrica. O fogo só atingiu os limites do lote de Antônia. Há pontos da divisa entre o lote e a fazenda em que o fogo chegou a cruzar a cerca, mas não atingiu o pasto vizinho, repleto de capim seco e cabeças de gado. “Para mim, foi um incêndio criminoso. Só quem não conhece pra achar que o fogo ia parar justamente no limite da cerca com esse tanto de capim do outro lado”, afirma.
Segundo relatos de outros assentados, há pelo menos outros dois agricultores que tiveram seus lotes incendiados no interior do PDS. Para eles também, os incêndios tiveram caráter criminoso. O MPF afirmou que há fartas evidências de queimadas criminosas. “Sobre o caráter criminoso dos incêndios, há vários indícios realmente que dão azo à instauração de uma investigação formal”, afirmou o procurador Paulo de Tarso Oliveira. “Há muitas queimadas sendo realizadas fora de áreas de ocupação consolidada, como fazendas. E grande incidência de incêndios em áreas públicas.”