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Lideranças, entidades e profissionais de saúde falam à Pública sobre a batalha quase solitária travada nas aldeias em meio à pandemia que já vitimou três indígenas

Reportagem
14 de abril de 2020
12:00
Este artigo tem mais de 4 ano

Precariamente assistidas pelo governo e pressionadas pela crescente onda de invasões em seus territórios, as comunidades indígenas enfrentam quase sozinhas o avanço da pandemia do coronavírus nas aldeias. Até o final de segunda-feira (13), o vírus já havia matado três indígenas — um adolescente Yanomami, de 15 anos, em Roraima, uma idosa Borari, de 87 anos, em Alter do Chão, no Pará, e um homem da etnia Mura, de 55 anos, em Manaus — e contagiado nove pessoas no total. Outros 23 casos estão sendo tratados como suspeitos e 31 foram descartados, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde (MS).

“A melhor forma de prevenir agora é manter as comunidades isoladas e orientar que não saiam e nem recebam visitas. Temos um histórico muito perverso de doenças contagiosas, que dizimaram etnias inteiras no passado. Todos estão assustados”, diz Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A preocupação maior das entidades, segundo ela, é se prevenir contra a fase mais dura do contágio, que ameaça as comunidades indígenas, proporcionalmente, na mesma projeção de avanço às cidades.

Longe da briga travada entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, as comunidades indígenas da Amazônia contam basicamente com o trabalho de suas lideranças comunitárias, das entidades indigenistas e profissionais de saúde, que travam uma guerra quase solitária contra o vírus. “Faltam EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), vacinas contra a gripe e material para testagem do coronavírus em pessoas que apresentam sintomas de contaminação”, diz Sônia Guajajara.

“Faltam EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), vacinas contra a gripe e material para testagem do coronavírus em pessoas que apresentam sintomas de contaminação”, relata Sônia Guajajara

Há duas semanas ela vinha pressionando a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), do Ministério da Saúde, pela antecipação da campanha de vacinação contra H1N1 nas aldeias, prevista para o final de abril, e para que se adote como critério a possibilidade de contágio comunitário, uma vez que em muitas regiões, além da miscigenação, há forte interação entre aldeias e cidades. Nesta segunda (13), o secretário nacional de Saúde Indígena, Robson Santos Silva anunciou que a vacinação começará na próxima quinta-feira, com a distribuição de 750 mil vacinas para comunidades indígenas de todo país.

Os profissionais de saúde estão coletando amostras de material para análise laboratorial de pessoas que apresentem sinais da Covid-19 e que tenham viajado. Os demais são avaliados pelos sintomas e medicados como gripe. Mas não têm, segundo Sônia Guajajara, os prometidos kits para testagem rápida. “Não é gripezinha. É uma doença altamente letal e com risco maior aos indígenas”, diz a coordenadora da APIB.

O vaivém descontrolado de pessoas nos garimpos ilegais, segundo as entidades indigenistas ouvidas pela Agência Pública, é atualmente o grande desafio dos profissionais de saúde e das lideranças que lutam para evitar o contato. “Exigimos que os órgãos de segurança tirem os invasores das terras indígenas. O risco de contágio é iminente”, diz Sônia. APIB e CIMI sustentam que no vácuo deixado pela ausência da Funai, Agência Nacional de Mineração (ANM) e da redução dos controles pela Polícia Federal e Exército, os garimpos ilegais, grilagem de terras e exploração ilegal de madeira estão aumentando na Amazônia. Lideranças dos Karipuna, em Rondônia, alertaram entidades indigenistas sobre invasores limpando áreas a 10 quilômetros da Aldeia Panorama para extrair madeira. Levantamento do jornal O Estado de São Paulo, com base em informações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), aponta que as áreas desmatadas praticamente dobraram na Amazônia, saltando de 2.649 quilômetros quadrados, para 5.076 quilômetros quadrados.

O ritmo do avanço da mineração ilegal é igualmente preocupante. “Só nas terras dos Yanomami já são mais de 30 mil garimpeiros”, disse o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Antônio Eduardo Oliveira. Até o final do ano passado, a estimativa era de 20 mil garimpeiros. Oliveira afirma que a crise sanitária fragilizou ainda mais os controles e abriu brechas para a ação dos invasores. Segundo ele, a SESAI, que já havia afastado seus agentes das áreas de conflito com restrição a viagens imposta pela Funai, não tem plano de emergência preventivo ou de contenção caso a doença avance sobre as comunidades indígenas.

Antônio Eduardo Oliveira é coordenador do Cimi

“Estamos entrando na pior etapa”, diz secretário de Saúde Indígena

Robson Santos Silva, o secretário de Saúde Indígena, disse à Pública que a SESAI estruturou seu plano de ação para acompanhar a evolução da doença. “O plano é móvel e pode ser modificado a cada etapa”, disse ele. Num vídeo divulgado pelo site da SESAI, Silva alertou que nesta semana começa a fase mais complicada. “Estamos entrando na pior etapa, que é essa que se inicia agora. O vírus tende a se expandir”, disse ele, apelando para que os indígenas permaneçam isolados e em suas comunidades. A SESAI, segundo ele, cuida da saúde básica em distritos indígenas, enquanto o SUS atenderá a todos, incluindo os casos mais graves de indígenas infectados. O secretário disse que não quer acusar os hospitais, mas afirma que os três indígenas que faleceram não deixaram suas aldeias com sintomas do coronavírus.

“Desde o início da crise estamos cobrando a ação do governo, mas não há até agora qualquer resposta. Com o sucateamento da Funai os riscos aumentaram”, afirma Oliveira. O CIMI pediu que seus 200 funcionários envolvidos com assistência aos índios saíssem de aldeias e passassem a monitorar à distância a situação. Sônia Guajajara afirma que a Funai foi desmontada e reaparelhada para atender ruralistas e mineradoras, estimuladas pela política do governo Bolsonaro de incentivos às atividades econômicas em terras indígenas. O ministro da Justiça e da Segurança, Sergio Moro, a quem a Funai é subordinada, segundo ela, se comporta como quem ignora completamente os riscos do coronavírus. “Ele não fala nada”, cutuca.

Na última segunda (13), Moro quebrou o silêncio. Disse que o contágio que resultou nas três mortes ocorreu fora das aldeias e que as ações do MJ começaram pelo isolamento nas comunidades. Segundo ele, visitações a comunidades só em casos excepcionais, para levar suporte. As invasões, que chamou de intromissão, Moro disse tratar-se de um desafio aos órgãos de controle.

Há duas semanas a APIB, com a ajuda do Ministério Público Federal, conseguiu derrubar parte de uma portaria do presidente da Funai, Marcelo Xavier, que permitia às coordenações regionais fazer contato com índios isolados, tarefa complexa e delicada, executada por um departamento específico da autarquia. Em tempos de pandemia o contato com gente despreparada, alerta Sônia, representaria um alto risco porque índios isolados não têm defesas no organismo nem contra os vírus mais comuns.

Também o Ministério Público Federal recomendou ações emergenciais de proteção à saúde dos povos indígenas e citou “cenário de risco de genocídio” sem as ações recomendadas.

Coordenador do Conselho Indigenista de Roraima (CIR), Enoque Taurepang afirma que a movimentação de garimpeiros e dos empresários que os financiam, está gerando um cenário de alto risco para os Yanomami, que já apresentam sérios problemas de saúde em decorrência do derrame de mercúrio em rios e córregos na extração de ouro.

Na avaliação de Sônia Guajajara, o ministro Sergio Moro tem ignorado completamente os riscos do coronavírus

“Infelizmente a situação do garimpo nos Yanomami é incontrolável. Tem empresários de outros estados dentro das áreas. A gente chega lá e fala que é proibido, mas eles não obedecem, não conhecem a palavra não. Eles mudam o nome da invasão: dizem que é trabalho e não atendem”, conta Taurepang, que tem usado as redes sociais para orientar as 245 comunidades indígenas de Roraima filiadas ao CIR.

Como as atividades do Exército na região também estão funcionando precariamente em decorrência da crise sanitária, segundo ele, os empresários de garimpo intensificaram as invasões certos de que não sofrerão represálias. A última ação conjunta da Polícia Federal e Exército para desalojar garimpeiros ocorreu no dia 13 de março, na comunidade de Napoleão, da etnia Macuxi, na TI Raposa Serra do Sol. Os dois órgãos desmontaram um garimpo em construção, prenderam o empresário que financiava a atividade e quatro indígenas.

“Hoje já não conhecemos mais nem as rotas que estão sendo usadas pelos garimpos ilegais. Estão entrando sem a preocupação de ter o exército no encalço deles. A gente não pode fazer muita coisa e nem sabe direito o que está acontecendo nos garimpos nesse momento. Uma coisa é a comunidade lutar contra as invasões e outra situação é ter um presidente que faz com que essas atividades aconteçam dentro das nossas terras. Um presidente que em toda oportunidade fala de exploração mineral”, critica o dirigente.

Ele diz que a lei não funciona nos garimpos ilegais: “Lutamos contra o Estado, contra essa doença e não sabemos até quando podemos segurar todos esses ataques. Se fosse pela lei indígena daria para dar um jeito. Mas somos subordinados a um Estado, a lei e a Constituição, que só funciona para beneficiar os empresários nesse governo. Não podemos fazer muita coisa”.

Ele diz que a ausência de órgãos de órgãos do Estado e a falta de equipamentos básicos nos postos de atendimento para os profissionais de saúde — como luvas, máscaras e álcool em gel e de remédios — estão levando medo de contágio aos índios e às lideranças que fazem a mediação entre sedes de vilas e aldeias.

Ontem, o jornal O Estado de São Paulo informou que há duas semanas a Funai recebeu mais 11 milhões de recursos emergenciais para usar na proteção indígena mas não gastou nenhum centavo.
O coordenador de saúde indígena da região Leste de Roraima, Adriano Corinthia, afirma que há uma atenção especial com a entrada de venezuelanos e com o controle do fluxo entre as aldeias, vilas e cidades, mas que o atendimento é o de rotina, sem material que permita fazer o teste de coronavírus. “Temos uma reserva mínima de materiais para os profissionais de saúde e medicamentos (apenas) para tratamento sintomatológico caso surja algum caso”, disse o enfermeiro Manoel Avelino, que trabalha com os Yanomami. Para suprir a carência de material, o governo federal enviou ao Estado peças ilustrativas de campanha com informações recomendadas pelo MS. Segundo ele, os garimpos ilegais são áreas de risco de contágio.

No ano passado, a insegurança na região levou o CIR a organizar grupos de vigilância, proteção e monitoramento, os chamados guardiões, para garantir o controle dos territórios indígenas contra invasões. Com a maior população indígena do país, estimada em 55 mil pessoas distribuídas em 413 comunidades em 32 TIs já demarcadas, o equivalente a 46,2% de sua superfície, Roraima é um dos pontos mais assediados do país por empresários de mineração, que investem pesado em garimpos ilegais.

O cenário gerado pela pandemia do coronavírus, diz ele, aumentou a tensão na região. “A situação é complicada. Temos problemas de imigração, garimpos ilegais e agora a evasão de pessoas que estão saindo das cidades, das sedes das vilas e indo para as aldeias e áreas rurais em busca de refúgio. A gente trabalha com os grupos de vigilância no controle do nosso território. Mas essas pessoas, por si só, sem equipamentos não podem fazer esse trabalho porque é também expor a vida delas ao risco de pegar essa doença”, alerta o coordenador do CIR.

Enoque Taurepang assumiu o comando do CIR no ano passado. É líder da etnia na Comunidade Araçá, no município de Amajari, na fronteira com a Venezuela, onde 53,8% da população, estimada em 11.560 pessoas em 2017 pelo IBGE, é indígena. Na vila indígena vivem entre 1.800 a 2 mil pessoas que, segundo ele, se já sofriam com o fluxo migratório de quem chega ao Brasil pela BR-174, nos últimos dias vivem assombradas com os riscos de contágio do coronavírus. Mais a Leste, na TI Raposa Serra do Sol, a miscigenação é um dos fatores preocupantes. Os três municípios da TI têm população predominantemente indígena, com 88,1% em Uiramutã, 56,9 % em Normandia, na fronteira com a Guiana Inglesa, e 55,4% em Pacaraima, fronteira com a Venezuela. Roraima é o estado com maior proporção de indígenas, com 11% de uma população calculada em 450,4 mil pessoas em 2010, o que explica a forte presença das etnias nas cidades, inclusive na capital, Boa Vista. Segundo o Censo de 2010, 8.500 dos 450 mil habitantes da capital se declararam indígenas — os que vivem nas cidades não são atendidos pela SESAI, mas recebem, como a população em geral, o tratamento do SUS.

O plano de contenção das entidades como o CIR é controlar o retorno de índios de diferentes etnias que vivem nas cidades e, diante do medo do contágio, estão buscando refúgio nas áreas rurais. “Nosso principal objetivo para esse momento é fazer barreiras nas entradas de acesso para que tanto a população não indígena não entre, quanto para que os parentes não saiam. Se for necessário buscar algum gênero para dar suporte à família, que seja de forma organizada. A gente está fazendo o que pode, parando totalmente a vida da comunidade para combater o vírus e sobreviver dentro de nossos territórios”, afirma Enoque. Ele lembra, no entanto, que é difícil convencer um pai de família a ficar em isolamento, quando ele precisa sair para caçar e pescar. “Não tem como pedir que os pais fiquem 24h dentro de casa, uma vez que eles não têm um ganho, um salário ou apoio”.

Enoque conta que tem acompanhado diariamente os balanços feitos pelo comitê gestor do coronavírus e as medidas anunciadas pelo Ministério de Saúde, mas sente que não há nada claro sobre como lidar com as comunidades indígenas que, além de biologicamente mais frágeis aos vírus influenza, já enfrentavam o abandono dos órgãos estatais e a forte investida de grileiros e garimpeiros.

O coordenador do CIR afirma que as comunidades estão lutando sozinhas para enfrentar um provável avanço do vírus. “É necessário que o governo e as instituições competentes venham nos ajudar. Precisamos dos materiais básicos para prevenir e combater a doença caso ela chegue às comunidades. Mas parece que as comunidades não existem, vivem em outro mundo. Não há até hoje nenhuma política ou programa emergencial para cuidar da nossa gente, que é mais vulnerável e luta sozinha aqui na ponta”.

Nos últimos dias o CIR fez chegar às comunidades por aplicativos de celular, rádio ou telefone, mensagens suspendendo reuniões ou festejos que exijam aglomerações. “De nossa parte a estratégia é usar as redes sociais e tudo o que for possível em comunicação para manter nosso povo informado sobre tudo o que está acontecendo. Alertamos para que levem a sério e se previnam. É o que podemos fazer”, diz.

No congresso, a tentativa de aprovar medidas “urgentíssimas”

A deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR) coordena a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas

No Congresso, a reação indígena ao coronavírus é capitaneada pela deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas. “Há uma preocupação a mais quanto ao aumento das invasões das terras indígenas, principalmente em áreas que já têm histórico de invasão. Esse período de crise sanitária em nenhum momento fez frear as invasões dentro das terras indígenas, que buscam a exploração dos recursos naturais”, disse a parlamentar em entrevista online a jornalistas na última quinta-feira (9).

Joenia também afirma que os povos indígenas têm agido rápido e com firmeza para impedir que a Covid-19 se alastre nas aldeias. “As comunidades têm feito um trabalho incansável de alertar a sua própria população a não ir ao centros urbanos, adotando medidas de isolamento para que não haja a entrada de pessoas estranhas, esforços justamente para proteger a coletividade”, declarou.

Diante disso, há uma preocupação com a segurança alimentar: estão sendo discutidas maneiras para que a distribuição de cestas básicas não seja prejudicada, já que servidores de órgãos como a Funai, vindos de fora das aldeias, são quem realiza a entrega dos suprimentos. Ontem (13), a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves anunciou que a pasta entregará 323 mil cestas de alimentos a 161 famílias indígenas e quilombolas com ajuda da Funai e Fundação Palmares.

No Parlamento, Joenia tem contado com aliados no trabalho de contenção ao coronavírus entre os povos tradicionais. No fim de março, ela apresentou uma Proposta de Fiscalização e Controle (PFC) para monitorar a atuação da Sesai e do Ministério da Saúde no enfrentamento da pandemia entre a população indígena – a ideia é acompanhar os processos administrativos e verificar eventuais omissões dos dois órgãos.

Junto a outros parlamentares, a deputada também propôs um Projeto de Lei (PL) que obriga a União a liberar ao Subsistema de Saúde Indígena recursos adicionais, não previstos nos Planos de Saúde dos DSEIs, em caso de pandemia, emergência e calamidade em saúde pública. Essa e outras propostas recentes sobre direitos indígenas devem ser apensadas a outro PL, que determina a adoção de medidas “urgentíssimas” de ajuda às comunidades enquanto durar o decreto de calamidade pública. Estão entre as ações o pagamento de auxílio emergencial no valor de um salário mínimo a indígenas de todo o país, reforço na proteção territorial e incremento da estrutura de saúde dos estados e municípios para que possam comportar o tratamento de indígenas cujos casos demandam internação.

Wikimedia Commons
Tiago Miotto/Cimi
Marcelo Camargo/Agência Brasil
Cleia Viana/Câmara dos Deputados

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