Cercado por investigações e pedidos de impeachment que podem levar o Congresso a debater seu possível afastamento, o presidente Jair Bolsonaro avançou na retórica bélica para inflamar os radicais de extrema direita. Ao mesmo tempo, porém, mergulhou na “velha política” do “toma-lá-dá-cá” com o Centrão, buscando blindar-se contra processos que devem passar pela Casa e de futuras CPIs.
“Nesse momento é mais fácil ele dar um golpe do que aprovar o impeachment”, disse à Agência Pública o deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força (Solidariedade-SP). Vice-líder do Centrão, Paulinho acha uma eventual tentativa de golpe é uma ameaça real e faz uma avaliação tenebrosa da crise.
“Já fez a conta do que ele precisa para dar um golpe? Estamos quase todos fora de Brasília, com o Congresso praticamente fechado. É muito mais fácil fechar o Congresso e o Supremo do que imaginar que Bolsonaro vá ser ‘impitimado’. Primeiro, a turma dele está na rua e continua indo para a rua. Os outros (do centro) não vão. O pessoal mais à esquerda também não vai. Então esquece o impeachment. Nem gosto de dar a ideia porque…vai que o cara usa”, afirmou.
Sobre o risco de uma aventura autoritária por parte de Bolsonaro, Paulinho responde: “É lógico que tem o risco. Ele tem o apoio do Exército, tem ainda o apoio de 30% de malucos que acham que ele está certo nas loucuras dele. Para dar o golpe ele prende o presidente da Câmara, prende o presidente do Senado e o presidente do Supremo, e acabou. E aí? Nós vamos ficar daqui gritando no celular”, diz.
O deputado acha, no entanto, que ainda não há clima para ruptura institucional porque a maioria da população “está mais para derrubar do que apoiando” o presidente. Além disso, segundo o deputado, parte da cúpula do governo, sobretudo o núcleo militar, “não tem vontade de fazer um negócio desses”.
A presença de Jair Bolsonaro na manifestação de domingo passado, novamente pedindo o AI-5, o fechamento do Congresso e do STF, e agora partindo para o ataque físico a jornalistas, repudiados pelo presidente, desafiou STF e Congresso. A segunda manifestação, também ilegal, segundo vários juristas, ocorreu depois de aberto o inquérito no STF para investigar quem organizou o evento antidemocrático do dia 19 de abril em frente ao QG do Exército com a participação do presidente.
Bolsonaro não apenas repetiu o evento, mas ainda tentou passar a ideia de que tem o apoio dos militares nas provocações ao Congresso e ao STF. E recebeu, em audiência no Palácio do Planalto, o coronel reformado Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o “Major Curió”, que admitiu a execução de 41 militantes da esquerda armada presos durante a Guerrilha do Araguaia e é o maior símbolo da ditadura ainda vivo.
Pela segunda vez em duas semanas, seu próprio ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, se viu na obrigação de enviar nota, afirmando que as Forças Armadas consideram imprescindíveis a independência e a harmonia entre os poderes para a governabilidade do país. O texto condena as agressões aos jornalistas, lembra que o país enfrenta uma pandemia que exige esforço das instituições e alerta que Exército, Marinha e Aeronáutica, “estarão sempre ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade”.
Ainda assim, a reação foi considerada branda demais para juristas como Wálter Fanganiello Maierovitch, desembargador aposentado e ex-ministro Antidrogas. Segundo ele, a insistência com que Bolsonaro insinua ter apoio das Forças Armadas para uma aventura autoritária exige uma postura mais clara das autoridades militares e posições mais contundentes do Congresso. “Acho que estamos num caminho perigoso para a democracia. Um chefe de poder que ignora os sistemas de freios e contrapesos e coloca a população contra o STF e políticos gera grande instabilidade. O que preocupa é como Bolsonaro passa a ideia de que tem o apoio dos militares. As Forças Armadas deveriam ter um papel moderador, mas não resistem e passam a ideia de que estão de acordo com o discurso insano e mentiroso”, afirma.
A metralhadora de Moro
Além da investigação sobre a manifestação – na qual foi incluído a pedido do ministro Celso Mello -, Bolsonaro ainda enfrenta o inquérito que investiga as declarações de Moro, prestadas durante 8 horas no sábado passado (02) à PF em Curitiba. Moro reafirmou as declarações dadas no dia de sua saída. O conteúdo do depoimento se tornou público hoje depois que a defesa do ex-ministro pediu formalmente a retirada do sigilo. O que promete acuar ainda mais o presidente.
Caso o procurador-geral da República, Augusto Aras, o denuncie formalmente por obstrução de justiça ao Supremo Tribunal Federal (STF), a Câmara dos Deputados deverá decidir, numa votação em plenário, se autoriza ou não a abertura da ação penal. A investigação deverá estar concluída em três meses e seu prosseguimento no STF depende dos votos de dois terços dos deputados (342) – o que é uma incógnita neste momento -, que resultaria no afastamento de Bolsonaro do cargo por um período de seis meses ou até a conclusão das investigações por crime comum.
Mas, se Temer salvou-se dos três pedidos de ação penal para investigar corrupção (em decorrência da delação do ex-controlador da JBS, Joesley Batista) com o apoio do Centrão, a situação de Bolsonaro é bem mais complicada. Isso por causa da força devastadora das declarações de Moro já em sua demissão.
“As declarações são fortes. Quando o presidente manda [pelo WhatsApp] a notícia sobre a polícia no encalço de 10 a 12 deputados bolsonaristas e diz que é mais um motivo para trocar o diretor-geral, caracteriza a interferência na PF”, disse à Pública o jurista Miguel Reale Júnior, um dos autores do impeachment de Dilma Rousseff. Na avaliação de Reale, o inquérito aberto por determinação do ministro Celso de Mello, decano do STF, que se aposenta em novembro, é de conteúdo técnico, de desfecho rápido e poderia afastar o presidente sem precisar um processo de impeachment, crime de responsabilidade que exigiria decisão política.
Outra fonte de problemas para o presidente é a Comissão Parlamentar Mista de Investigação (CPMI), que apura o envolvimento de Carlos e Eduardo Bolsonaro com notícias falsas contra adversários, além da possibilidade de abertura de uma segunda CPMI, pedida pela bancada do PSDB na esteira das denúncias sobre a tentativa de interferência na Polícia Federal. O presidente também é alvo de 31 pedidos de impeachment, quatro deles apresentados na última semana pelas bancadas do PDT, PSB, DEM e PSL depois das denúncias de Moro.
Pedidos de impeachment
A motivação dos pedidos de impeachment vai desde a responsabilidade de Bolsonaro pela crise ambiental, no ano passado, ao estímulo às aglomerações durante a pandemia, além da participação nos atos a favor de intervenção militar e da alegada interferência na Polícia Federal.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia tem evitado uma análise da matéria, justificando que foco do Congresso é conter as mortes pelo coronavírus e que é preciso ter cautela para evitar a radicalização na política. Há duas semanas, atendendo mandado de segurança impetrado por grupo de advogados, o ministro Celso de Mello determinou que Maia responda o que fará com os demais pedidos, já que rejeitou um deles sob o argumento de que a autoria era anônima. Os advogados querem também que o STF decida se o presidente da Câmara pode ou não ditar o ritmo de um eventual impeachment, escolhendo qual deles pedido deve entrar na pauta.
A inclusão do impeachment na pauta do Congresso seria uma espécie de divisor de águas, que poderia levar o presidente a uma atitude extrema, diz o deputado Paulinho da Força. “Vamos supor que tenha a abertura do processo de impeachment. Aí, né, é chamar o cara para briga. Quem fizer (o impeachment) sabe os riscos que está correndo”, alerta.
Para a oposição, no entanto, não há como o Congresso se desviar da discussão sobre a cassação de Bolsonaro. “A investigação por crime comum não impede que se abra paralelamente um processo de impeachment”, explica o deputado Gonzaga Patriota (PSB-ES), o decano da Câmara. Com oito mandatos consecutivos, Patriota acompanhou por dentro do Congresso todo o período da redemocratização, e nele os impeachments dos ex-presidentes Fernando Collor, Dilma Rousseff e na tentativa de afastar Michel Temer, mas acha que nenhum dos três esteve tão enrolado quanto Bolsonaro. “Acho que o momento é de esforço para reduzir as mortes provocadas pela pandemia, mas acho que se não for agora, o afastamento será discutido depois”, avalia o parlamentar.
Patriota acha que recorrer ao Centrão para tentar escapar da guilhotina, Bolsonaro desconstruirá sua principal bandeira, que é a da anticorrupção. “O Centrão não defende de graça”, diz. Formado pela ala conservadora, o bloco tem nove partidos, cerca de 300 deputados, mas está dividido. Até agora apenas PP, PR, PRB e PSD sinalizaram a adesão, o que daria 146 votos ao governo. Como Bolsonaro precisaria pelo menos 172 votos para escapar, terá de buscar mais apoio no PTB do ex-deputado Roberto Jefferson, que tem nove deputados, no PL, e no que sobrou de bolsonaristas do PSL.
O líder do PT, Enio Verri (PR) diz que ter o Centrão no governo pode dar uma sobrevida a Bolsonaro. Garantia de que manterá o mandato é outra história. “É só lembrar o caso da Dilma. O Centrão estava com ela na sexta e no domingo foi lá na Câmara e votou pelo impeachment. O Centrão sente o cheiro e quando perceber que Bolsonaro está ferrado, o abandonará”, afirma Verri. Ele acha, no entanto, que, com aprovação entre 25% a 30% nas pesquisas hoje, Bolsonaro tem apoio popular, mas caminha para o desgaste sem volta com o avanço das mortes pelo coronavírus.
“Bolsonaro não tem as mínimas condições intelectuais e de sanidade para governar. A pandemia vai mostrar que ele agrava a crise e é o problema do país. O caminho dele é a saída, por via judicial através do Supremo ou pelo impeachment. Não acredito que renuncie”, disse o petista. Verri conta que nos bastidores se fala num possível acordo entre Bolsonaro e os militares: o presidente renunciaria, entregando o governo ao vice, Hamilton Mourão, para salvar os filhos da investigação. Para o líder do PT o ideal é que se Bolsonaro sair, novas eleições sejam convocadas, mas ele reconhece que o vice tem amparo legal para assumir.
O líder da Minoria, José Guimarães (PT-CE) quer aprovar uma PEC pela convocação de eleições em 90 dias no caso de vacância no cargo. Ele diz que agora o Congresso vai se dedicar ao controle da pandemia, mas que em dois a três meses a discussão sobre o mandato de Bolsonaro tem encontro marcado no Congresso. “O Bolsonaro cometeu muitos crimes e o cerco está se fechando em torno dele. A democracia tem pesos e contrapesos. Ele faz o contrário do que determina a Constituição”, afirma Guimarães.
As acusações de Moro
Ao deixar o governo, o ex-ministro Sergio Moro caiu atirando e arrastou Bolsonaro para o ringue em que mais sabe brigar. Num discurso de 38 minutos, no dia em que se despediu do cargo, marcado pela mesma frieza com que atuou na Lava Jato, encadeou episódios que forçaram o procurador-geral da República, Augusto Aras, a agir com rapidez. Aras não teve dificuldades para hierarquizar os delitos na petição 8802, que embasa o pedido de inquérito atendido pelo ministro Celso de Mello (Íntegra da Petição 8.802), transcrevendo a íntegra da fala de Moro: obstrução de justiça, falsidade ideológica, corrupção passiva privilegiada, coação no decurso do processo, advocacia administrativa e prevaricação, todos eles relacionados às tentativas do presidente em interferir na autonomia da Polícia Federal. No depoimento que prestou à PF de Curitiba no sábado (2), Moro reafirmou as acusações, entregou prints, áudios das conversas com Bolsonaro e afirmou que os ministros Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria Geral, e Braga Netto, chefe da Casa Civil, os generais mais próximos ao presidente, estavam presentes nas conversas em que Bolsonaro teria tentado interferir na PF. Os três vão depor como testemunhas e, portanto, só podem reforçar ou desmentir Moro.
Escolhido por Bolsonaro fora da lista tríplice apresentada no ano passado pelo Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) – uma decisão inédita na relação entre o Executivo e MPF -, Aras virou personagem-chave, que pode determinar o destino do presidente no inquérito por crime comum. Cabe a ele formalizar ou arquivar as possíveis denúncias. Nos dois inquéritos que requisitou, colegas da cúpula da PGR o pressionaram a agir. Na fala de Moro, segundo assessores próximos, ele viu gravidade, agiu rápido e tornou pública a petição no mesmo dia, antes que Bolsonaro respondesse às acusações do ex-ministro.
Na mesma sexta-feira (24/04), o ministro Alexandre de Moraes, do STF, fechou a porta das investigações a influências externas ao determinar o grupo de policiais que toca os dois inquéritos não sejam substituídos até que os casos sejam encerrados. A equipe é formada pelos delegados Igor Romário de Paula, Denisse Dias Rosas Ribeiro, Fábio Alceu Mertens, Daniel Daher (de Brasília) e Alberto Ferreira Neto (de São Paulo).
O despacho de Moraes, de apenas seis linhas, não poderia ser notícia pior para Bolsonaro: a coordenação das investigações ficará com o delegado Igor Romário de Paula, principal estrela policial na Operação Lava Jato e alinhadíssimo a Moro, que o levou de Curitiba para a cúpula da PF, em Brasília. Levado ao poder pela Operação Lava Jato e o falso discurso moralista, Bolsonaro tem agora contra ele a mesma República de Curitiba que derrubou o PT do poder e mandou para a cadeia políticos importantes e um terço do PIB brasileiro.