Contrariando resolução da própria agência e atropelando normas internas sobre transparência e participação, a Anvisa pode reverter nesta semana a proibição de um dos agrotóxicos mais letais do mundo. O paraquate é proibido na União Europeia e está com data marcada para ser banido no Brasil: 22 de setembro deste ano. Classificado como extremamente tóxico, o órgão regulador decidiu proibi-lo em 2017 devido a evidências de que ele gera mutações genéticas e doença de Parkinson nos trabalhadores que o aplicam.
Faltando pouco mais de um mês para a proibição, porém, a agência reguladora violou suas próprias regras para incluir a revisão desta data na pauta de uma reunião da diretoria colegiada. A reunião está marcada para esta terça dia 18. A primeira norma violada é a que garante transparência ao processo, afirma o procurador federal Marco Antônio Delfino, do Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul, que entrou com uma ação na justiça pedindo a suspensão da pauta.
O maior problema é que, oficialmente, ninguém sabe quais são os motivos que levaram a Anvisa a colocar a revisão em pauta. Segundo o regimento do próprio órgão, os documentos e informações que vão subsidiar a tomada de decisão devem ser divulgados sete dias antes de cada reunião. Mas as informações da reunião sobre o paraquate nunca foram publicadas.
Procurada pela reportagem, a agência afirmou que “no momento, a Anvisa não se pronuncia sobre este assunto”.
Delfino suspeita que o órgão deixou de publicar as informações justamente devido à fragilidade dos argumentos pela revisão. A reportagem teve acesso a quatro pedidos feitos por produtores rurais e fabricantes de agrotóxicos para que a Anvisa adie (e posteriormente reveja) a proibição. O argumento central são duas pesquisas que, em tese, poderiam provar que o paraquate é seguro, mas que não ficarão prontas antes da data para a proibição. O atraso nas pesquisas é usado como argumento central para adiar a proibição, processo que foi denunciado em matéria da Repórter Brasil e da Agência Pública.
A principal pesquisa, porém, foi suspensa pelo Comitê de Ética da Unicamp depois que a matéria revelou os conflitos de interesses envolvidos na sua concepção. Pago pela Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja), o estudo colheu amostras de urina de parte dos trabalhadores da soja para verificar a presença do paraquate.
Depois que ele foi suspenso pela universidade onde estava sendo realizado, restou outra pesquisa também financiada pelas fabricantes do agrotóxico. Doze empresas que produzem o paraquate se juntaram no que chamam oficialmente de “Força-Tarefa Paraquate”. O grupo custeia um estudo sobre a capacidade do agrotóxico provocar mutação nos genes de ratos em um laboratório privado inglês, o Covance Laboratory.
Elaine Lopes Silva, vice-coordenadora da força-tarefa, afirmou à reportagem que o “atraso” se deve às dificuldades em definir o formato que o estudo deveria ser feito, achar um laboratório capaz e conciliar a agenda do estudo com o tempo da safra da soja. “No primeiro momento em que vimos que esse atraso aconteceria, nós comunicamos e a Anvisa se mostrou bastante aberta”, afirma. “Ela se comprometeu a levar isso [adiamento] para discussão”.
Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, porém, dificilmente uma única pesquisa feita com ratos poderia alterar uma resolução tomada a partir de uma série de estudos com seres humanos. “Não é um trabalho isolado em animais que pode contestar tudo o que já foi demonstrado pela academia científica nestes últimos oito anos, com a publicação de centenas de artigos, de renomadas instituições em muitos países”, afirma a toxicologista Solange Cristina Garcia, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de pesquisa sobre o aumento de morte celular e dano de DNA devido à exposição ao agrotóxico. “Existem trabalhos científicos robustos que demonstram que o paraquate desenvolve a doença de Parkinson em pessoas expostas cronicamente a baixas concentrações deste agrotóxico, que é também extremamente letal em exposição aguda”.
Para o ex-gerente geral de toxicologia da Anvisa e pesquisador da Fiocruz, Luiz Cláudio Meirelles, voltar atrás em uma decisão como essa seria “muito grave”. “Do ponto de vista regulatório, os estudos que foram analisados pela Anvisa já seriam suficientes para a decisão que ela tomou”, afirma. Meirelles, que ocupou o cargo na Anvisa de 1999 a 2012, não lembra de ter visto um processo de revisão desta magnitude desde que entrou na agência.
Lobby intenso
Desde que a decisão de banir o paraquate foi tomada pela Anvisa em 2017, o assunto virou objeto de intenso lobby sobre a agência. Na época, foi dado um prazo de três anos para os produtores encontrarem substitutos para o agrotóxico, que está entre os mais usados no país. Mas, desde então, empresas fabricantes de agrotóxicos e produtores rurais fizeram mais de 20 reuniões na Anvisa para discutir a possibilidade de adiar e até reverter a proibição. A agenda, compilada pela Repórter Brasil e Agência Pública, revela que as maiores multinacionais do setor, como a Syngenta, e representantes dos maiores exportadores do Brasil, como a Aprosoja, foram diversas vezes à agência discutir a pauta específica do paraquate.
Questionando o modo como a Anvisa responde aos pedidos da indústria, essa não foi a primeira vez que o MPF entrou com ação neste caso. Em março deste ano, a mesma pauta entrou na agenda do órgão regulador, despertando a atenção do procurador Delfino. Na época, a agência divulgou que a discussão sobre o adiamento da proibição do agrotóxico girava em torno das pesquisas ainda não concluídas. Argumentando que a agência só poderia mudar a sua própria resolução quando novos resultados fossem apresentados, ele conseguiu barrar a pauta na justiça.
Em 23 de julho deste ano, a decisão foi revertida pelo desembargador federal Mairan Gonçalves Maia Júnior, do Tribunal Regional Federal da 3a região, deixando a Anvisa desimpedida de votar sobre o assunto. Nos recursos feitos pela Anvisa dentro do processo, a agência não apenas argumenta pelo direito de colocar o assunto em pauta, mas pela importância do adiamento da proibição.
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A partir daí, as coisas aconteceram rápido. Quatro dias depois da decisão, em 27 de julho, o diretor Romison Mota, atual responsável pelo processo dentro da Anvisa, fez reunião virtual com representantes do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Na pauta: “Avaliação da decisão judicial referente ao ingrediente ativo Paraquate”. Duas semanas depois, a revisão voltou a entrar na pauta da Anvisa.
Procurado pela reportagem, o MAPA enviou nota afirmando que “considera que a produção de dados oriundos de estudos mais atualizados poderá melhor embasar a decisão sobre a manutenção ou não do banimento do produto. A Anvisa tem competência técnica e legal para avaliar o tema. Portanto, aguardamos a decisão da Anvisa sobre a questão”.
“Vão ficar encomendando e pagando pesquisa até conseguir um resultado que mostre o que realmente eles querem mostrar”, critica Juliana Acosta, militante da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida. A organização, responsável pelo lobby contra o paraquate, dava essa frente como vencida, mas agora volta a acompanhar a movimentação na Anvisa com apreensão. “Não esperávamos que três anos depois tivéssemos que voltar a priorizar uma substância que já concluiu seu processo de revisão. Mais uma pauta que nos exige lutar para não retroceder em debates que considerávamos superados”.