Mesmo sem ter dado um golpe de estado, as ações autoritárias de Bolsonaro estão aos poucos corroendo a Constituição e a democracia. É o que afirma a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, autora de uma série de livros sobre a história e a cultura do país, entre os quais “Sobre o autoritarismo brasileiro” (2019) e “Brasil: uma biografia” (2015).
“Um presidente que não segue a Organização Mundial da Saúde e prefere criar fatos falsos, que resolve vender para a população a ideia de que um remédio que não é apoiado pelas pesquisas médicas e científicas resolveria o problema dos brasileiros, é um presidente autoritário. E um presidente que fala em liberdade de expressão, quando, na verdade, mentira não é liberdade de expressão”, pontua a professora da Universidade de São Paulo.
Em entrevista exclusiva à Agência Pública, por indicação dos Aliados – nosso grupo de leitores/apoiadores -, que também enviaram perguntas, Schwarcz diz que também vê com preocupação a presença maciça de militares do governo. “Nosso primeiro presidente, Deodoro da Fonseca, foi um militar, o segundo, Floriano Peixoto, também. O Exército foi construindo lentamente essa ideia de “salvadores da nação”, mas quando a gente vê o Exército atuando, não é isso que acontece. Os anos da ditadura militar não foram anos bons para o Brasil, tivemos uma inflação galopante, vários problemas de corrupção. Essa imagem dos militares como um setor muito racional não confere com nenhum momento em que eles estiveram no poder.”
Além de relacionar o Brasil do presente com sua história, Schwarcz ressalta a necessidade de construir uma memória indígena, negra e ribeirinha, pois estas experiências não são contempladas na memória das pessoas brancas, que é dominante no país. Ela também reafirma que se precipitou ao criticar o novo álbum da diva Beyoncé em um texto recente, que a tornou alvo de fortes críticas nas redes sociais. “Eu quero viver em um país em que a gente pode errar e sair melhor do erro,” diz.
Na sua obra você afirma que o autoritarismo está na essência do Brasil, ou seja, está nos governos autoritários mas no povo também. Quais são as origens disso?
Quando eu escrevi o livro “Sobre o autoritarismo brasileiro“, foi uma reação imediata à eleição de 2018. Eu anuncio na introdução dois pressupostos básicos: o primeiro é que o nosso presente está lotado de passado e, o segundo, é que, para quem se espantava muito com o resultado das eleições de 2018, o livro ia mostrar como nós sempre fomos autoritários. Claro que existe um contexto global de eleição de vários governos de matriz autoritária, populistas e retrógrados, até, que também explica a eleição de Jair Bolsonaro. Mas eu estava muito interessada em entender as nossas raízes.
A primeira raiz é a escravidão, que é a grande contradição da história e da sociedade brasileira, na minha opinião. Porque a escravidão criou uma sociedade que naturalizou o [poder de] mando, e mais ainda, naturalizou a prática do mando por poucas pessoas. Claro que nós sabemos que os escravizados reagiram sempre, desde que existia escravidão existiam quilombos. Mas, esse é um modelo que naturaliza a posse de uma pessoa por outra. É um modelo altamente autoritário, porque, inclusive, não concede ao outro nem o estatuto de humano, o outro é uma propriedade que eu posso leiloar, penhorar, torturar. A escravidão, que era mais que um sistema de trabalho, virou uma linguagem violenta com várias consequências.
O outro lado do nosso autoritarismo é a nossa própria estrutura colonial. A América Portuguesa era um território muito grande para uma metrópole pequenina. A saída foi a distribuição de grandes lotes de terra, que seriam dominados, mais uma vez, por poucos mandatários. Na minha concepção, o senhor da época da Colônia se transformou no nobre do café na época do Império, no coronel na época da Primeira República, e isso explica como em 2018 os brasileiros elegeram a maior “bancada dos parentes” [famílias que se perpetuam no poder por gerações]. Estamos falando de uma situação reiterada e que se pauta em um sistema violento.
Como esse autoritarismo se expressa no cotidiano?
Por exemplo, vamos falar da questão da pandemia. Um chefe de governo que, em pleno período pandêmico, demite seu ministro da Saúde para colocar no seu lugar um general sem qualquer experiência no trato de pandemias é um presidente autoritário. Um presidente que não segue a Organização Mundial da Saúde e prefere criar fatos falsos, que resolve vender para a população a ideia de que um remédio que não é apoiado pelas pesquisas médicas e científicas resolveria o problema dos brasileiros, é um presidente autoritário. E um presidente que fala em liberdade de expressão, quando, na verdade, mentira não é liberdade de expressão.
Ele não é só autoritário – é um presidente populista. O que é a matriz do populismo? É quando você tem chefes de estado que acreditam que falam diretamente com o povo e que, portanto, não precisam da ciência, da academia, dos jornalistas, das instituições democráticas.
Esses são exemplos de um presidente que, inclusive, sequestrou conceitos básicos. É um presidente que fala em democracia como se democracia fosse só eleição. A eleição é o começo, a democracia a gente faz todo dia na prática, o que sustenta a democracia é justamente o tema dos direitos e da liberdade. Nós temos um presidente evidentemente autoritário.
Você acredita que há possibilidades reais de uma corrosão da democracia em nosso país?
Na minha opinião, isso já está acontecendo. Esse é um presidente que não precisa dar golpe, ele próprio é um estado de golpe. Nós acabamos de saber por uma reportagem da revista piauí, que estávamos a um passo do golpe. A matéria se refere ao encontro do dia 22 de maio em que Bolsonaro chega a dizer que ele queria retirar todos os ministros do STF. Não fez isso, foi convencido pelos seus colegas a não fazer, mas esse é um presidente que a todo momento fala em golpe, fala com grande carinho sobre a ditadura militar.
É um presidente que não sabe fazer gestos de luto, era preciso que ele fizesse isso quando chegamos ao número redondo de 100 mil brasileiros [mortos pela pandemia]. Ao contrário, ele tende a dizer que esse número não é verdadeiro.
Então, é um presidente que nos seus atos e nas suas falas, diuturnamente, ataca as instituições democráticas, ataca o Supremo, ataca a Câmara, ataca o Senado, ataca os governadores dos estados, ataca a região Nordeste, que não o elegeu. É nesse sentido que estou dizendo: ele não precisa derrubar a Constituição, porque ele a rasga todo dia, ele corrói a Constituição por dentro. Não é necessário dar um golpe, porque no seu cotidiano ele já vai lentamente construindo esse golpe.
Como o autoritarismo do Bolsonaro se diferencia do autoritarismo de outros líderes do passado?
O Bolsonaro é um presidente autocrata, no sentido de que ele exerce o poder tentando a todo momento burlar o corpo da lei. Mas o que distingue é ele ter sido o primeiro presidente brasileiro eleito pelas redes sociais. Ele aprendeu com a experiência americana da eleição do Trump. Ou seja, ele fez uma campanha voltada para responder a anseios de um determinado segmento que andava descontente com a situação brasileira – quem não estava né, com a carestia que se montou desde 2013 –, com a violência, com a segurança. São pautas legítimas, eu não discordo disso, eu discordo do encaminhamento do presidente.
Mas o que há de muito específico é ele fazer farto uso desse tipo de tecnologia, encontrar o seu nicho e falar com esse nicho. Na história do Brasil um presidente candidato costuma ter um tipo de discurso de palanque, mas um presidente eleito tem que falar para todos. E Bolsonaro continua com o discurso de palanque, vocacionado para aqueles 30% [da população] que são o seu eleitorado.
Como você analisa o papel das Forças Armadas dentro desse contexto?
As Forças Armadas são compostas pelo Exército, pela Marinha e pela Aeronáutica. O setor que está mais montado nesse momento, é, sobretudo, o Exército. Na sua campanha e quando eleito, Bolsonaro disse que colocaria grandes especialistas no ministério. O que nós estamos vendo é que esse é o governo em que temos mais militares como ministros de Estado. Os militares cresceram muito e estão em áreas em que eles não são especialistas e ocupando o lugar de conselheiros do presidente. Eu acho que eles devem aconselhar o presidente no que se refere às áreas em que eles atuam, mas não nas áreas em que eles desconhecem.
Boa parte desses militares que estão agora no governo participaram daquela intervenção do Haiti. Antes havia a ideia de que se tratava de uma intervenção boa para o Haiti, mas agora nós sabemos que não, que foi um golpismo no Haiti. A ideia dos militares como “salvadores da nação” é antiga e começa na Guerra do Paraguai – quando o Exército foi o único vitorioso, porque o Império começou a sua decadência depois desta guerra. Essa ideia continua durante a Primeira República: nosso primeiro presidente, Deodoro da Fonseca, foi um militar, o segundo, Floriano Peixoto, também. O Exército foi lentamente construindo essa ideia de “salvadores da nação”, mas quando a gente vê o Exército atuando, não é isso que acontece. Os anos da ditadura militar não foram anos bons para o Brasil, tivemos uma inflação galopante, vários problemas de corrupção.
As pessoas gostam de perguntar qual a minha opinião, eu não tenho opinião, eu tenho uma informação. Essa imagem dos militares como um setor muito racional não confere com nenhum momento em que eles estiveram no poder. Então eu vejo com grande preocupação a presença deles nos postos do poder executivo.
Mas os militares ainda têm muita legitimidade, muita gente ainda acredita nessa ideia de “salvadores da pátria”.
Depende do setor. No setor mais popular, sim, e agora cada vez mais porque você tem um chefe do Executivo que vende essa imagem o tempo todo.
A eleição é um contrato entre os eleitores e aquele que é eleito, e essa pessoa fala em nome dos eleitores. Quando uma personalidade como Jair Bolsonaro chega ao lugar em que ele está, ou seja, como chefe do Planalto, ele passa a ser um exemplo para a nação. Não me preocupa o que Jair Bolsonaro pensa ou não pensa, porque nós já sabíamos como ele era: 28 anos atuando como deputado federal com quase nenhum projeto relevante aprovado. O que me preocupa muito é o que ele avaliza, o que ele qualifica.
E assim ele vai construindo seu eleitorado. Veja que ele já está falando das próximas eleições em 2022. Nós sabemos que o histórico dele como militar não é de sucesso, mas como ele se vende como um militar ele também passa essa imagem [de “salvador da pátria”] para a população.
Em “Brasil: uma biografia“, você fala de vários traços que definem o Brasil: o familismo (quando questões privadas se sobrepõem às públicas), o autoritarismo, o patrimonialismo. O Bolsonaro encarna muitos desses traços. Você acha que ele simboliza o Brasil?
Ele simboliza um certo Brasil. Eu sinto que minha geração falhou: eu sou de uma geração que acreditou que, depois da Constituição de 1988, esse era o nosso Brasil e agora era importante a gente investir na educação, investir na cultura, sanear a economia e por aí vamos.
O que muitos analistas não viram é esse outro Brasil que é contrário às pautas identitárias, aos novos agentes – nisso eu me refiro às populações negras, às mulheres, à população LGBTQI+, aos ribeirinhos. Há um Brasil que acredita piamente na questão da hierarquia, do patrimonialismo, do familismo, ou seja, acredita na ideia de que a política se ganha nas urnas, mas também entre e nas famílias. Basta ver a quantidade de estados em que o familismo é vigente. Jair Bolsonaro representa sim um tipo de Brasil: que ficou na Revolução Militar, que faz um elogio ao golpe de Estado e aos anos de ditadura e que não concorda com esse Brasil mais plural e generoso.
Você estudou a história do D. Pedro II no livro “As barbas do Imperador“. Há semelhanças entre as grandes figuras da política brasileira com D. Pedro II? Existe algum arquétipo de líder que vive no imaginário brasileiro?
Sim, e eu acho que ele explica o Bolsonaro também. Os brasileiros carregam esse arquétipo de que o presidente não é igual a você: o presidente é um grande pai, e, como todo pai, ele é bondoso, mas também muito austero quando precisa. Basta a gente ver a figura do Getúlio Vargas, a figura de D.Pedro II, a figura que o Lula também foi construindo para si. E também a figura de Jair Bolsonaro, que é esse modelo de um pai muito autoritário, muito severo, mas ao mesmo tempo bondoso. Veja como ele está se vinculando ao Bolsa Família, como ele está tentando recriar um projeto nessas bases para 2022. Eu acredito que sim, é um arquétipo do pai, e não da mãe. A gente viu a quantidade de preconceito e discriminação contra a Dilma Rousseff. A ideia de que as mulheres são fracas, que gaguejam. É impressionante como esses discursos são particularmente violentos contra as mulheres.
Por que a grande maioria dos governantes no Brasil continua sendo homens brancos, ricos, e conservadores, sendo que o povo brasileiro é muito mais diverso que isso? É claro que esse “grupo” detém muitos dos recursos financeiros e políticos para ganhar uma eleição e se manter no poder. Mas porque não votamos em quem realmente nos representa?
Existem vários elementos. O primeiro elemento é esse que já falamos, do arquétipo do pai. Outra questão fundamental que eu trato no livro é o machismo que reina na sociedade brasileira, a ideia de que são os homens que devem governar. Quando Heloísa Starling e eu publicamos “Brasil: Uma biografia“, mais de um jornalista falou, “como você se sente, enquanto mulher, escrevendo uma história do Brasil?”. Eu adoro o historiador Boris Fausto, é o meu mestre querido, mas eu duvido que tenham perguntado pra ele: “como você se sente como homem escrevendo uma história do Brasil?” Quer dizer, isso é um machismo atroz, a ideia de que quem pode dar uma grande interpretação ou ser o presidente do país, não pode ser uma mulher, tem que ser um homem.
Há também a questão do nosso pensamento colonial, ou seja, nossa história é eminentemente branca, europeia e masculina. A maior parte dos nossos personagens públicos são homens. Isabel é filha de D.Pedro II, a sua identidade vem do fato de ser filha.
E tem uma questão que é preciso discutir, que é a questão da branquitude. A gente fala muito de racismo, mas é como no discurso do Vieira: falar do pássaro e não falar da sombra, ou seja, é preciso falar dos dois. É preciso falar do racismo, mas é preciso falar de quem produz o racismo, que é essa sociedade branca, é a branquitude.
Nós naturalizamos o homem branco de classe média alta ou rico como o nosso presidente por causa da união de todos esses elementos.
Você enfrentou fortes críticas na semana passada depois da publicação do seu texto na Folha sobre a nova obra da Beyoncé, “Black is King”. Você poderia explicar melhor qual foi a sua crítica à obra e quais foram os pontos positivos que você observou?
Eu gosto muito da Beyoncé, não é a primeira vez que eu escrevo sobre ela. O que era muito positivo era o fato da Beyoncé pegar uma história clássica do Ocidente, Hamlet, e ler essa história a partir das realidades negras. Ou seja, o que seria traição, o que seria ético, dentro de uma história negra, que é profundamente diversa. Há um grande elogio a essa questão.
Por outro lado, ao final, há uma crítica aos essencialismos, que também está sendo feita nos Estados Unidos e em outros lugares. Ou seja, se nós somos contra essencializar a história ocidental, há de se perguntar, pelo menos, se é importante essencializar a história africana. Mas eu eu concordo que essa crítica não foi bem feita – como disse no meu vídeo de desculpas de forma absolutamente sincera. Eu não deveria ter aceitado fazer um artigo tão rápido, eu não sou jornalista, não tenho a capacidade de escrever rápido, tudo na minha vida demora, cada livro demora uns 9, 10 anos. São todas culpas minhas.
As críticas que eu gostei e que me fizeram pensar, me chamaram bastante atenção sobre o afrofuturismo: como você pode imaginar uma outra possibilidade, uma outra literatura, uma outra cultura e inverte dessa maneira também. Essas foram as críticas procedentes e eu acho que há um diálogo que pode ser feito.
Mas, eu repito que eu não imaginava essa reação. Teve também a questão de ter sido prejudicada pelo título, a própria ombudsman da Folha reconheceu que há uma discrepância entre o título e o que eu digo no texto. No artigo eu não fico dando lição de moral, e nem digo que a Beyoncé erra, como sugere o título. São termos e truques que o editor colocou para atrair o leitor. Não é que eu queira me valer do erro da Folha, mas eu acho que a Folha também deveria pegar para si, como fez agora, a parte que é dela. Eu quero viver em um país que a gente pode errar e sair melhor do erro, e foi isso que eu tentei fazer naquele momento.
É claro que a gente lamenta aquele diálogo que não foi bom e que foi mais violento, à sua maneira muito autoritário. Mas eu tentei da minha parte ver qual era o meu lugar naquele latifúndio. Eu acho que se o racismo é, de fato, estrutural, todos estão sujeitos a ele e todo mundo tem que lidar com essa parte da questão da sociabilidade brasileira.
Sendo uma intelectual branca que pesquisa a escravidão e o racismo no Brasil, como você entende o seu lugar de fala dentro desse tema?
Eu penso que todo mundo tem lugar de fala. Eu falo como uma pesquisadora branca, tanto que no livro “O Espetáculo das Raças” eu mostro como o darwinismo racial foi uma criação das escolas de Medicina, de Direito, dos institutos históricos, dos museus. Eu falo como uma intelectual branca que tem acesso à documentação e que a oferece a todos. O lugar do qual eu falo é esse de uma professora, acadêmica, pesquisadora, que se dedica a isso há muitos anos. E eu falo como aliada também. Se foram os brancos que criaram o racismo, a escravidão, o darwinismo racial, as teorias de branqueamento e o mito da democracia racial, há de se estudar não só a escravidão, mas também a branquitude. É desse lugar que eu falo, como uma intelectual branca, da Universidade de São Paulo, de Princeton. E me orgulho de ser uma aliada nessa luta antirracista.
No livro “Brasil: Uma biografia“, você fala que a história do Brasil e o brasileiro se definem pela “mestiçagem”, por elementos contraditórios que convivem. A diversidade de raças que existe no Brasil hoje é uma coisa positiva, mas tem como origem um processo violento de invasão dos territórios indígenas, de tráficos de pessoas negras. Essa contradição é um traço inerente do Brasil?
A mestiçagem não é um termo neutro, é um termo que foi sendo construído como uma coisa boa, uma grande mistura. Como cientista social, me interessa entender por que a mestiçagem é mistura, mas por que ela também é separação. Heloisa e eu dissemos no livro que o Brasil não é uma sociedade do “ou”, é do “e”. Não é ou mestiçada ou violenta, é as duas coisas. Boa parte das sociedades são assim, elas se movem na contradição.
Nós temos contradições básicas que não foram solucionadas e que continuam presentes na nossa pauta. Uma delas é que o Brasil se construiu como um país da não-liberdade. A gente não pode esquecer que, durante quase quatro séculos, boa parte da população não tinha acesso à educação, à liberdade.
Essa também é uma sociedade de muitas contradições entre representação e realidade. Como é que o brasileiro se reconhece nessa imagem do povo pacífico, cordial, tendo permitido que o sistema escravocrata fosse vigente durante tanto tempo? Isso só poderia gerar uma sociedade muito violenta e profundamente desigual. O fato do país se acomodar com essa desigualdade tão gritante, na minha opinião, é um ato de violência. Nós vínhamos melhorando esses índices e esses índices caíram novamente de uma maneira gritante. Nós não atacamos o círculo vicioso da desigualdade, da pobreza. Enquanto nós não atacarmos, seremos esse país de grandes contradições.
Outro aspecto disso é como o Brasil frequentemente busca “esquecer” o que foi a ditadura e a escravidão e, com isso, naturalizar a violência que caracterizou esses dois períodos.
Todas as sociedades buscam esquecer. Há quem diga que a função do historiador é lembrar, mas é também esquecer. O brasileiro tem problemas com a questão dos ressarcimentos, por exemplo. Não me refiro só a ressarcimentos pecuniários, mas a ressarcimentos da memória. Durante muitos anos nós esquecemos de uma determinada memória para falar só da memória das pessoas brancas desse país. Nós não tratamos da memória dos indígenas, dos quilombolas, dos ribeirinhos, como se só existisse uma fonte de memória. Eu acho que essa política de esquecimento e o direito à memória são questões muito sérias no Brasil.
No livro “Brasil: uma biografia” você fala sobre esse traço da nossa cultura que sempre espera um futuro melhor e espera algum tipo de milagre para resolver a situação atual. Por que isso acontece?
O Brasil é um país do futuro há muito tempo. O problema é que se os brasileiros continuarem a ter esse pé no milagroso, continuarem a delegar essa função para o presidente e não fizerem um planejamento melhor, essa situação vai se postergar. A gente precisa de planejamento, de políticas públicas, econômicas, políticas na área da saúde, na área de cultura, e que sejam coerentes. Nós não temos isso há muito tempo.
E isso é verdade no macro e vai para o micro. Eu concordo com o [jurista e filósofo] Silvio Almeida quando ele diz que nós não teremos uma democracia enquanto formos tão racistas. Esses passos podem ser dados no nosso cotidiano, não é preciso só cobrar lá em cima.
Na empresa em que eu trabalho, por exemplo, como é a composição em termos de região, geração, raça, gênero? Como avaliamos e criamos processos de recrutamento não a partir das nossas relações pessoais, mas a partir de um critério racional, que também é generoso e plural? Como é que cada um pode assumir as suas responsabilidades, determinando objetivos, práticas, métricas [de diversidade] nos lugares que ocupa? Como podemos aumentar a conscientização da população?
Enquanto a gente não conseguir mudar esses processos visando mais transparência, mais justiça, maiores oportunidades, nós vamos ser condenados a repeti-los. Eu sou historiadora e acho que a História ajuda muito, mas como eu digo no meu livro, ela não é bula de remédio. Ou seja, se as pessoas não realizarem, não adianta nada. Está na hora de construir outros processos.
Apesar do brasileiro ter a fama de ser um povo dócil e cordial, os brasileiros já lutaram contra o autoritarismo em muitos momentos no passado, desde a escravidão até a ditadura. Que lições podemos aprender com essas lutas para enfrentar a situação que vemos hoje?
Como historiadora eu penso que em vários momentos da história do Brasil a sociedade civil compareceu. Eu cito um que é muito claro: quando Getúlio Vargas cometeu suicídio, os brasileiros foram às ruas, clamaram por direitos e retardaram em pelo menos 10 anos a ditadura que já estava sendo montada.
Nesse momento em que estamos vivendo agora com a pandemia, a gente também pode ver a sociedade civil se manifestando através das ONGs, do trabalho voluntário. É o suficiente? Não, mas eu penso que o Brasil precisa de mais cidadania e de menos exemplos como o do desembargador, do casal de engenheiros – que falaram “cidadão não, engenheiro” –, ou mesmo do caso terrível de maus tratos ao entregador. O que fará de nós uma democracia melhor é se nós trabalharmos com duas noções que distinguem governos democráticos, que são justamente igualdade e liberdade.
A democracia se sustenta nesses dois princípios e depende deles. Eu penso que democracia não é só um regime político, é um modo de vida, é uma forma de estar em sociedade. Ela carrega esse ideal de extensão da cidadania, do direito de participar, e se orienta, por sua vez, pela inclusão, pelo pluralismo – são valores que devem nos guiar.
O Brasil carrega agora dois espelhos diferentes. Um espelho muito odioso, muito violento, um espelho do familismo e da velha política, e, um outro espelho do Brasil que a gente quer ter, um Brasil mais generoso, mais cidadão. Nesse sentido que a democracia é um modo de vida, porque depende de nós também.
Em um texto recente publicado no Nexo você conta que em 1918, durante a pandemia de gripe espanhola, os brasileiros já apostavam em remédios e receitas “milagrosas” para curar uma doença que não tem cura – desde caipirinha até sal de quinino. Na pandemia do novo coronavírus, os “milagres” são a cloroquina, ivermectina, e outros remédios. Por que o brasileiro insiste em milagres para coisas que não tem cura?
Eu estou estudando a pandemia da gripe espanhola. Desde a Idade Média quando você tem esses fenômenos pandêmicos, você tem os santos curadores, os santos da peste que são aqueles a quem você vai recorrer na hora da peste. Momentos de pandemia são momentos em que a população fica muito insegura, não sabe projetar o futuro. Nessas situações, não há nada como apostar em um milagre. Eu entendo que a população faça isso, mas não que o presidente faça isso e com outros objetivos – porque nós sabemos como os militares estão envolvidos na distribuição da cloroquina.
Algumas diretrizes da OMS já estavam dadas em 1918: o isolamento, as escolas foram fechadas, as igrejas foram fechadas, os campeonatos adiados. São procedimentos mínimos para conter ao máximo uma pandemia. Quando você não faz isso, como o presidente não faz, quando você não exalta a população que pode ficar isolada a fazer isso, você se transforma não em um presidente, mas em um milagreiro. Isso não é só no Brasil.
Na semana passada ultrapassamos a marca de 100 mil mortes pela Covid-19, ou seja, somos o segundo país em que mais pessoas morreram nessa pandemia. Sem dúvida a inépcia do governo federal para lidar com essa crise é um dos principais motivos para isso. Mas há também comportamentos do próprio povo brasileiro que favorecem isso, por exemplo a falta de adesão ao isolamento. Que elementos do nosso comportamento enquanto pessoas contribuíram para isso?
Não foi sempre assim. Não foi assim em 1918, não teve esse desquite entre o Executivo e o seu ministro da Saúde. Esse é um lado da questão. As atitudes do presidente têm claro impacto na sua população. Se você tem um presidente que se opõe ao uso de máscara, que se opõe a ideia de que não devem existir aglomerações, é claro que os seus eleitores copiarão esse tipo de comportamento.
Não dá pra gente dizer que o brasileiro é assim, dá pra gente dizer que o brasileiro está assim. Eu não gosto desse tipo de ideia, “ah, os brasileiros são assim, ou assado”, porque muita gente dirá, “se nós somos assim, o que há pra fazer? Vamos em frente”. Nós não somos assim, nós estamos assim.