Em 2015, o biomédico Renato Filev foi um dos selecionados em edital promovido pela Secretaria Nacional de Álcool e Drogas (Senad), unidade do Ministério da Justiça e Segurança Pública, para financiar estudos sobre novas formas de combater a dependência química. A verba de R$ 700 mil do governo federal seria usada pelo pesquisador para testar hipóteses que levantou ao longo da sua vida acadêmica. O experimento era relacionado à redução de danos: com apoio do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), um grupo de usuários de crack seria submetido à vaporização de cannabis como terapia auxiliar para abandonar o uso abusivo. O estudo, no entanto, nunca foi feito.
Com prazos estourados e atrasos em pareceres, o biomédico não conseguiu sair do labirinto burocrático para concretizar a importação de uma doação de 10 quilos de flores da cannabis da empresa canadense-holandesa Bedrocan. Ao fim de 2019, quando a tese deveria ser concluída, ele tentou a prorrogação do financiamento da pesquisa, mas o pedido foi negado pela Senad. “O pessoal até sugeriu teorias da conspiração, se alguém teria interferido, mas eu não quis entrar nesse tipo de paranoia”, conta o biomédico.
A via-crúcis enfrentada pela pesquisa de Filev é a mesma de muitos cientistas que tentam realizar estudos com substâncias combatidas pela guerra às drogas, como constatou a reportagem da Pública ao longo de nove meses de investigação sobre o trabalho de acadêmicos que estudam substâncias proscritas. Entre os relatos, há pesquisadores que desistiram de investigar um tema por causa das burocracias e alguns que até mesmo trouxeram substâncias clandestinamente para viabilizar os primeiros passos da pesquisa.
Filev, que pesquisa desde a graduação os efeitos da cannabis nas alterações cerebrais ligados à memória, tomada de decisões, emoções, motivações e dependência, acabou se juntando a outros pesquisadores de diferentes áreas – neurocientistas, engenheiros agrônomos e advogados – e fundou a Canapse (sigla para Canabiologia, Pesquisa, Serviços e Ensino), uma associação que pretende produzir substâncias proscritas para uso em pesquisas acadêmicas. “A ideia é dar vazão a um sintoma que não é exclusivo meu, que é a morte de vários estudos, que estão morrendo na praia por falta de insumos”, explica Filev.
Com data de fundação em abril de 2019, a Canapse começou a sair do papel durante a pandemia da Covid-19, quando estabeleceu a sede em Maricá (RJ). O primeiro cultivo já aguarda a colheita, e a associação celebrou um convênio inédito com a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), publicado no Diário Oficial da União no dia 15 de julho.
A legalidade do cultivo de cannabis pela entidade se respalda em um habeas corpus concedido em 2018 ao advogado e ativista antiproibicionista Ricardo Nemer. Três anos antes, em 2015, uma operação da Polícia Civil apreendeu 30 pés de maconha que ele mantinha em casa para uso pessoal e terapêutico. O inquérito policial contra Nemer deu origem a uma ação criminal, aberta pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, por tráfico de drogas.
“Foi um furacão que passou, mas depois veio para o bem”, diz Nemer sobre a decisão da juíza Adriana Ramos de Mello, tomada em setembro de 2018. “A gente conseguiu trancar a ação por tráfico e o habeas corpus reconheceu meu direito enquanto usuário, pesquisador, e, ainda, a inconstitucionalidade da lei”, comemora o ativista. A decisão da magistrada impede agentes policiais de “apreenderem as plantas do tipo Cannabis sativa destinadas ao seu consumo pessoal e terapêutico”.
Nemer quis dar uma “função social” ao direito que conseguiu na Justiça, por isso se juntou à Canapse. A estratégia da entidade é agir nas brechas legais e forçar a expansão dos limites jurídicos – já que não há previsão legal para o cultivo da cannabis no Brasil, nem mesmo para fins acadêmicos.
Marcos legais
O controle de substâncias psicotrópicas e entorpecentes está estabelecido por três tratados internacionais – assinados em 1961, 1971 e 1988 – no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). Eles constituem a referência legal sobre drogas para todos os países signatários, entre eles o Brasil. Mas, se determinaram a proibição de uma série de substâncias, os tratados nunca impediram o uso das drogas no desenvolvimento de trabalhos acadêmicos – pelo contrário, asseguram sua disponibilidade para uso médico e científico. A regulamentação fica a cargo de cada país.
Hoje, no Brasil, os pesquisadores são reféns da importação de qualquer substância considerada proscrita, como a cocaína, a psilocibina, o DMT, que vem da ayahuasca, e o MDMA, também conhecido como ecstasy. Isso significa que, mesmo para usos acadêmicos, a produção, fabricação, importação, exportação, comércio e uso são proibidos no país, a não ser com autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão responsável pela classificação e fiscalização de substâncias controladas.
“A Canapse veio como uma ferramenta para que os pesquisadores possam acessar o que precisam, porque para a ciência não pode haver limites. O único limite da ciência é a bioética”, diz Nemer. “O que estamos fazendo é um fato social, não é o direito. O fato social produz o direito. O direito demora: cria-se a lei, a lei entra em vigor. Mas o fato social é dinâmico. A lei só vai regular depois que ele acontece”, defende o ativista.
Um caminho parecido, dizem os fundadores, ao de dezenas de associações de cultivo que surgiram no Brasil, de maneira ativista, para garantir o acesso aos medicamentos oriundos da cannabis enquanto a legislação não avança.
Além do habeas corpus de Nemer, os advogados da associação vão entrar com pedidos de alvarás na Justiça Federal. Emílio Figueiredo, advogado da Rede Reforma e cofundador da Canapse, explica: “Vamos para o Judiciário mostrar que a gente tem um habeas corpus que dá a origem lícita à matéria vegetal, a gente tem uma instituição de pesquisa com toda a estrutura necessária, temos um projeto de pesquisa. E agora precisamos de um alvará para dizer que a pesquisadora pode ter acesso às plantas sem incorrer em crime”.
O primeiro pedido de alvará na Justiça tenta viabilizar a pesquisa da engenheira agrônoma Ingrid Trancoso, doutoranda em produção vegetal na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). A engenheira agrônoma pretendia investigar o cultivo da planta no mestrado, mas desistiu do projeto pela impossibilidade de conseguir autorizações para o plantio. A alternativa seria buscar uma parceria no exterior, mas não houve tempo hábil para isso, já que sua dissertação tinha que ser entregue em dois anos. “No Brasil, as pesquisas [de cannabis] na área agrária são praticamente inexistentes, porque a gente precisa cultivar a planta”, explica.
Já no doutorado, Ingrid decidiu tentar parcerias com empresas e associações – até conhecer a iniciativa da Canapse. “Meu objetivo é avaliar como o manejo da planta e o ambiente influenciam na produção dos compostos para uso medicinal. Então, é entender o espaçamento, a restrição do crescimento radicular, a intensidade luminosa – como todos esses fatores podem interferir na produção da planta”, explica a pesquisadora.
A dois anos da entrega do projeto, a cientista será a primeira a pesquisar com o uso do cultivo da Canapse. Para Ingrid, o estigma social promovido pela guerras às drogas traz atrasos não só para a academia: “Esse preconceito coloca barreira no desenvolvimento científico, limita a abertura de um mercado potencial no desenvolvimento de produtos sustentáveis, que poderia servir diversos setores industriais – indústria automobilística, alimentícia, farmacêutica, têxtil – e gerar empregos”, detalha.
O acordo de cooperação entre a Canapse e a UFFRJ vai possibilitar que os pesquisadores tenham acesso à planta, sementes e flores para estudos farmacológicos e na área de melhoramento genético. Os fundadores da Canapse elogiam a rapidez com que a universidade firmou a parceria: “Entendemos porque havia tanta demora em outros lugares que também tentamos: era questão de vontade política de fazer acontecer”, analisa o advogado Emílio Figueiredo.
Em defesa da ciência
“Agora mesmo, eu me atrasei com vocês porque eu estava em uma reunião de organização da mesa de abertura. A gente ainda tem que confirmar, mas o Sidarta [Ribeiro] vem, vamos convidar o [Marcelo] Freixo”, comentou o reitor da UFRRJ, ao entrar em uma videoconferência com a reportagem da Pública. Entusiasmado, Ricardo Berbara falava do preenchimento, em menos de 24 horas, das 200 vagas do primeiro curso realizado em parceria entre a universidade e a Canapse, com apoio da Embrapa e outras instituições de ensino superior. O curso, batizado de “Oficina sobre Cânabis: uma revisão”, ocorrerá de 13 de outubro a 17 de novembro.
O reitor da UFRRJ fala sobre “oportunidades científicas extraordinárias” dos usos da Cannabis sativa para produção de fármacos e outros produtos. Na conversa que teve com a Pública, Berbara se demonstrou animado com a possibilidade de cultivo da planta na Fazendinha Agroecológica Km 47, área de mais de 70 hectares destinada ao desenvolvimento da agroecologia em bases científicas, em Seropédica (RJ). Por ora, os plantios ainda estão na sede da Canapse.
Engenheiro agrônomo de formação, ele já realizou pesquisas com cogumelos psicodélicos e afirma que bancar a iniciativa é uma decisão política, em clima persecutório contra as universidades. Em novembro de 2019, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub disse em entrevista que haveria “plantações extensivas de maconha” nas universidades federais, “a ponto de precisar de borrifador de agrotóxico”, quando os pesquisadores têm dificuldades de até mesmo importar derivados da planta para a pesquisa.
Berbara afirma que, do ponto de vista jurídico, a universidade está protegida pelo habeas corpus de Nemer, que garante origem lícita do material. O próximo passo é o registro dos projetos de pesquisa na Anvisa e no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). “O que não quer dizer que politicamente a gente esteja tranquilo, que a gente não vá sofrer ataques. Isso vai acontecer, provavelmente. Vão falar ‘olha aí a Rural, maconheiros’”, reitera o reitor. “Ainda assim é um debate que a gente vai ter que enfrentar. A gente não pode se intimidar com essas coisas, se não a gente não faz nada.”
Berbara, que está em seu último ano de gestão da instituição e concorre à reeleição, diz que foi desaconselhado a tratar do tema “para não se queimar” no meio acadêmico. Ainda assim, decidiu encampar o projeto. “Eu acho que a universidade tem que enfrentar o obscurantismo. Ela tem que enfrentar o anticientificismo. E, se eu trago para dentro de uma universidade pública a questão da cannabis e dos cogumelos psicotrópicos, é uma forma de enfrentar esse clima terraplanista que hoje intimida até reitores”, analisa. “É uma questão científica, mas é política também, de afirmar o papel de uma universidade – ainda mais em um momento em que ela está sendo atacada como está.”
Segundo o biomédico Renato Filev, a Canapse pretende, no futuro, produzir também insumos para pesquisas com psilocibina, DMT e MDMA. Entre seus fundadores, também estão alguns professores que lideram as pesquisas com psicodélicos no país, como Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
“A gente tem uma potencialidade de incidir em estudo de ponta no Brasil para manter essa vanguarda de pesquisa que foi conquistada a muito custo com o trabalho de professores que mantêm essa chama viva há muito tempo, muitas vezes em situações até mais difíceis. Nunca foi fácil fazer ciência no Brasil. Quem dirá com psicodélicos e substâncias proscritas”, conclui Filev.
Woodstock da ciência
“Você já foi no Instituto do Cérebro? É praticamente um Woodstock da ciência”, brinca Richardson Leão, médico e chefe do Laboratório de Neurodinâmica da UFRN. A brincadeira de Leão se explica: o Instituto do Cérebro se tornou um dos principais polos de pesquisa com substâncias proscritas e psicodélicas no país. Na instituição, o médico estuda terapias para lidar com a ansiedade e a depressão provocadas pelo tinnitus, ou zumbido persistente auditivo, e tem colhido resultados positivos.
Recentemente uma orientanda sua, a psicóloga e doutoranda Jéssica Winne, publicou em conjunto com outros pesquisadores da universidade um estudo sobre o uso do 5-MeO-DMT em animais para combater a ansiedade. A substância, uma triptamina psicodélica próxima daquela usada no chá da ayahuasca e presente em algumas plantas e no sapo Bufo alvarius, apresentou bons resultados preliminares que apontam o potencial da substância para o tratamento da ansiedade severa.
Mas mesmo nesse ambiente de muita liberdade, pesquisas também são impactadas por entraves burocráticos. Jéssica contou à reportagem que gostaria de estudar o efeito neurológico da cocaína, mais especificamente na área tegmental ventral. O Instituto do Cérebro, no entanto, ainda não tem licença para trabalhar com a substância.
A psicóloga considera que os procedimentos legais atrapalham o andamento das pesquisas, mas entende que é necessário algum tipo de regulação. “A cocaína que eu preciso utilizar é 100% pura. Então, se eu tenho a liberação dessa droga, preciso de um lugar para guardar e evitar que seja roubada ou mal utilizada”, avalia.
Ela afirma não ter desistido de levar adiante a pesquisa no futuro: “Eu acho que também é uma forma de lutar contra essa opressão que a gente está sofrendo, de preconceito com a ciência e com as drogas. Unir essas duas forças – a ciência e os psicodélicos, mostrando os benefícios de ambos, tanto da pesquisa quanto dos usos dessas substâncias. Eu acho que só temos a ganhar”, pondera.
Outro reduto de pesquisas com psicodélicos e substâncias proscritas é a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Em março deste ano, a reportagem da Pública visitou a instituição, que é referência em pesquisas com cannabis desde os anos 1980. A faculdade é responsável pelo desenvolvimento do canabidiol sintético, que começou a ser vendido no Brasil em abril deste ano, em parceria com a gigante farmacêutica Pratti-Donaduzzi. A empresa financia a construção de um prédio que abrigará o Centro de Pesquisa em Canabinoides. Segundo levantamento do professor Antônio Zuardi, publicado pelo UOL, a Medicina da USP de Ribeirão lidera as pesquisas de canabidiol no mundo.
O professor Rafael Guimarães dos Santos, biólogo que lidera atualmente estudos com ayahuasca sobre fobia social, depressão, epilepsia e mal de Parkinson, além de pioneiro em estudos com a ibogaína, uma substância que vem sendo testada para tratar a dependência química, reconhece a dificuldade em pesquisar drogas no país.
“Aqui em Ribeirão Preto a gente tem sorte – até pela tradição do grupo, de décadas fazendo pesquisas com essas substâncias de certa forma polêmicas – e os nossos projetos geralmente são aprovados pelo Comitê de Ética. Eu nunca tive um projeto de ayahuasca rejeitado. Isso vem da seriedade com a qual a gente faz as coisas, sempre com comprometimento com a ética e o bem-estar da população”, afirma.
“Material radioativo”
“Vocês me perguntaram como é pesquisar com drogas: é burocrático, é demorado”, sintetiza a professora da Faculdade de Farmácia da UFRJ Virgínia Carvalho em resposta à reportagem. Ela coordena desde 2016 o Farmacannabis, um projeto de extensão universitária com foco na avaliação de segurança do uso e das concentrações de extratos de cannabis, artesanais e importados. O objetivo é fornecer orientação a pacientes que fazem uso da planta em diversos tratamentos médicos.
Virgínia trabalhou com análises forenses da urina de usuários de cocaína e crack no mestrado e no doutorado, mas os problemas se complicaram quando a pesquisadora começou a utilizar a droga, e não as amostras biológicas, em seus estudos. “Como é que vou comprar crack via Anvisa? Quem é que vai me vender? Eu queria amostra de rua mesmo, eu queria avaliar o que as mulheres usuárias de crack usavam. Não seria a mesma coisa comprar uma cocaína limpinha”, conta. Virgínia fez um requerimento ao departamento de Polícia Judiciária. “Eles procuraram uma apreensão de uma pessoa que já tinha sido condenada e já tinha se esgotado o período de recurso, com uma quantidade que fosse aproximada daquilo que a gente pediu. Se uma pessoa é presa com crack e maconha e a gente pediu só crack, eles não podem partilhar a droga. Eles tinham que achar uma apreensão parecida com o nosso pedido”, explica.
Depois de encontrado um caso em que havia a quantidade similar à que pesquisadora necessitava, foi preciso um despacho do juiz autorizando a destinação da droga para a pesquisa e o também do delegado-geral da Divisão Estadual e Narcóticos (Denarc), departamento da Polícia Civil, onde a droga estava armazenada, para ter acesso à substância. “Foram seis meses para conseguir a amostra, sendo que, se você for trabalhar com qualquer outra coisa, você vai demorar dois ou três meses. Onde fiz meu pós-doutorado, se trabalhava muito com praguicidas. Se você vai comprar um agrotóxico, não é nem um mês – você compra e pronto, você já faz o seu experimento.”
A pesquisadora afirma que a burocracia implica poucas pessoas pesquisando drogas no Brasil, já que muitas vezes os prazos de concessão de autorizações são incompatíveis com os prazos acadêmicos – o que pode dificultar até mesmo o acesso a financiamentos de pesquisa. “Parece algo totalmente diferente, mas a dificuldade é similar à de uma pessoa que vai trabalhar numa área nuclear, com compostos radioativos”, diz.
Em resposta à Pública, a Anvisa afirmou não ter conhecimento das reclamações sobre os prazos de autorização. Segundo a agência, os pedidos, “quando corretamente instruídos”, possuem um prazo de análise de até 20 dias.
“O pedido de autorização deve trazer informações detalhadas sobre a quantidade a ser utilizada de cada substância, bem como a compatibilidade dos quantitativos com o estudo proposto. São requeridas ainda informações sobre a guarda e o registro de uso, e a indicação de um responsável pelas substâncias”, informou a agência. Caso essas informações não estejam completas, o órgão pode pedir uma complementação, “o que inevitavelmente compromete essa estimativa de prazo, a depender da resposta da instituição”, argumentou a Anvisa.
In vitro
Uma decisão inédita, de 2017, permitiu a pesquisadores da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), na unidade de Divinópolis, no interior de Minas Gerais, cultivar a Cannabis sativain vitro – ou seja, em escala celular. A instituição foi a primeira e a única a obter esse tipo de autorização no Brasil.
A professora Vanessa Stein, coordenadora do Laboratório de Biotecnologia Vegetal da universidade, pontua que, antes da autorização, os pesquisadores que queriam se debruçar no tema ficavam à mercê do material importado. Ela afirma que o fato de o cultivo do laboratório ocorrer in vitro (e, por isso, com mais controle) foi o que permitiu a autorização. “Eu posso trabalhar dentro de uma sala que é fechada, com controle de acesso, e de entrada e saída de material. Isso deu uma segurança maior para a Anvisa e eles sentiram que seria uma forma controlada de produção”, diz a professora.
Com resultados promissores e já em fase de registro de patentes, a pesquisa vai ajudar pesquisadores de outras instituições a avançar com seus estudos, mesmo com um vácuo na legislação, já que a universidade pretende fornecer os insumos necessários.
“Vários grupos de pesquisa já entraram em contato querendo utilizar nosso produto para os mais diversos fins”, relata Vanessa.
Para o início do cultivo, a universidade fez uma parceria com a Polícia Civil de Divinópolis como forma de obter as primeiras sementes, para evitar a demora que haveria com a importação de países que têm produção legal. “Para nós, pensar em um lapso de tempo de dois anos é bastante para uma pesquisa científica. E nós levamos dois anos até obter a primeira autorização. E mais um ano até conseguir essa autorização da Polícia Civil. Então, podemos te falar que a pesquisa foi atrasada em três anos por questões burocráticas.”
Mães pela cannabis
Em julho deste ano, a Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) conseguiu na Justiça uma decisão coletiva de plantio, a primeira no estado do Rio de Janeiro. A coordenadora da entidade, Margarete Brito, foi a primeira mãe a conseguir um habeas corpus individual no Brasil para plantar cannabis para garantir o acesso ao tratamento de sua filha, diagnosticada com síndrome CDKL5, uma doença rara que causa epilepsia e problemas no desenvolvimento. A associação foi uma das primeiras entidades a fazer plantio coletivo de cannabis no país. Desde então, diversos acadêmicos fizeram contato com a associação, relata.
“Neste momento, o que a gente tem não dá conta nem de atender internamente os associados. Mas a ideia é expandir para os pesquisadores futuramente”, diz Margarete, que informou que a entidade deve formalizar parcerias com instituições como a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Universidade de Campinas (Unicamp).
O advogado Emílio Figueiredo vê uma tendência nessa estratégia de utilizar as autorizações individuais ou coletivas para o cultivo, concedidas na Justiça como forma de obter licitamente o produto para ampliar o acesso à pesquisa. É isso que vai viabilizar a existência da Canapse, que pretende oferecer outras drogas, como o DMT e o MDMA, para os pesquisadores. Segundo o advogado, é preciso forçar a mudança da legislação.
“Só se avança assim. Foi assim que tudo aconteceu até aqui. A Abrace [Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança] já cultivava antes de ter a autorização; para os habeas corpus, as pessoas já cultivavam antes da autorização. As pessoas já pesquisam antes de ter autorização”, diz o advogado.
O seu colega Ricardo Nemer completa: “Os poucos avanços que nós estamos tendo foi por ordem da Justiça – ela não foi dada, ela foi tomada”, diz o ativista. “Hoje, se você for perguntar aos médicos com quem eles aprenderam a prescrever e a dosar, eles vão falar que foram com os cultivadores, que na clandestinidade mantiveram a domesticação da planta, as técnicas rudimentares, artesanais. E, através do conhecimento empírico, passou para eles, passou para as mães. Essa é a história.”
Entenda como é hoje a regulamentação de substâncias controladas
A Anvisa regula substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial através da Portaria nº 344/88. Nela, as substâncias sujeitas a controle estão dispostas em 16 listas, agrupadas de A a F. As substâncias das listas A, B, C e D têm o uso permitido no país, com controle de prescrição, receituário, movimentação de estoque, necessidade de local seguro para armazenamento, entre outras determinações. Já as plantas listadas na categoria E, como a Cannabis sativa, e substâncias da lista F – como cocaína, DMT, MDMA, LSD e psilocibina –, são consideradas proscritas, o que significa que são proibidas produção, fabricação, importação, exportação, comércio e uso.
As listas, no entanto, são criticadas por cientistas em um aspecto: elas não seguem critérios científicos claros. É o que afirma o neurocientista Eduardo Schenberg, que conduz pesquisas com MDMA para tratamento de estresse pós-traumático. “Não é algo que se consegue deduzir a partir da categoria química ou do tipo de efeito”, diz o pesquisador. “A Anvisa não faz esse tipo de classificação, não cria nenhum tipo de ranking. Ela classifica por tipos de efeitos, só que os tipos de efeitos são um pouco suposições, que não têm muita base em evidência científica.”
Em 2000, por exemplo, o medicamento marinol chegou ao país na lista A, a mesma em que está a ritalina, que tem controle de receituário e prescrição. O remédio tem em sua composição o dronabinol, uma versão sintética do canabinoide THC, um dos componentes da cannabis. Do ponto de vista farmacêutico, ambas as substâncias são isômeras – ou seja, são consideradas um “espelho” uma da outra, já que a estrutura química é a mesma. O que levanta questionamentos de ativistas: por que, então, o THC não foi liberado na época e remédios com outros canabinoides, como o CBD, só seriam liberados 20 anos depois, em abril deste ano.
Episódios como esse ocorrem, de acordo com a pós-doutora em toxicologia Virgínia Carvalho, professora da UFRJ, porque as listas não seguem, especificamente, um critério químico-farmacológico. “Na verdade, a regulação sanitária é motivada pela sociedade, como usamos determinadas substâncias em termos de saúde pública. Um debate que temos agora é o da cloroquina. A cloroquina não era controlada, todo mundo comprava em farmácia. Se comprava sem problema nenhum, mas agora não se consegue mais”, pontua.