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Há 10 anos era publicado o Cablegate, o maior vazamento da história do jornalismo. A codiretora da Agência Pública, Natalia Viana, conta como foi trabalhar com o Wikileaks

Crônica
30 de novembro de 2020
21:00
Este artigo tem mais de 4 ano

No dia 29 de novembro de 2010, os cinco maiores jornais do mundo, mais a Folha de S. Paulo no Brasil, publicavam o maior vazamento da história do jornalismo. No topo da capa daquela segunda-feira, a Folha estampava: “Brasil disfarçou luta antiterror, dizem EUA”. Era a primeira vez que o WikiLeaks chegava à capa de um jornal brasileiro. 

No mesmo dia, os jornais Der Spiegel, Le Monde, The New York Times, The Guardian e El País traziam manchetes sobre os 251,287 telegramas diplomáticos do Departamento de Estado que destrinchavam a política interna de mais de cento e setenta países na primeira década do século 21. É, até hoje, a maior quantidade de documentos oficiais vazados e publicados em domínio público da história. 

O vazamento ficaria conhecido como “Cablegate”. Mas a história sobre como Julian Assange coordenou aquele projeto extraordinário, durante noites em claro na friorenta mansão de Ellingham Hall, no norte da Inglaterra, nunca foi publicada. Nem os detalhes sobre o trabalho árduo de um grupo de jovens jornalistas, desenvolvedores e advogados que acreditavam estar mudando o mundo.

O cenário parecia transplantado da série “The Crown”. O casarão era rodeado de pastos, criação de faisões, pombos brancos e pôneis. Assim que eu cheguei à mansão, dez dias antes da publicação, impressionei-me com o contraste entre a sua atmosfera tradicional, de um luxo decadente, e as parafernálias eletrônicas que se espalhavam sobre o chão acarpetado e sobre mesas de madeira: pequenos laptops, CPUs, baterias, celulares, cabos e mais cabos. No salão principal, retratos a óleo de homens e mulheres da linhagem nobre do dono da casa – um havia sido mensageiro real, outro, capitão de infantaria – disputavam espaço com a numerosa coleção de objetos de caça – prática da primeira metade dos ancestrais da família – e de guerra – paixão da outra metade. Um dos retratados fora excelente caçador: matara 99 tigres nas colônias africanas, sendo que um deles enfeitava, empalhado, a pequena sala de tevê contígua.  

Os donos da casa, o jornalista inglês e ex-correspondente de guerra Vaughan Smith e sua esposa, garantiam que ali não havia fantasmas. Mas as fundações, os labirintos de gás encanado, as janelas cortadas em arco e a majestosa escada em caracol acarpetada de azul e que levava aos três andares superiores, onde mal dormíamos, pareciam discordar, gemendo ruidosamente durante toda a noite. 

A diferença era que, bem ao contrário dos lordes ingleses retratados na série da Netflix, nós sabíamos que estávamos correndo perigo pelo simples fato de estarmos fazendo jornalismo. 

Toda viagem de carro para comprar comida tinha que ser feita por duas pessoas; enquanto uma dirigia, a outra ficava observando se não estavam sendo seguidos. Por ordem de Julian, todos os celulares foram desligados e as suas baterias removidas; ninguém podia entrar em contato com familiares ou conhecidos. 

“Aqui é um bom lugar”, me explicou Julian, “porque estamos no centro da propriedade rural, então não tem nada em volta. Nenhuma força de segurança pode entrar aqui sem mandado. E fica mais difícil colocar escutas…” 

Eu havia chegado ali após uma ligação e um e-mail misteriosos que chegaram a mim alguns dias antes, enquanto eu estava na Amazônia para fazer uma série de reportagens. O e-mail era da jornalista Sarah Harrison, a quem eu conhecera quando fiz meu mestrado em Londres, naquela época braço direito de Assange. A mensagem era irresistível: “Eu estou trabalhando para uma organização muito empolgante e influente. Nós estamos com um novo projeto enorme. Infelizmente não posso enviar detalhes por e-mail. Mas estamos trabalhando com muitos jornalistas ao redor do mundo e adoraríamos ter você na equipe. Eu quero te dizer, por ora, que esse é um projeto extremamente excitante e que vai ser gigantesco no mundo todo. Tenho certeza que qualquer jornalista ia querer estar envolvido nele”. 

Peguei o primeiro avião que consegui encontrar para São Paulo, empenhando o pouco dinheiro que tinha, e cheguei pontualmente ao local de encontro quatro dias depois: o elegante clube Frontline Club, na área central de Londres. Não tinha um tostão no bolso. 

Pouco depois encontrei Julian e a equipe do WikiLeaks no andar de cima de um apartamento que se escondia em uma alameda de paralelepípedos estreita, cuja entrada era marcada por arcos baixos, centenários. “Não fale nada”, me instruiu Julian, embora as perguntas borbulhassem na minha cabeça. E me estendeu um pedaço de papel escrito: 

“250.000 telegramas de embaixadas americanas de 1966 a 2010. 1/10 não valem nada, 1/50 importantes, 1/250 muito importantes”.

Dirigimos pela noite adentro até chegar à mansão de Ellingham Hall.  Chegando lá, todos os laptops foram “blindados” pelo próprio Julian, já na primeira madrugada. Quando acordei, um fio cinza serpenteava o carpete, e sobre o roteador, um bilhetinho: “não acessar a internet. Em caso de urgência acordar J”. Todos teriam que criar um novo usuário em seus computadores, e acessar a internet – sempre lentíssima por conta da navegação criptografada – apenas quando necessário. Ninguém deveria comentar online onde estavam, ou o que estavam fazendo. A única vez que tentei me conectar ao Facebook, minha localização apareceu como “Islândia”. 

Esses protocolos de segurança, que me pareciam algo do outro mundo, se tornariam praxe nas maiores redações globais, quando se trata de analisar documentos sensíveis e dados sigilosos – em especial, vazamentos. 

No início, éramos apenas cinco jornalistas (um sueco, um islandês, dois ingleses e eu) mergulhados na base de dados que Julian e outros desenvolvedores construíram para que analisássemos os documentos, buscando por data, por grau de sigilo, ou por palavras-chave. Desde que acessei aquele emaranhado fascinante de relatos, estava decidida a publicar com um veículo brasileiro. 

Havia um acordo com os cinco principais jornais do mundo, mas para mim, aquilo trazia um problema: Lula estava deixando a presidência e, embora o novo governo fosse de continuidade, àquela altura ninguém garantia que os atores seriam os mesmos. A incontinência verbal do então ministro da Defesa, Nelson Jobim, por exemplo, que falava mal do então ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, em encontros na embaixada, teria bem menos impacto se ele não estivesse mais à frente da pasta. E o que dizer do presidente da Comissão de Relações Internacionais e Defesa do Senado, o demista Heráclito Fortes, que voluntariamente tornou-se fonte do embaixador americano e relatou a ele conversas com representantes do governo iraniano no Brasil? 

Tamanha precaução com a segurança digital trazia, por outro lado, um grande problema: como eu conseguiria propor à Folha de S. Paulo, maior jornal do país – nunca tendo trabalhado por lá – uma parceria dessa magnitude, sem ter ao menos um celular? A solução foi tentar contato com Fernando Rodrigues, na época repórter especial e diretor da Abraji, que conhecia o trabalho do WikiLeaks. Mas levaria alguns dias até que eu conseguisse falar com ele. 

Na Abraji, ninguém dava seu telefone; deixei recado, mas ele não conseguiu retornar. Finalmente apanhei-o em um chat no Facebook (que, naquela época, era ainda uma rede social amigável e não um palco para linchamentos virtuais). Fernando pediu que eu ligasse na redação, o que fiz graças a um celular “virgem” que, depois de cada ligação, recebia um chip novo. Naquela época, smartphones eram ainda uma raridade. Avisei que em alguns dias o Wikileaks faria um novo vazamento e pensei no nome dele. Seria no próximo domingo, avisei. Fernando confiou em mim – até aquele momento uma jovem jornalista pouco conhecida – e convenceu os diretores do jornal a embarcarem nessa aventura sem precedentes.    

Naquela mansão georgiana eu defendi o interesse da Folha de S. Paulo porque acreditava –  e sigo acreditando – que um jornal brasileiro faria um trabalho muito melhor do que qualquer jornal europeu na análise dos documentos sobre o Brasil.

Julian comprou a briga. Articulou com o El País, que inicialmente aceitou trazer um “parceiro brasileiro” à mesa. Mas encontrou grande resistência dos demais jornais, em especial do inglês The Guardian. Eu vi isso tudo. Numa tarde invernal, depois de ir a Londres negociar com os editores, Julian voltou para o casarão abatido. Era difícil engolir que os cinco jornais dissessem o que ele poderia e o que não poderia fazer com os documentos. O debate começou pela tarde, ocupou a maior parte do jantar, e continuou até o dia seguinte – como muitos, que se prolongavam por dias ali na equipe do WikiLeaks. 

Decidimos enviar apenas alguns documentos por dia ao Fernando, selecionados por mim. Na semana seguinte, eu voltaria ao Brasil e poderia entregar todo o arquivo a ele e ao jornal O Globo, através da jornalista Tatiana Farah.

Assange insistia que houvesse pelo menos dois veículos trabalhando conjuntamente em cada país. Isso faria com que ângulos diferentes da mesma história fossem contados. Embora tenha insistido em ter exclusividade, a direção da Folha aceitou o acordo, depois de algumas idas e voltas. Ao mesmo tempo, eu escreveria reportagens com base nos mesmos documentos para o site do WikiLeaks.  

Ao levar a lógica colaborativa, essencial ao mundo da tecnologia digital, para o jornalismo, Julian inaugurou uma tendência. Foi a primeira parceria entre dois grandes jornais brasileiros em um furo dessas proporções, algo realmente novo naquela época, e que hoje parece tão normal. 

Na segunda-feira, dia 22 de novembro, enquanto no casarão os primeiros jornalistas começavam a acordar por volta do meio-dia depois de mais uma noite em claro vasculhando a base de documentos, o The New York Times detalhou informações sobre o vazamento ao Departamento de Estado americano. O motivo para tamanha antecipação era, segundo o jornal, o fato de que quinta-feira (25) seria Dia de Ação de Graças, o que atrapalharia o tempo de envio de comentários. Ao saber da reunião, Julian ficou profundamente irritado. Para ele, o nome disso era “neutralização”, e uma semana seria tempo suficiente para Hillary Clinton, então secretária do Departamento de Estado, organizar um belo contra-ataque. “Covardes!”, vociferava. 

De fato, o cerco apertou rapidamente. Naquela mesma semana a Interpol emitiu um mandado internacional de busca para prendê-lo, pois era buscado para interrogatório na Suécia em um caso de crime sexual (Julian jamais virou réu). Uma foto do seu rosto estampava o site da Interpol e foi recebido por polícias do mundo inteiro.  

A seguir, a própria Hillary Clinton começou a ligar para governos aliados, pedindo desculpas antecipadamente. A notícia de que o WikiLeaks iria publicar mais um vazamento também passou a pipocar em diversos jornais. Alguns deles traziam histórias plantadas e esquisitas sobre o que iria ser revelado. Ficava claro que a ideia era desviar a atenção com histórias falsas, lançando dúvidas sobre as reais revelações que estavam por vir. 

Ao mesmo tempo, a principal acusação contra o Wikileaks já era ventilada pelo governo dos Estados Unidos: que a publicação dos documentos colocaria em risco seus informantes. Preocupado, Julian enviou um emissário de confiança à embaixada em Londres para pedir que fossem enviados os nomes de todas as pessoas que deveriam ser protegidas; não obteve resposta. Exigiu, ao mesmo tempo, que os veículos parceiros se responsabilizassem por apontar e retirar nomes de quem achassem que correriam perigo, através de uma plataforma fechada à qual teriam acesso. 

Três dias antes do vazamento, a pressão deixava o ar carregado. Fernando Rodrigues me escreveu um e-mail seco: “me liga”. Segundo informações seguras, o vazamento sairia no dia 26, e a Folha seria furada. Era mais uma das artimanhas do Departamento de Estado, na tentativa de criar rusgas entre os veículos que aceitavam colaborar pela primeira vez. 

Convenci-o de que ele iria ter alguns documentos no domingo de manhã, dia 28 de novembro, para publicação na segunda-feira, dia 29.  Não haveria furos, prometi. E torci para que fosse verdade. 

Mas não foi exatamente o que aconteceu. No sábado, o Der Spiegel publicou no seu site, por alguns minutos, uma reportagem que mostrava em detalhes no que consistia o vazamento. A redação alegou “erro” e retirou a matéria do ar pouco depois, mas a história já havia sido reproduzida, para desespero dos demais jornais. No domingo, uma capa da revista alemã Der Spiegel foi publicada pela agência de notícias Associated Press. “Revelado: Como a América vê o mundo”, dizia a manchete. A história era que um pacote com a revista caíra em alguma estação em algum lugarzinho perdido na Alemanha, e a capa fora fotografada. 

Segurar o embargo para a publicação – domingo, às 21 horas, ficava cada vez mais difícil. Para o WikiLeaks era importante, já que o site ainda não estava pronto e estava sendo finalizado ali, na sala acarpetada de Ellingham Hall. Mas todo mundo já estava esperando o vazamento e os jornais competiam para ver quem levaria o “furo” do século. Às 18h horas do domingo, três horas antes do previsto, não deu mais pra segurar. Eu ouvia gritos vindos da sala: “O The Guardian vai furar”, “O El País quer publicar”. Finalmente o El País soltou a notícia, seguida pelos demais como uma verdadeira enxurrada. 

O primeiro “pacote” de documentos que enviei para a Folha mostrava que, através de dicas do FBI, a polícia brasileira prendia suspeitos de terrorismo e os acusava de outros crimes “pra não chamar a atenção da imprensa”. Fernando respondeu: “Mas é só isso? Não tem nada mais forte?”

A decepção dele tinha razão de ser. Os documentos trouxeram tantas revelações embaraçosas em tantos países – na Tunísia as revelações sobre a corrupção levaram à derrubada do governo, a Suécia traia sua pretensa neutralidade em conversas privadas com os americanos, os Estados Unidos espionavam diversos líderes mundiais na ONU – enquanto o que se tinha do Brasil era o retrato de um Itamaraty independente e altivo. Mesmo assim, havia histórias saborosas. Julian Assange encantou-se com um telegrama no qual o general Jorge Armando Félix, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, dizia ao embaixador que o Brasil tem que “pagar um preço” se quer ser uma liderança mundial, acostumando-se a enviar soldados para guerras e receber “sacos de corpos” de volta. Outros temas importantes eram o interesse dos americanos na segurança da Copa do Mundo e Olimpíadas e na descoberta do Pré-Sal. 

Se o vazamento fosse hoje, quando o Itamaraty é tão alinhado ao governo Trump, é bem provável que os diálogos trouxessem um retrato diferente e revelações bem mais apimentadas.   

Dez anos depois, ainda é difícil entender o impacto que a filosofia radical do WikiLeaks teve no mundo. Ninguém em sã consciência negaria que os protestos massivos liderados por jovens que ocorreram no mundo todo nos anos seguintes foram fortemente influenciados pela mensagem de que na era da internet a transformação da sociedade estava ao alcance de todos. “A transparência retira poder de organizações poderosas e entrega para aqueles que não têm poder”, afirmava Julian Assange. Também é inegável que, em diversas partes do mundo, como no Brasil, grupos de ultradireita se aproveitaram dessa energia que exigia mudança para se eleger e corroer a democracia por dentro.     

Julian Assange, de Robbin Hood da liberdade informação, que recebia documentos ultrassecretos dos poderosos para distribuir entre todos os sem-informação do mundo, passou a ser um personagem “polêmico”, parcamente defendido pela imprensa a quem distribuiu tantos furos. O caso de crime sexual na Suécia jamais virou denúncia e ele jamais virou réu; mesmo assim, passou sete anos na embaixada do Equador, país que lhe deu asilo para fugir da extradição para a Suécia para ser interrogado – o WikiLeaks sempre denunciou que isso era apenas uma armação dos americanos, que queriam prendê-lo.

No ano passado, o Equador, sob um novo presidente, retirou a proteção diplomática e a polícia do Reino Unido levou-o para cumprir uma pena pequena por não ter se apresentado à polícia quando devia. Foi só depois que esses dois países cumpriram o seu papel que os Estados Unidos apresentaram o pedido de extradição que hoje está sendo julgado nas cortes britânicas. Dentre as 17 acusações alegações, 16 referem-se ao ato de publicar documentos classificados americanos. Mesmo não sendo americano e nem tendo pisado os pés no país, Julian é acusado sob o Espionage Act, uma lei de 1917. Se ele for extraditado e condenado, isso significa que nenhum jornalista de nenhum país estará seguro se publicar segredos do governo americano. 

Há anos que não tenho contato com Julian. Há um ano e meio ele está preso na prisão de segurança máxima de Belmarsh, na Inglaterra, onde recebe poucas horas de sol por dia e é mantido isolado e sem acesso à internet, à qual dedicou sua vida. Os relatos que recebo são de uma pessoa em avançada fase de deterioração física e mental. Nesses dez anos, governos de diferentes países, com ajuda das forças de segurança e da imprensa, que lhe virou a cara, agiram sorrateiramente para destruir uma das mentes mais brilhantes, disruptivas e originais da minha geração.  

Esse é apenas o começo da história – nos meses seguintes, Assange seria preso e obrigado a usar uma tornozeleira eletrônica enquanto as revelações chacoalhariam o mundo… E alguns poucos jornalistas, como eu, ficariam encarregados de levar os documentos para cantos inusitados do planeta.

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