Buscar

Na corrida contra o tempo para salvar familiares com Covid-19, manauaras relatam abuso nos preços e desespero para juntar dinheiro em meio ao colapso da saúde

Reportagem
16 de janeiro de 2021
16:26
Este artigo tem mais de 3 ano

Enquanto mais de 50 países já iniciaram a vacinação contra a Covid-19, o Brasil vê pacientes em Manaus perderem a vida asfixiados por falta do elemento mais essencial da sobrevivência humana, o oxigênio. 

Com a capacidade de atendimento hospitalar esgotada e sem leitos para tratamento na capital, Layla Mariana Batista, 27 anos, diz que desde o início da pandemia nunca viveu “o inferno” de agora.  Assim como centenas de moradores da capital do Amazonas, que chegam a enfrentar filas na zona industrial da cidade para levar o ar que falta a seus familiares, a vendedora de salgados e doces tem se desdobrado para conseguir oxigênio para o tio Rosivaldo Azevedo Marinho, 57 anos, e a tia Maria Madalena Santos de Araújo, 43 anos. 

A tia conseguiu ser internada depois de algumas tentativas mas o tio não conseguiu internação e está em casa sob seus cuidados. 

“A gente conseguiu para ele, a princípio, um cilindro alugado de R$2500, quando a gente foi fechar com o cara ele simplesmente disse que tava 5 mil reais. No final do dia esses 5 mil reais passaram para 7 mil reais. E a gente tem milhões de números que a gente liga, liga e as pessoas não atendem, não tem mais nada”, desabafa. 

A reportagem da Agência Pública entrou em contato com um dos números fornecidos por Layla, que teria sido publicado num anúncio no site da OLX. Pelo whatsapp, o vendedor que não se identifica pelo nome mas como Medic Center, em Manaus, oferece duas opções de “kit oxigênio completo para uso, cilindro de 3 litros e 5 litros, já *carregado.(cheio)”. 

O kit com três litros tem o valor de R$3.800 e o de cinco litros R$5.990. A suposta empresa diz que não faz locação e que aceita crédito à vista ou parcelado em três vezes, débito, PIX ou dinheiro. Sobre a entrega, afirma que não faz porque “está muito corrido” e que seria preciso “ir na loja e deixar pago”. No entanto, não forneceu o endereço até a publicação da reportagem.  

Ao ser questionado sobre a disponibilidade de cinco cilindros ao valor de quase R$30 mil o vendedor informou que consultaria “o dono”. Segundo ele, porque “tem muita gente me pedindo urgente”. No valor estariam inclusos impostos e frete.  

A reportagem apurou que o mesmo kit de 5 litros vendido a R$5.990 pela Medic Center é vendido por três vezes menos nas lojas de São Paulo, que cobram, aproximadamente, R$1500 pelo kit carregado. Vendedores de São Paulo que preferem não se identificar afirmaram que o valor cobrado pela suposta empresa é “exorbitante”. 

Questionado se o valor não é abusivo, o vendedor da Medic Center informou que “acredita que não”. “Não meu amigo. Foi comprado em São Paulo uma quantidade e está sendo vendido em Manaus. Só dão 35 unidades. Só!”, respondeu. 

O Código de Defesa do Consumidor assevera que é abusiva a obrigação que coloque o consumidor em desvantagem exagerada. “O aumento arbitrário dos lucros constitui infração contra a ordem econômica (art. 36, III, da Lei n. 12.529/11) e crime contra a economia popular (art. 3º, VI, da Lei n. 1.521/51)”, segundo o Ministério Público de São Paulo. 

Imagens mostram o desespero das pessoas em meio ao colapso da saúde em Manaus

Indignação, vaquinha e desespero para salvar parentes

“É desumano você ouvir alguém te pedir R$6 mil num cilindro e tu não ter da onde tirar para salvar o teu parente”, diz Layla.  “Dá nojo de ouvir a pessoa te falar que tá cobrando tudo isso”, reclama. No final da tarde de ontem (15), Layla conseguiu alugar um kit no valor de R$2000 por três dias para o tio. “A gente tá fazendo uma vaquinha porque ninguém está preparado pra dar 2 mil a cada três dias para um parente teu sobreviver. E assim a gente tá seguindo aqui”.

Layla informou à reportagem na tarde deste sábado que o oxigênio do tio acabou durante a última madrugada e que aguarda uma recarga da empresa na qual alugou o equipamento mas “que não tem hora para chegar”, segundo ela. 

No Twitter, o youtuber Felipe Neto, que está mobilizando recursos para levar oxigênio para Manaus, afirmou que “alguns dos fornecedores de oxigênio aumentaram vertiginosamente o preço ontem [15 de janeiro] e hoje, porque sabiam que teríamos que comprar pra salvar vidas. Gente podre, nojenta. Em crises a gente vê o melhor e o pior do ser humano”, escreveu.

Isac Neto, 46 anos, dono de uma empresa de gás em Manaus, explica que a demanda aumentou o preço para a recarga do oxigênio. A recarga de 10 m³ que em dezembro custaria R$350 hoje custa R$800. “Eu não tenho mais como atender porque eu não tenho mais produto e as pessoas me ligando. Eu tô falando contigo e o telefone está tocando”, disse. 

Segundo Isac, a procura começou no dia 26 de dezembro. “Nesse dia, eu cheguei aqui em Manaus, e em uma semana vendi mais de 2 mil m³ de gás que eu trouxe de São Paulo. Todo o produto acabou dia 7 de janeiro, algo que duraria em tempos normais, uns seis meses”. 

Emilly de Araújo Carmo, 28 anos, que perdeu o avô Naivo Ferreira de Araújo, 81 anos, no dia 1 de janeiro, reforça o aumento abusivo de valores. Ela conta que ainda em 15 de dezembro, já diagnosticado com coronavírus, conseguiu alugar para o avô um cilindro de 40 litros por R$600 — valor que, neste momento, pode chegar a R$2000, segundo ela. 

“No nosso último contato, meu avô me disse que ia ficar bem e que nos amava, foi quando eu tive a oportunidade de dizer pela última vez para que eu também o amava. Queríamos ter tido a oportunidade de um outro desfecho para essa história”.

“Manaus está em guerra por oxigênio”

O mesmo desespero vive Grace Sá, 34 anos, que está com a mãe, Maria das Graças, 64 anos, em casa com Covid-19. “Nossa situação aqui em Manaus é a guerra por oxigênio. A minha mãe está em casa. Foi uma alternativa que nós encontramos, pois o hospital 28 de Agosto não tem condições. Além de não ter leito é uma tortura psicologica você estar lá”, revela.

Ela conta que ao internar a mãe há alguns dias, levou um pequeno cilindro de oxigênio. “E a enfermeira falou bem assim: ‘ainda bem que vocês trouxeram porque não tem e quando acabar esse aí não tem mais'”.  Foi quando,  segundo ela, começou a sua luta e do irmão para conseguir o produto. “O meu irmão gravou um vídeo nas redes sociais que viralizou na cidade… aí conseguimos ajuda até ela terminar o atendimento lá no hospital”. 

No momento, ela e o irmão tratam a mãe em casa. “Aí a gente decidiu tirar ela de lá quando nós conseguimos um outro cilindro grande para trazê-la. Foi desesperador. Essa cena vai ser eterna na minha vida”, conta. “Todo dia é angustiante. Ninguém mais dorme aqui pensando em como conseguir oxigênio para o outro dia. Hoje nós temos. E amanhã, nós vamos ter? Essa é a pergunta que fica todos os dias na nossa mente. É orar e ter muita fé. Não quero nem pensar na possibilidade de não ter”. 

Na tarde deste sábado, Grace disse que passaram a mãe para “um condensador que produz oxigênio”. Segundo ela, não supre a necessidade, mas é uma alternativa para economizar.  “É uma escolha difícil mas sem nenhum oxigênio ela não aguenta”, disse. 

O aumento de novos casos da Covid-19 fez com que a demanda por oxigênio chegasse a 76 mil m³ diários no Amazonas.  Em meio a falta de oxigênio, a polícia já apreendeu 45 cilindros de um barco em Manaus e 33 cilindros escondidos numa empresa.

Colaborou Rute Pina, Anna Beatriz Anjos, Bruno Fonseca

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Quer entender melhor? A Pública te ajuda.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes