Em entrevista à Agência Pública, o cientista político Cláudio Couto, coordenador do mestrado em Gestão e Políticas Públicas da FGV-SP, analisa o impacto da vitória de Arthur Lira (PP-AL) e de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) à presidência da Câmara e do Senado, respectivamente, na noite de ontem (dia 1o). Lira foi eleito contra Baleia Rossi (MDB-SP), com 302 votos, enquanto Pacheco venceu com 57 votos.
Para Couto, que produz o canal de YouTube “Fora da Política não Há Salvação”, a eleição dos dois candidatos apoiados por Bolsonaro ao comando das casas legislativas é, simultaneamente, uma conquista do governo e uma conquista do Centrão. “É uma vitória do governo, na medida em que derrota um adversário que ele tinha na Câmara dos Deputados, muito claramente, que é o Rodrigo Maia. […] Agora, claro que é uma vitória do Centrão, porque os partidos que o compõem, que eu prefiro chamar de ‘partidos de adesão’, são legendas que vão ter mais acesso a recursos governamentais do que tiveram até então”, diz.
Na visão do cientista político, o resultado dá a Bolsonaro a chance de fazer avançar uma agenda que ainda não está clara. “A minha dúvida é: ele tem uma agenda? A gente não vê muito claramente esse governo com uma agenda clara para a economia, uma agenda clara em termos de políticas públicas de um modo geral. A gente tem uma estratégia, em boa medida, destrutiva do governo em certas áreas. Ele desconstrói a área ambiental, a área cultural, a política educacional – que foi longamente construída nos últimos anos –, mas ele não oferece muita coisa para pôr no lugar”, opina.
Em relação aos pedidos de impeachment contra Jair Bolsonaro, Couto considera que Arthur Lira não pautará num primeiro momento. “Mas é claro que, se a situação se deteriorar muito e o Bolsonaro perder muito apelo popular, a pressão que tende a ocorrer sobre o próprio Congresso Nacional – e, especialmente, sobre o presidente da Câmara dos Deputados – tende a aumentar muito. E se os líderes do Centrão perceberem que o Bolsonaro se tornou um peso e, consequentemente, se livrar dele é mais útil, não acho que eles vão ter muito receio de fazer isso”, afirma.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Qual é o peso da eleição da Câmara e do Senado para o cenário político nesse momento?
É uma eleição muito importante por uma série de razões. Primeiro, porque os presidentes dessas casas, e sobretudo o presidente da Câmara, têm um poder de agenda muito considerável. Aquilo que será ou não discutido no âmbito do Congresso depende muito das decisões que esses líderes tomam.
Não só porque eles têm esse poder de definir a pauta – claro que eles fazem isso também negociando com líderes partidários –, mas, no caso da Câmara, todas as propostas de iniciativa do Executivo entram por ela. Se uma medida provisória, se um projeto de lei do Executivo, se uma proposta de emenda à Constituição [é apresentada], tudo isso chega ao Congresso por via da Câmara. Consequentemente, a depender de ter um aliado ou não na presidência da Câmara, aumenta ou diminui o sucesso dessas propostas do governo. Então, é realmente importante, nesse ponto de vista, ter alguém de sua confiança, ou pelo menos alguém com que se tem capacidade de interlocução.
E a questão do impeachment?
Tem sido discutido muito nesses últimos dias. Só o presidente da Câmara tem o poder, monocraticamente, de dar ou não seguimento ao pedido de impeachment. Se porventura ele não quiser que esses pedidos avancem, basta ele fazer o que o Rodrigo Maia fez até hoje, que foi simplesmente não fazer nada. Ele sequer arquivou, deixou tudo em aberto, mas também não deu seguimento. Por um lado, isso mantinha o governo numa certa expectativa de se ele poderia ou não avançar. Mas, por outro lado, manteve também o governo muito tranquilo, porque sabia que ele era muito reticente em fazer avançar – mesmo ele sendo um crítico do governo.
A questão é saber como o próximo presidente da Casa vai se comportar. Sendo o Lira, imagino que a disposição para fazer um pedido de impeachment andar vai ser muito menor do que se fosse qualquer um dos outros nomes.
A eleição do Lira, de fato, blinda o Bolsonaro de um impeachment, pelo menos em um primeiro momento?
Em um primeiro momento, sim, porque não há disposição do Lira de fazer esse negócio andar. Mas é claro que, se a situação se deteriorar muito e o Bolsonaro perder muito apelo popular, a pressão que tende a ocorrer sobre o próprio Congresso Nacional – e aí, especialmente, sobre o presidente da Câmara dos Deputados – tende a aumentar muito.
E, se os líderes do Centrão perceberem que o Bolsonaro se tornou um peso e consequentemente se livrar dele é mais útil, não acho que eles vão ter muito receio de fazer isso. Eles ficam até quando vale a pena, por enquanto está valendo e a gente não sabe se vai continuar valendo daqui alguns meses.
O impeachment depende de impopularidade, crise política, crise econômica, e depende de maioria no Legislativo. Eu diria que essas situações não estão todas configuradas dessa maneira hoje.
Qual a sua avaliação desses dois anos de Rodrigo Maia à frente da Câmara?
Ele teve dois papéis muito importantes. Um foi o de fazer avançar as reformas de natureza macroeconômica, sobretudo a reforma da Previdência. Essa foi uma reforma que avançou, em boa medida, por patrocínio do Rodrigo Maia. Ele foi protagonista nesse processo.
Em segundo, acho que teve um papel também muito importante para fazer com que a Câmara dos Deputados se mantivesse de forma independente em relação ao Executivo em boa parte do tempo. Ou seja, mesmo quando ela tinha convergência em termos de agenda – e a reforma da Previdência é um bom exemplo disso –, ela não tinha necessariamente a condição de caudatário do Executivo.
As vitórias de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco são um triunfo bolsonarista ou uma vitória do Centrão?
Talvez um pouco das duas coisas. Acho que elas não se excluem. É uma vitória do governo, na medida em que derrota um adversário que ele tinha na Câmara dos Deputados, muito claramente, que é o Rodrigo Maia. Ele elege um aliado e consegue, a partir da eleição do aliado, construir uma coalizão de sustentação, que é o que ele não tinha. Então, o governo sai melhor dessa situação com a vitória do Lira do que com os outros cenários que ele vivenciou até hoje.
Agora, claro que é uma vitória do Centrão, porque os partidos que o compõem, que eu prefiro chamar de “partidos de adesão”, são legendas que vão ter mais acesso a recursos governamentais do que tiveram até então. Claro que essa coisa veio se abrindo, pelo menos desde março, abril do ano passado, quando essas negociações começaram, quando os partidos do Centrão começaram a nomear indicados seus para cargos dentro do Executivo. Mas a tendência, daqui pra frente, é esse processo avançar muito mais.
A questão é saber como essa tendência mais acomodativa do Centrão, de partidos que na realidade não têm um projeto político muito claro para o país – eles têm muito mais o interesse de participar do governo para poder se beneficiar politicamente –, como é que isso vai funcionar com um governo que tem uma orientação ideológica tão radicalizada. Eu não diria nem programática, mas ideológica sim.
E os partidos do Centrão não primam exatamente nem pela solidez programática nem pela rigidez ideológica. Então, é uma questão que a gente pode ficar em dúvida, como é que isso vai funcionar daqui pra frente? Partidos tão maleáveis, tão pouco claros com relação aos seus projetos, com um governo que na realidade está em uma guerra cultural, está em um enfrentamento ideológico e que não parece estar dando muito alívio nisso. O Bolsonaro continua o mesmo, e isso não combina muito com essa lógica de se acomodar que o Centrão tem.
Como vai se desenhar um governo Bolsonaro com as duas casas presididas por parlamentares apoiados por ele?
Ele tem chance de fazer avançar uma agenda. A minha dúvida é: ele tem uma agenda? A gente não vê muito claramente esse governo com uma agenda clara para a economia, uma agenda clara em termos de políticas públicas de um modo geral. A gente tem uma estratégia, em boa medida, destrutiva do governo em certas áreas. Ele desconstrói a área ambiental, a área cultural, a política educacional – que foi longamente construída nos últimos anos –, mas ele não oferece muita coisa para pôr no lugar.
Mesmo em termos de política econômica. O que ele pretende fazer? “Ah, é um governo neoliberal.” É, mas qual é o projeto neoliberal? É diferente do que a gente viu em outros governos, que tinham uma agenda de reformas muito clara. Propostas de privatizações que andavam. Nesse governo nada anda.
Acho que o problema é ele ter até uma base de sustentação no Congresso, mas não saber muito bem o que fazer com ela. Porque ele não tem capacidade interna de articulação para fazer propostas que efetivamente avancem. Acho que essa é a principal deficiência desse governo. A minha dúvida é se isso vai servir de fato para outra coisa que não seja defender o governo e defender o Bolsonaro de eventuais processos de impeachment, de investigações. Ou seja, se essa coalizão não vai ter muito mais um sentido defensivo do que propriamente propositivo.
Dois tópicos que o Maia vinha segurando eram as pautas relacionadas a costumes e ao desmonte ambiental, a MP da Grilagem, de mineração em terras indígenas… Você acredita que essas pautas têm chance de avançar?
Eu acho que, nessa questão específica de costumes, o governo tem mais clareza em relação ao que ele quer fazer, que é avançar uma pauta reacionária. Veja, não estou falando de políticas públicas em um sentido amplo. Saúde, educação, assistência social etc. Agora, nessa coisa de fazer avançar propostas mais do que conservadoras – eu diria reacionárias mesmo, porque vão contra até certas coisas que foram de alguma maneira conquistadas, construídas pela sociedade ao longo das últimas décadas –, nisso o governo pode ter um pouco de sucesso. Se tiver um presidente da Casa disposto a aceitar que isso entre em pauta e, ao mesmo tempo, ter ali um grupo de parlamentares muito conservadores, da bancada evangélica, da bancada da bala, que também se disponham a fazer essas coisas avançarem, é possível que você tenha uma maioria suficiente para aprovar uma ou outra coisa.
Eu ainda sou um pouco cético em relação a ter efetivamente uma maioria. Acho que essas coisas podem entrar em discussão, podem entrar em votação, mas não necessariamente elas são aprovadas. Agora, acho que diferentemente do que aconteceria se você tivesse um Maia ou um aliado dele como presidente, as chances dessas coisas entrarem na pauta, são bem maiores com o Lira do que era antes.
O meio ambiente, acho que é um pouco a mesma situação. Embora no caso do meio ambiente muita coisa já tenha sido feita no âmbito do Executivo, não depende tanto do Congresso. [Isso] tem sido feito no âmbito administrativo: a destruição da área de fiscalização ambiental do Ibama, o conluio do governo com desmatamento, com grilagem etc.
Agora, tem, ao mesmo tempo, uma pressão internacional imensa no Brasil por conta disso. O Tesouro Nacional quer lançar agora títulos voltados para investimento sustentável. Eu acho que esse vai ser um bom termômetro de como é que a comunidade internacional, inclusive o mercado financeiro internacional, está olhando para o Brasil. Se for um fiasco, como até imagino que será, isso mostra que na realidade o governo não tem tanta margem de manobra para avançar nessa frente como ele supõe que tem.
Bolsonaro terá força para aprovar mudanças constitucionais?
Mudanças constitucionais, acho que realmente o Bolsonaro não tem uma maioria tão forte a ponto de fazer uma agenda constitucional importante, de mudanças radicais na Constituição avançar. Creio que essa capacidade ele ainda não tem. A gente está falando de três quintos dos votos, 60%. Então acho que, realmente, [a dificuldade] para aprovar mudanças constitucionais é muito maior. Se não em uma Casa, quando você pensa nas duas no seu conjunto.
Que papel ocupa a oposição nesse novo cenário que está se desenhando nas duas Casas?
No Senado, a coisa é um pouco mais complicada porque há segmentos importantes da oposição que apoiam o Pacheco. Acho que ele é um candidato de perfil diferente do que é o Lira, talvez menos claramente aliado ao governo.
Na Câmara, essa derrota do Baleia é uma derrota muito dura porque pode significar ficar fora da Mesa Diretora, perder posições importantes em comissões temáticas na Câmara dos Deputados. E mais, sofrer uma derrota simbolicamente significativa. Essas coisas todas se somam. Essa última mais a curto prazo e as outras com efeitos pelos próximos dois anos.
Nesses dois anos de governo, o Bolsonaro foi deixando um pouco de lado algumas bases de sustentação política que levaram à eleição dele: o discurso das reformas, combate à corrupção, fim da velha política. Essas eleições legislativas com Bolsonaro apoiando o Lira são o ápice do processo de abandono do discurso que o elegeu?
Uma boa parte desse discurso, sim. Esse discurso de negar a política tradicional, talvez porque ela estivesse mais rejeitada pelas pessoas, que é essa barganha de cargos por apoio político e muitas vezes até a corrupção que vem acompanhada dela, isso ele jogou completamente ao mar. Claro que ele continua com aquele discurso muito radical à direita e que também estava presente na eleição dele. Esse discurso ele não abandonou.
Agora, esse de negador da classe política tradicional, é evidente que ele abandonou. O que não quer dizer que ele tenha deixado de lado, também, a ideia de que o sistema político como tal precisa ser demolido. Uma coisa é se alinhar circunstancialmente ao Centrão, outra coisa é acreditar na estrutura institucional da democracia – porque os caras tiveram voto e estão lá por isso. Contempla os partidos do Centrão, mas poderia contemplar outros.
Não sei até que ponto, ao conseguir essa maioria legislativa ou pelo menos uma base de sustentação majoritária ou significativa dentro do Congresso, o Bolsonaro, na realidade, não aumenta as chances de, ao se alinhar à classe política mais tradicional, atacar o sistema político institucional. Essas duas coisas não estão desvinculadas e, a meu ver, o cálculo que ele faz é esse.
Desse ponto de vista, ele continua fiel ao que o norteou durante a campanha eleitoral e durante a sua trajetória política. Ele sempre foi um membro desses partidos, um membro marginal. E sempre atacou as instituições. Pode ser que ele esteja, nesse momento, circunstancialmente alinhado a esses partidos – como eles estão alinhados a ele. O Centrão é um “exército mercenário”, como o Celso Rocha de Barros usou essa expressão. Ou aquela ideia de que o Centrão ninguém compra, só aluga.
Então, você não pode confiar que, estando com o Centrão hoje, ele vai estar com ele amanhã. Agora, é o que ele tem nesse momento, e acredito que ele enxerga aí uma forma de concentrar mais poder em suas mãos e, ao fazer isso, fragilizar a estrutura institucional da democracia, que é a coisa na qual o Bolsonaro sempre apostou.
Que influência essa eleição da Câmara e do Senado vai ter em relação a 2022? E o posicionamento de partidos como o DEM e o PSDB, que abandonaram o Rossi na última hora, são indicativos negativos para a tão falada frente ampla?
Olha, acho que, se a gente pensar a frente ampla como uma frente de todo mundo com todo mundo, com certeza. Agora, se a gente pensar em uma frente defensiva no sentido de evitar os ataques do bolsonarismo à democracia, isso ainda pode existir, mas está fragilizado nesse momento.
Partidos que a rigor poderiam estar nesse lugar, como o DEM e o PSDB, claramente estão rachando e se bandeando para o lado do Bolsonaro, pelo menos uma boa parcela dos seus deputados. Isso por si só já produz fissuras importantes nessa ideia de uma ampla frente de resistência democrática.
Acho que 2022 é uma outra questão. É a eleição, e os setores políticos tendem a se alinhar em torno das suas afinidades mais do que propriamente dessa ideia comum de defesa. Acho que isso está estremecido hoje porque alguns talvez não estejam achando que é perigoso se alinhar ao Bolsonaro, mesmo que circunstancialmente. E eu particularmente acho que é. E esse é o grande risco que existe hoje para certos setores que não são propriamente governistas, mas que estão nesse momento.