Elas estavam presas. Tinham companheiros e parentes presos ou trabalhavam como vigilantes na mesma prisão. Dizem ter sido coagidas a fazer sexo ou sofrido tentativas de abuso sexual depois de reiteradas ameaças. Em comum, todas as vítimas relatam que eram dominadas pelo medo. Medo de serem transferidas para prisões longe das famílias ou sofrerem castigos. De verem os companheiros passando por um “inferno” quando não cediam aos “impulsos sexuais” de funcionários do estado que comandavam a cadeia. Ou a perda do emprego para aquelas que trabalhavam na segurança da mesma unidade prisional.
Os relatos fazem parte da acusação contra três agentes prisionais que teriam exigido favores sexuais de ao menos 27 mulheres no Presídio Regional de Caçador, cidade localizada na região meio-oeste de Santa Catarina. As tentativas e os atos sexuais por meio de coação, segundo a denúncia apresentada à Justiça em maio de 2019 pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) e à qual a Agência Pública teve acesso, teriam sido cometidos por Felipe Carlos Filipiacki, que foi gerente da unidade prisional, Antônio Cícero de Oliveira e Ediney Carlos Kasburg, funcionários nomeados, respectivamente, para os cargos de supervisor e chefe de segurança da unidade prisional, entre dezembro de 2012 a janeiro de 2016.
Os casos foram descritos pelas vítimas e confirmados por funcionários do presídio, de acordo com o MPSC, durante a apuração dos outros crimes, incluindo corrupção passiva, que também teriam sido praticados pelos funcionários públicos, e após a prisão deles determinada pela Justiça em dezembro de 2018.
A ação obtida pela reportagem descreve em detalhes uma série de casos narrados pelas vítimas em depoimento na fase da investigação policial. A apuração oficial diz que, depois de assediarem e coagirem as mulheres presas, os agentes concediam em troca “privilégios” como a entrada de produtos proibidos, trabalho interno ou externo nas empresas e instituições conveniadas com a unidade prisional ou “alojamento diferenciado”. Para as detentas “escolhidas”, a promessa era também a de terem a redução do tempo de prisão com os dias de trabalho, mas somente para as que “entrassem no jogo”.
As ameaças, quando elas não aceitavam fazer sexo sob coação com os acusados, eram a possibilidade de transferência para unidades prisionais mais longes de Caçador, dominadas por facções criminosas, e o consequente afastamento forçado das famílias, além de agressões e “castigos”.
“Não foram poucas as detentas que relataram que, após a negativa, sofreram perseguição”, diz a denúncia, que traz ainda dois casos de coação de vigilantes da unidade prisional. No caso das funcionárias, as ameaças eram de demissão. Os acusados teriam usado a condição de gestores do espaço público para ameaçar as mulheres com a perda do emprego.
Em um dos relatos contra Oliveira, uma das vigilantes do presídio informa que resistiu à investida dele e, depois de contar para o diretor da unidade, Filipiacki, ele a teria colocado em férias e demitido em seu retorno.
“Já está na hora de você retribuir o favor que a gente fez em te contratar”, disse o agente, segundo a testemunha. Logo em seguida, Oliveira teria retirado o colete tático que estava sobre suas pernas ficando com “as calças abaixadas até o joelho deixando o órgão sexual a mostra”.
Também foram vítimas dos três agentes, segundo descreve o MPSC, as companheiras dos presos, detidos na ala masculina da mesma instituição prisional. Para as que não cediam, as ameaças também eram de transferência de seus parentes e maridos para outras cidades. A proposta era a possibilidade de o familiar preso das vítimas receber regalias e proteção dentro da unidade, mas sempre em troca de “favores de cunho sexual”.
A denúncia neste ponto traz o relato de cinco vítimas. Em um dos depoimentos, uma vítima que tinha o marido preso na unidade prisional e que recusou a investida de Filipiacki relata que o companheiro teve a vida transformada em um “inferno” depois da abordagem de conceder regalias ao preso em troca de relação sexual. E que o marido recebeu ameaças de transferência e “jatos de banho de água”.
Na denúncia, os casos foram descritos ao menos em 24 atos relacionados à exigência de vantagem sexual das presas por Filipiacki, duas por Oliveira e uma por Kasburg. Mas a promotoria aponta que o número de vítimas pode ser ainda maior.
“Registra-se que os números acima mencionados dizem respeito às vítimas cuja identificação foi possível, não havendo dúvidas de que muitas outras acabaram sendo alvos dos requeridos”, afirma a promotora Roberta Ceolla na denúncia que ainda não foi julgada em definitivo, mais de dois anos depois, pela 2ª Vara Cível da Comarca de Caçador.
Os abusos citados fazem parte de uma ação cível de improbidade administrativa analisada pela Pública. O processo resultou também no afastamento dos servidores das funções públicas. A denúncia foi aceita pela Justiça, fato que tornou os três agentes réus, em outubro de 2019.
Uma ação penal contra os agentes prisionais sobre as mesmas acusações ainda está em segredo de Justiça e, por isso, não foi possível ter acesso ao seu conteúdo.
Atualmente os réus respondem às acusações em liberdade.
Testemunha: “O que adiantou a gente se expor?”
A Pública conseguiu ouvir os relatos transcritos na denúncia do MPSC com uma das vítimas dos acusados citadas na ação cível. Assim como a maioria das mulheres ouvidas durante a fase de inquérito policial e judicial, ela também é uma das testemunhas protegidas pela Justiça.
Na condição de anonimato, a vítima revelou duas situações que não fazem parte da denúncia do MPSC.
A primeira delas é que Filipiacki chegou a Caçador, no final de 2012, com pelo menos cinco mulheres presas transferidas a seu pedido para unidade prisional onde os abusos teriam ocorrido, alvo da ação que é analisada pela Justiça há mais de dois anos. E que essas mulheres presas já teriam cedido à sua coação ainda durante a gestão do ex-diretor na unidade prisional de Videira, outra cidade do meio-oeste catarinense e onde o acusado foi também diretor.
“As meninas que vieram de Videira eram mulheres muito bonitas”, lembra a testemunha ao ser questionada sobre como o ex-diretor selecionava as mulheres que tentava coagir e que viviam sob sua proteção em troca de favores sexuais.
A outra informação revelada pela testemunha ouvida pela reportagem é que, mesmo depois de ter sido nomeado em 2016 como diretor da Penitenciária Agrícola de Chapecó, cidade no oeste do estado, Filipiacki teria voltado ao presídio de Caçador para continuar a abusar das presas da unidade onde tinha sido diretor.
Segundo a testemunha, os presos acreditavam que o ex-diretor tinha sido promovido como diretor regional. E, por isso, ela diz, continuava usando a sala da diretoria da unidade de Caçador para cometer novos abusos sexuais. Em outras ocasiões, o acusado voltava a aparecer nos locais de trabalho das presas em Caçador, mesmo comandando o complexo penal de Chapecó, para continuar cometendo abusos por meio de coação das presas, segundo a versão da testemunha.
Pelo relato, ele retirava as vítimas, mesmo no meio do expediente, para exigir sua parte do acordo de mantê-las no trabalho fora do presídio.
Quando Filipiacki deixou o presídio de Caçador em 2016, a gerência foi assumida por Antonio Cícero de Oliveira. Os atos ilegais de gestão praticados por Oliveira e Kasburg entre 2016 e 2018 são alvo de outra ação civil pública e uma ação criminal.
Segundo o MPSC, os três agiam sempre da mesma maneira e ainda eram cúmplices dos abusos sexuais. “O que restou apurado é que, durante a gestão de Felipe Carlos Filipiacki, este era o mais incisivo nas investidas em relação às mulheres e que, após a saída deste, Antônio Cícero e Kasburg ‘assumiram seu papel’, consoante se evidencia da ação civil pública que já se encontra em trâmite neste Juízo. Não há dúvida de que todos os réus tivessem conhecimento das condutas ímprobas e criminosas uns dos outros. A proximidade e confidencialidade entre eles ficou bem evidente na investigação”, afirma a denúncia.
Da mesma forma que atesta a testemunha ouvida pela reportagem, na maioria das vezes, os abusos sexuais eram praticados dentro da unidade prisional, segundo a denúncia. Ou a presa era retirada de seu local de trabalho externo, “geralmente por Felipe e levada para outro local para a prática da relação sexual”.
Segundo os relatos, o medo também era e é o sentimento que predomina em todas as vítimas. As ameaças de transferência e os castigos seriam constantes mesmo para as que cediam. Ainda segundo a denúncia, Filipiacki dizia ter influência dentro do governo estadual. E caso fosse denunciado teria respaldo dos seus superiores, em Florianópolis, no comando do Departamento de Administração Prisional.
Sobre essa parte do relato, outra testemunha citada na denúncia destaca que o ex-diretor dizia ter “muito poder”. O depoimento aponta também que, no alojamento das presas com regalias, dez das cerca de 14 de presas mantinham relações sexuais com o acusado. Ela classifica o ex-gestor da unidade como “psicopata” e “louco por sexo”.
“O mais odioso é que as pessoas resolveram falar e eles ainda estão todos soltos. Tenho medo e outras pessoas que bateram de frente com eles também têm medo. O que adiantou a gente se expor? Foram muitas mulheres que falaram, familiares de presos. E daqui alguns dias eles podem estar em outros presídios fazendo o mesmo com outras mulheres. E a dignidade e o psicológico das pessoas? Você tem que cumprir uma pena, é abusada sexualmente e vê que nada acontece?, lamenta a testemunha ouvida pela reportagem.
Tortura: “o diabão do Meio Oeste”
Além dos abusos sexuais, a denúncia do MPSC afirma que os três acusados teriam praticado tortura contra os presos. Foram, segundo a promotoria, 11 atos relacionados à tortura que teriam sido praticados por Filipiacki, nove por Oliveira e quatro por Kasburg. São oito testemunhas que fizeram relatos de agressões físicas e psicológicas. Assim como nos casos de envolvimento sexual mediante coação das mulheres, o número de vítimas pode ser maior.
“Não havendo dúvida de que muitos outros episódios ocorreram, já que diversas testemunhas afirmaram que eram corriqueiras as agressões de presos durante a gestão 2012/2016, mas não souberam precisar os nomes das vítimas. Pelos depoimentos colhidos, é possível verificar que, já quando do ingresso na Unidade Prisional, o detento era submetido a sofrimento psicológico e, muitas vezes, a agressão física”, aponta a petição da 2ª Promotoria de Justiça de Caçador.
Uma das testemunhas protegidas citada pela denúncia do MPSC disse que aumentava o volume da televisão sempre que presos entravam nas salas da diretoria do presídio. A colaboradora da unidade prisional disse que não suportava mais ouvir os barulhos das agressões. E, quando as torturas causavam lesões mais graves, os presos eram deixados no isolamento por 30 dias até se recuperarem para não aparecerem com as marcas dos ferimentos.
Enquanto isso, as famílias das vítimas não podiam fazer visitas sob a alegação de que os presos tinham feito alguma “falta”.
Em outro relato, uma das vítimas diz que sofreu com agressões com o uso de marretas de borracha e que Filipiacki era conhecido no sistema prisional de Santa Catarina como “o diabão do Meio Oeste”.
Outro lado
Felipe Carlos Filipiacki, principal acusado pelos abusos sexuais e torturas, além de responder por esses casos nas ações (cível e criminal) já descritas por esta reportagem, também é acusado de enriquecimento ilícito pelo MPSC. Ele perdeu o cargo de diretor da Penitenciária Agrícola de Chapecó e foi exonerado da função em setembro de 2018, após sua esposa ter sido flagrada em Joaçaba, também no oeste do estado, dirigindo uma viatura do Departamento de Administração Prisional (Deap).
Além da condenação por improbidade administrativa, a promotoria pede que ele devolva R$ 28,6 mil pelo uso do carro oficial para fins particulares, em ação ajuizada em janeiro de 2020.
Em uma petição, a defesa sustenta “a total ausência de dolo” nos casos narrados pelo MPSC de conteúdo sexual e tortura, mas Filipiacki alega e admite que teve um “envolvimento amoroso” com uma única detenta no interior da unidade prisional.
Seus advogados, que também defendem Antônio Cícero de Oliveira nas mesmas ações, enviaram nota à Pública em que dizem que as alegações do MPSC não são verdadeiras.
“Inicialmente, importante esclarecer que o processo da ação civil pública pauta sobre a dignidade da pessoa humana, inclusive, dos requeridos. Sim, afinal, estes sempre motivaram, encorajaram e enalteceram tal princípio no exercício de suas funções sendo que as alegações a eles imputadas não são verídicas, tanto é que acreditam na improcedência da ação. Ainda, alguns pontos devem ser destacados como a presunção de inocência, o respeito ao processo judicial, a defesa pautada pelo contraditório, bem como a ausência de provas – ônus da parte autora – na demonstração dos fatos. Acredita-se que a justiça prevalecerá, motivo pelo qual a defesa dos Srs. Antônio Cícero de Oliveira e Felipe Carlos Filipiacki inclusive se põe à disposição para futuros esclarecimentos, com o trânsito em julgado do processo, caso assim achar necessário”, diz a íntegra da nota assinada pelo advogado Pedro Alexandre Pronievicz Barreto e Márcia Helena da Silva.
Leonardo Elias Bittencourt, defensor de Ediney Carlos Kasburg, disse à reportagem que seu cliente não pretende se pronunciar sobre o caso. No processo, alega que os atos relatados pelo Ministério Público “não são mais do que meras suposições”.
A reportagem pediu à Secretaria de Administração Prisional (SAP) os dados sobre os processos de investigação interna contra os três funcionários acusados pelo MPSC. Os três servidores públicos, apesar do afastamento determinado pela Justiça, continuam recebendo seus salários, pois não existe previsão legal para suspensão dos pagamentos enquanto não é concluído um processo administrativo disciplinar aberto contra eles, iniciado ainda em 2018.
A pasta alegou que não poderia fornecer as informações citando cinco leis (Lei Federal nº 13.869/2019 – Lei de Abuso de Autoridade –, Lei Federal 8.112/1990, Lei Federal nº 9.784/1999, Lei nº 8.906/1994, Lei Complementar Estadual nº 491/2010) e o enunciado nº 14/16 da Controladoria-Geral da União (CGU), que impede que terceiros tenham acesso a processos disciplinares em andamento.
Kasburg e Oliveira respondem ainda na Justiça a uma ação de improbidade administrativa e outra criminal por atos cometidos na gestão do presídio entre 2016 até a prisão deles em 2018. O MPSC ainda investiga a administração de Filipiacki na mesma unidade prisional entre 2012 e 2016. Os três acusados ficaram presos entre dezembro de 2018 e fevereiro de 2020.