Aos 64 anos, Marina Silva se vê mais uma vez diante de um chamado para concorrer a um cargo legislativo. A ex-ministra do Meio Ambiente já foi eleita vereadora de Rio Branco, cidade onde nasceu, deputada estadual e senadora duas vezes pelo Acre. Em 2022, o desafio pode ter outro nome, Câmara dos Deputados, e também outro colégio eleitoral, São Paulo, em vez de seu estado de origem.
Marina, que já concorreu três vezes à presidência, diz que se candidatar novamente ao Congresso Nacional não estava “em seu horizonte”. Mas diante da “guerra contra tudo que é de interesse estratégico do Brasil” promovida pelo presidente Jair Bolsonaro nos últimos quatro anos, ela agora reconsidera. “Derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo é um ato de legítima defesa”, “um imperativo ético”, afirma. “Quando penso na questão de como encarar o desafio que está posto, de retornar para dar essa contribuição, esse não é um debate que está sendo feito só comigo; inclusive, venho estimulado esse debate para outras pessoas, e aí, de certa forma, ele foi devolvido para mim”, conta em entrevista à Agência Pública, sem confirmar se a decisão já está tomada.
Quando o assunto é a reaproximação com o ex-presidente Lula, o candidato mais bem colocado nas pesquisas, explica que há divergências a serem discutidas. “Na questão da política energética brasileira, não tem mais tempo para que fiquemos só fazendo apologia ao pré-sal, aos combustíveis fósseis, reeditando [a campanha] do ‘petróleo é nosso’. Agora é usar os meios que ainda temos a partir dessa fonte – que não tem como ser suprimida da noite para o dia – para investir recursos na transição energética”, cita. “Por exemplo, sou contra as hidrelétricas do Tapajós, elas vão ser feitas [num eventual governo Lula]? Essas questões todas têm que ser consideradas.”
Motivo de críticas dentro do PT, ela vê com bons olhos a formação da chapa Lula-Alckmin e a enxerga como um “encontro tardio” entre seu ex-partido e o PSDB. “Em bases programáticas, mesmo sendo partidos da Social-democracia com origens e processos diferentes, PT e PSDB tinham muito mais espaço de conversa do que o PT com Sarney, Collor, Maluf e Renan; e da mesma forma, o PSDB em relação ao senador Antônio Carlos Magalhães”, afirma.
Para que o governo brasileiro esteja à altura do desafio de proteger seus biomas e cumprir sua meta climática, assumida no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), Marina considera que, caso Bolsonaro não se reeleja, o novo presidente deve chegar com as agendas de meio ambiente e clima “legitimadas e fortalecidas”. “Isso não significa apenas um capítulo, um tópico nas páginas fechadas de um programa de governo, por mais tecnicamente interessante que possa vir a ser”, aponta. “As pessoas não podem achar que essa é uma agenda da ecologia pela ecologia, essa é a agenda da economia do século XXI.”
Na última quarta-feira (30), o STF iniciou o julgamento do “pacote verde”, formado por sete ações que questionam o desmonte das políticas ambientais nos últimos anos. Diante de um governo antiambientalista e em meio à crise do clima, qual a importância do Judiciário e da Suprema Corte, especificamente, para garantir que o Brasil proteja minimamente a Amazônia e cumpra sua meta climática?
O que está acontecendo no Brasil é um verdadeiro desrespeito à Constituição. As ações avaliadas agora pelo Supremo se revestem de uma importância estratégica, porque é a única forma de fazer com que o governo [não leve a cabo] tudo aquilo que se constituirá em um processo irreversível para os interesses da proteção do meio ambiente, econômicos, sociais e culturais do Brasil.
O Supremo tem essa incumbência agora, e a forma de fazer isso é ou declarar que o procedimento governamental é inconstitucional, ou que a atitude omissa do governo fere igualmente a Constituição. Então, recorrer ao Supremo nesse momento é um ato de legítima defesa da sociedade para evitar que algo irreversível venha a nos trazer prejuízos igualmente irreparáveis.
As mudanças climáticas já estão acontecendo no mundo e suas consequências são sentidas em vários lugares, sobretudo no Brasil, seja nos acontecimentos que tivemos – como as enchentes no estado de Minas, da Bahia, em São Paulo, no Rio de Janeiro, a catástrofe de Petrópolis –, seja pelos grandes prejuízos econômicos que o próprio agronegócio está vivendo nesse momento em função da estiagem. Você tem aí várias razões para que a instância máxima das cortes brasileiras interdite a ação de alto prejuízo que o governo está praticando. Em relação ao meio ambiente, em relação à economia e em relação à própria sociedade.
Você acredita que esse julgamento é histórico, uma oportunidade do STF mostrar para o mundo que, apesar do governo Bolsonaro, a sociedade brasileira está comprometida com o enfrentamento às mudanças climáticas e com a preservação da Amazônia?
Ele é histórico e, ao mesmo tempo, paradigmático. Tem também o poder de provocar inflexões para além das decisões que estão sendo tomadas. Histórico porque estamos levando para a Corte a legítima defesa da Constituição Federal, porque traz para as instâncias judiciais os crimes que o governo está praticando, seja por desrespeito à Constituição, seja por omissão. Paradigmático porque, a partir daí, você abre precedentes para que o descumprimento do preceito constitucional, do direito a termos um ambiente saudável e equilibrado, não seja mais ferido quer por omissão, quer por descumprimento da lei ou da implementação de políticas públicas que nos levam a alcançar esse objetivo. E produz inflexões para além daquelas que estão sendo julgadas porque, ontem, o próprio governo já tomou a atitude de fazer uma espécie de recomposição do CONAMA, o Conselho Nacional de Meio Ambiente, reavendo a representação das organizações da sociedade, que tinham quatro lugares e agora têm oito [o decreto com a mudança foi assinado por Bolsonaro na quarta-feira, dia 30]. Isso é a demonstração de que o governo sabe que está errado, de que está agindo de forma inconstitucional e se omitindo. E isso é igualmente inconstitucional. [O governo] está assumindo publicamente, fazendo uma confissão de culpa e tentando reparar as violações que fez à nossa Constituição.
Em outras ocasiões, você afirmou que o problema das políticas ambientais e climáticas é que elas não sobrevivem ao vai e vem dos governos. A litigância climática é um caminho importante para se evitar que isso aconteça? Pode ser um recado aos governos de que, se não priorizarem essas agendas, a sociedade pode, via Judiciário, pressionar por providências?
Acho que isso vai ser muito mais do que um recado, vai ser uma prática constante nas instâncias superiores das Cortes judiciais para mostrar que enfrentar as mudanças climáticas não é algo fácil e demandará uma ação combinada, de várias possibilidades de obrigar que governos e empresas cumpram seus compromissos assumidos no âmbito da Convenção do Clima.
Uma das coisas que devem começar a ser cobradas judicialmente são cronogramas dentro das metas estabelecidas por governos e empresas. É muito fácil um governo ou o presidente de uma empresa assumir metas altamente louváveis sem que exista um cronograma ou uma agenda de implementação. Como os governos e os presidentes das empresas mudam, vão deixando esses grandes anúncios para a gestão futura. E de gestão em gestão, você não tem ação efetiva para alcançar as metas estabelecidas, aí vira um greenwashing empresarial, governamental e assim por diante. O que vai acontecer em 2030 precisa ter resultados em 2020, 2025, até chegar 2030. Quais são as etapas? Quais são as ações? Qual é o cronograma para que se alcance esse resultado? Não tenho como atingir um resultado grandioso se medidas não são tomadas ao longo do tempo.
Embora o ex-presidente Lula lidere as pesquisas há meses, Jair Bolsonaro conserva uma base eleitoral sólida e vem crescendo em intenções de votos nas últimas semanas. O que sua reeleição significaria para as pautas ambiental e climática no Brasil?
Costumo dizer que o Brasil não tem como suportar, sobretudo em algumas agendas como a socioambiental, mais quatro anos de governo Bolsonaro. Se hoje já estamos vivendo, no caso da Amazônia em específico, a ameaça de chegarmos a mais de 20% de desmatamento e entrarmos num processo de savanização, em um ponto de não retorno, com mais quatro anos de governo Bolsonaro essa catástrofe é líquida e certa. Em relação a políticas sociais de educação, ciência, tecnologia e inovação, e até mesmo políticas econômicas que consigam reverter o processo dramático de desemprego e inflação que estamos vivendo, de juros altos e toda essa situação que foi cada vez mais sendo agravada por inoperância, pelo contexto da pandemia e agora da guerra, o Brasil não tem condição de aguentar mais quatro anos de Bolsonaro.
E em relação às políticas de direitos humanos e tantas outras, como é o caso de políticas de proteção e garantia dos direitos das populações indígenas, o Brasil não tem como suportar mais quatro anos de Bolsonaro. Derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo é um ato de legítima defesa. Os esforços que terão de ser feitos após o governo Bolsonaro serão de recuperação pós-guerra, porque Bolsonaro fez guerra contra o meio ambiente, contra a democracia, contra os povos indígenas, contra a saúde pública, contra a educação – fez guerra contra tudo que é de interesse estratégico do Brasil.
Não basta entrarmos na disputa agora com essa despolitização, como se fosse uma espécie de guerra santa, uma santa inquisição política entre o bem e o mal. É fundamental mudar o governo para mudar a realidade. Isso pressupõe, agora durante a campanha, que os candidatos do campo democrático, mais do que ficar com essa ansiedade tóxica de quem declara apoio a eles, comecem a declarar para a sociedade brasileira o que estão apoiando e com o que estão se comprometendo. O presidente Joe Biden conseguiu fazer isso na disputa contra Donald Trump, o que, em uma sociedade altamente polarizada, foi muito importante, porque ao final da eleição a sociedade sabia o que ele estava apoiando e com que estava se comprometendo, para ter legitimidade de implementar esses compromissos após a vitória. O debate sobre a Amazônia tem que ser nacionalizado, o debate sobre a proteção dos biomas brasileiros tem que ser nacionalizado. Os prejuízos econômicos, sociais e ambientais que estamos vivendo não podem passar à margem do debate pela lógica de que isso não rende votos. Você tem que sair legitimado para fazer o que precisa ser feito, e com isso, até conseguir uma espécie de carta de alforria do centrão. Todos ficam reféns do centrão e depois ainda se escondem atrás da ideia de que não tem como fazer, porque, afinal de contas, é o Congresso [quem manda].
Esse é o momento de mobilizar a sociedade brasileira e deixar muito claro que não irá fazer, por exemplo, as hidrelétricas no Tapajós, que não irá repetir Belo Monte, que não vai continuar colocando apenas 1% dos mais de 200 bilhões do plano Safra [de fomento ao desenvolvimento agropecuário em bases sustentáveis] para o programa de agricultura de baixo carbono [ABC]. De que não vai mais ficar com apologia ao combustível fóssil, e que vai investir todas as fichas em uma matriz energética limpa e diversificada para, aí sim, termos segurança energética, alternativas que a gente possa controlar e estabelecer preços. O país que já teve o programa do Proálcool e do biodiesel, se tivesse aprofundado a sua estratégia de segurança energética de base sustentável, não estaria vivendo as agruras que estamos vivendo em relação à dependência de combustível fóssil. Então, repito, mais do que declarar apoio vazio a candidatos, como se estivesse assinando um cheque em branco, vamos dar a eles a oportunidade de deixar muito claro qual o pacto, o acordo, o compromisso que estão apoiando.
Os governos do PT trouxeram diversos avanços na área ambiental, como a queda drástica do desmatamento na Amazônia de 2004 a 2012 – na qual você teve papel fundamental –, mas também foram marcados por falhas importantes, como a baixa quantidade de homologações de terras indígenas e a construção da usina de Belo Monte, que você acaba de citar. O que esperar de um novo governo Lula – caso a liderança nas pesquisas se concretize – em termos de políticas públicas para o meio ambiente e mudanças climáticas?
Acho que a gente tem que focar no que esperamos de qualquer governo que assuma a presidência da República após a terra arrasada que o Bolsonaro vai deixar em relação a várias políticas públicas. O que se espera, em primeiro lugar, é que o novo presidente chegue com essa agenda legitimada e fortalecida. Isso não significa apenas um capítulo, um tópico nas páginas fechadas de um programa de governo, por mais tecnicamente interessante que possa vir a ser. Sair legitimado e fortalecido é colocar o debate para a sociedade. Obviamente, até agora os programas dos pré-candidatos [à presidência] e as falas que têm feito estão muito aquém da necessidade do país em relação aos desafios da mudança climática, da transição para o modelo sustentável de desenvolvimento, de como combater a desigualdade social, fazer a recuperação econômica já em base sustentáveis, como o mundo inteiro precisa fazer. As pessoas não podem achar que essa é uma agenda da ecologia pela ecologia, essa é a agenda da economia do século XXI.
Sem a proteção das florestas, o Brasil fica altamente vulnerável e os prejuízos de bilhões que já temos na agricultura só irão se agravar. Aqueles que pensam que há alguma vantagem com essa política repetida de exploração de madeira, pecuária de baixíssima produtividade e medidas provisórias [aprovadas] no Congresso Nacional para regularizar grilagem e roubo de terra, [para depois acontecer] a aquisição dessas áreas pelo agronegócio brasileiro estão pegando com uma mão e tirando com as duas. Cada vez mais os prejuízos serão aumentados na nossa realidade de muita vulnerabilidade climática – porque o Brasil é um país vulnerável climaticamente falando –, e no campo das políticas econômicas externas. O mundo não vai querer um país que pratica dumping ambiental [estratégia de redução dos custos empresariais devido a leis ambientais menos rígidas], e vai haver um processo que levará à taxação dos produtos de carbono intensivo. Já era para o Brasil ter feito seu dever de casa, tinha todas as condições de ser agora o endereço [mundial] da agricultura de baixo carbono e da produção de base sustentável por ser de fonte de energia limpa, renovável, diversificada e segura.
Em entrevista recente, você disse que está disposta a conversar com Lula sobre algumas “divergências políticas”. Quais são elas? Como e com quem estão ocorrendo essas conversas?
Em primeiro lugar, essas conversas aparecem nas redes sociais e nos jornais – comigo até hoje ninguém falou desse assunto –, e de forma que considero quase que uma segunda rodada da desconstrução, porque no lugar das pessoas debaterem ideias, o que aparece é uma questão de rancor e ressentimento. Essa é uma forma de se colocar, em quem tem uma posição diferente, uma pecha que desqualifica esse interlocutor, porque se você é incapaz de perceber o que está em jogo diante do que estamos vivendo na saúde, no meio ambiente, na ameaça à democracia, nos problemas graves de desemprego, de tudo que está acontecendo nesse país, e por uma questão de mágoa e rancor você não se coloca na posição do diálogo, então esse interlocutor já está a priori desqualificado e nem merece consideração. Se você de fato quer compreender esse interlocutor como alguém com uma visão em termos políticos, de propostas para mais do que mudar de governo, a gente mudar a realidade, aí já é outra coisa.
No campo da democracia, a gente conversa, a gente dialoga. Quando eu disse que há diferenças, há diferenças sim. Por exemplo, fui contra fazer Belo Monte, eu reencaminhei para estudos. Na questão da política energética brasileira, não tem mais tempo para que fiquemos só fazendo apologia ao pré-sal, aos combustíveis fósseis, reeditando [a campanha] do “petróleo é nosso”. Agora é usar os meios que ainda temos a partir dessa fonte – que não tem como ser suprimida da noite para o dia – para investir recursos na transição energética. É usar os recursos para recorrer menos ao combustível fóssil e a mais energia do vento, do sol, da biomassa, para mais energia que seja de base sustentável. Por exemplo, sou contra as hidrelétricas do Tapajós, elas vão ser feitas [num eventual governo Lula]? Essas questões todas têm que ser consideradas. Existe um projeto de Amazônia 4.0, da bioeconomia.
Vamos colocar o volume de recurso necessário em juntar o melhor do conhecimento moderno de biotecnologia ao saber tradicional dos povos originários e das comunidades locais para criar sistemas agroflorestais de indústria e processos que levem em conta a nossa biodiversidade, inclusive a possibilidade de criar novos produtos, materiais e cadeias de valor para alavancar uma nova economia na região? Vai realmente por fim nessa ideia de [fazer] regularização fundiária para, a partir daí, ser desmatamento zero? É uma espécie de enxugar gelo: você regulariza, aí novamente tem invasão e aliança perversa entre grileiros e agentes dentro do Congresso – e, às vezes, do governo de plantão – e se cria a certeza da impunidade, e [não só], mas o prêmio pela impunidade.
Qual é a alternativa à regularização fundiária?
O que tem que fazer é ordenamento territorial e fundiário, que pressupõe demarcar as terras indígenas; isolar os povos originários que não podem ter contato, criando inclusive um cinturão de proteção; consolidar áreas que podem ser utilizadas para atividades produtivas agrícolas de base sustentável, fazendo transição para o programa ABC [de agricultura com baixas emissões de carbono], como o que foi desenvolvido pela Embrapa. Mas não vamos chegar a isso se continuar destinando 1% do plano Safra para agricultura de baixo carbono e 99% para a agricultura tradicional.
Se vai fazer ordenamento territorial e fundiário, vai ter que demarcar Unidade de Conservação de uso sustentável e proteção integral, vai criar infraestrutura para o desenvolvimento sustentável. Coisas boas que aconteceram nós temos que manter, como, por exemplo, o PPCDAm [Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal], que levou à queda do desmatamento por quase uma década. Em 2012 voltou a crescer, mas o plano ainda continuou – agora, com Bolsonaro, foi completamente abandonado, e é o centro de uma das ações julgadas pelo Supremo [no Pacote Verde]. Eu discuto propostas, ideias e projetos para o Brasil reconhecer erros. O PT e o PSDB foram os partidos que mais ficaram no poder após a reconquista democrática, será que não tem nada que possa ser percebido como erros que levaram, depois de tantos anos, a que a cena política, de forma deletéria, tenha sido assumida por Bolsonaro?
Aproveitando esse gancho sobre PT e PSDB, recentemente você também afirmou à imprensa que “um dos grandes erros da nossa reconquista democrática” foi o PSDB ter preferido uma aliança com o ACM em vez do PT, e o PT ter se aproximado de José Sarney, Renan Calheiros, Fernando Collor e Paulo Maluf em vez de dialogar com Fernando Henrique Cardoso. Estamos perto de ver Geraldo Alckmin ser anunciado como vice de Lula na disputa presidencial. Avalia que essa aproximação deveria ter ocorrido mais cedo? Por quê?
Com certeza deveria ter ocorrido antes. O que está acontecendo agora, diante de todo o problema que o Brasil está vivendo com o governo Bolsonaro, é um encontro tardio e resvalado do Partido dos Trabalhadores com o PSDB e vice-versa. O Fernando Henrique fez uma síntese disso tudo, ele disse que “o PT e o PSDB ficam disputando para ver quem lidera o atraso” – o atraso que era comandado pelo Centrão no Congresso Nacional. Na verdade, em bases programáticas, mesmo sendo partidos da Social-democracia com origens e processos diferentes, PT e PSDB tinham muito mais espaço de conversa do que o PT com Sarney, Collor, Maluf e Renan; e da mesma forma, o PSDB em relação ao senador Antônio Carlos Magalhães.
O Alckmin é um legado do PSDB, sua vida pública e seus governos em São Paulo ocorreram pelo PSDB. Ele não estar mais no PSDB e ter se filiado recentemente ao PSB não o transforma, da noite para o dia, em alguém que vem de um legado da tradição socialista. Mas nós estamos aqui para aprender e costumo dizer que em cima de princípios éticos e valores duradouros de defesa da democracia, dos direitos humanos, do meio ambiente, do desenvolvimento sustentável, da justiça social, é possível fazer alianças pontuais. Em cima desses princípios, a gente conversa, trabalha em uma base comum, mesmo tendo a consciência de que cada um pode seguir sua trajetória na sua respectiva direção.
Mas na democracia tem que haver um ecossistema político coerente, não dá para imaginar que você vai ser a flor do pântano, não posso achar que minha existência deve ser exclusiva. Aliás, a floresta mostra muito isso. A seringueira, por exemplo, na Amazônia, não tem como ocorrer em plantio homogêneo, porque as pragas atacam e não tem controle que consiga detê-las, agora, numa floresta completamente diversificada, com muitas espécies e barreiras naturais, temos a seringueira de forma exuberante como o clone mãe de todos os seringais de cultivo fora da Amazônia. Como diz o provérbio, “sábios são os que aprendem com os erros dos outros, estúpidos os que não aprendem nem com os próprios erros”. Não fomos sábios para aprender com os erros e os acertos dos outros nesses requisitos, então não temos o direito de ser estúpidos. Mas temos que reconhecer que não dá para estar unidos só já em situação extrema, em estado de legítima defesa. Poderíamos talvez ter evitado o Bolsonaro e os prejuízos que ele causa. Quantas coisas talvez pudessem ter sido evitadas?
Você confirma que sairá candidata a deputada federal por São Paulo?
Essa questão vem surgindo já há algum tempo, com muitas pessoas dizendo que, depois da terra arrasada que Bolsonaro promoveu contra as agendas que mencionamos aqui, era a hora de termos uma grande bancada de defesa da ciência, tecnologia, meio ambiente, povos originários, educação e agricultura de base sustentável no Congresso. O Congresso hoje tem um poder de decisão que é até maior do que o do Executivo em alguns aspectos.
Quando penso na questão de como encarar esse desafio que está posto, de retornar para dar essa contribuição, esse não é um debate que está sendo feito só comigo; inclusive, venho estimulado esse debate para outras pessoas, e aí, de certa forma, ele foi devolvido para mim. Cheguei a conversar com algumas pessoas que têm um trabalho muito relevante, na esperança de que elas pudessem vir, mas compreendo que muitas delas estão em frentes igualmente importantes na sociedade brasileira.
Conversei com o ex-presidente do Inpe, Ricardo Galvão, que aceitou o desafio de defender a ciência no Congresso Nacional; estou conversando com a ambientalista [João Paulo] Capobianco – que foi fundamental durante a minha gestão como secretária executiva de Biodiversidade e Floresta para os resultados alcançados no plano de combate ao desmatamento – para que ele também viesse para a cena política. Fiz um desafio ao Eduardo Jorge, uma das referências do SUS, para que, agora que a saúde está na lona, ele possa vir, seja como senador ou como deputado federal. Voltar para o Congresso não é algo que eu tenha colocado no meu horizonte, mas diante dessa situação, estou avaliando. Não é uma decisão fácil e, neste momento, não tenho ainda uma decisão tomada.
Por que a mudança de estado? E por que a Câmara, em vez do Senado?
No programa da Rede Sustentabilidade, ficou estabelecido que somos contra a reeleição para o Executivo, e eu fui uma das pessoas que defenderam com muita ênfase que, para o Legislativo, bastariam duas eleições. Não fui completamente vitoriosa nesta tese porque se considerou que, em casos muito raros e excepcionais, se o partido fizer uma espécie de prévia e determinar que [uma pessoa] pode sair para reeleição no Parlamento por mais de dois mandatos, aí poderá.
Quando decidi, em 2006, que não seria candidata a um terceiro mandato no Senado, era coerente com isso que eu estou falando. Deputada federal nunca fui: fui vereadora, deputada estadual e senadora por dois mandatos, então tem aí uma questão de coerência. [Sobre decidir ir] por São Paulo: depois de participar de três eleições para presidente da República, você passa a ter domicílio eleitoral no país, não mais em um único lugar.
Na primeira campanha, eu pensava que estava visitando as várias Unidades da Federação do Brasil; depois de três campanhas, parece que tem todas as Unidades da Federação junto com você, porque tem um envolvimento. As pessoas acham que São Paulo é um lugar onde a questão ambiental pode ser alavancada, como São Paulo já alavancou tantas questões no Brasil – o país ser um país agrícola, como foi, transitar para a indústria e tantas outras transformações. Do ponto de vista político, estou fazendo uma reflexão que não é fácil, porque há toda a carga da causa, do momento, e eu estou com 64 anos. Tem todas essas nuances.
Em 2014, quando candidata à presidência pelo PSB, falava-se muito que você representava a “terceira via” em relação à polarização entre Dilma Rousseff, do PT, e Aécio Neves, do PSDB. Hoje, esse discurso da “terceira via” está ainda mais presente na campanha presidencial, com a diferença de que o pólo contrário a Lula e o PT é ocupado por Jair Bolsonaro. Por que então não concorrer novamente à presidência?
Quando você participou por três vezes da campanha presidencial, já deu sua contribuição, e para continuar contribuindo não precisa ser necessariamente como candidato. Estou participando do debate da forma como me é possível, de acordo com os critérios que considero serem importantes. Derrotar o Bolsonaro é um ato de legítima defesa, um imperativo ético. Do que está aí, nada consegue ser pior do que Bolsonaro. Mas temos uma eleição em dois turnos que nos dá a oportunidade de fazer o debate no primeiro e no segundo turno. Infelizmente, a polarização criada no Brasil, essa cultura de um ecossistema praticamente homogêneo em termos políticos – PT e PSDB, Arena e MDB e assim vai – criou uma grande dificuldade para se ter um terceiro caminho. Costumo dizer que, quando só há duas possibilidades, não se tem escolha, se tem opção – optar é diferente de escolher.
O terceiro [caminho] introduz a ideia da escolha, e muitas vezes, ele pode ser criado. Essa expectativa está posta, mas está muito pulverizada. E existe uma aposta histórica na polarização. Essa [eleição] não é uma guerra do bem contra o mal, uma santa inquisição política, é uma campanha que deve ser feita muito mais para marcar claramente à sociedade brasileira quais são os compromissos, qual é o novo pacto de sustentação, quais são as novas alianças em bases programáticas para romper com esse presidencialismo, que hoje já virou de esculhambação, não é mais nem de coalizão.
Isso só será possível se formos capazes de compreender que quem for para a presidência tem que se entender como um governo de transição: defendo que se faça uma mudança para um mandato de 5 anos sem direito à reeleição, e que isso valha não para quem ganhar em 2022, mas para o próximo. Quem entrasse lá iria apenas fazer essa transição de quatro anos para firmar, do ponto de vista das instituições democráticas, das políticas sociais, das políticas ambientais, de uma nova base de sustentação no Congresso, onde nós teríamos aí sim uma espécie de presidencialismo de proposição, em que você faz os alinhamentos políticos em cima de grandes eixos estratégicos.
Nesta semana, o Psol aprovou a formação de uma federação partidária com a Rede. Os partidos se uniram por uma razão pragmática – a vencer as cláusulas de barreira – ou por afinidade de objetivos?
A federação com o Psol tem a ver com uma compreensão da democracia que eu acho muito saudável. É preciso um ecossistema diversificado no campo democrático. A Rede é um partido muito jovem, uma busca por inovação política, de estruturas, processos, linguagem e formulação de novos paradigmas para o que seria uma espécie de utopia sustentabilista. O Psol é um partido socialista com definições históricas, que reivindica o socialismo democrático, o ecossocialismo e assim por diante. Somos diferentes, mas se você olhar as votações da Joênia [Wapichana, única deputada da Rede na Câmara] na defesa do meio ambiente, dos povos indígenas e as votações [da bancada] do Psol na prática, temos uma ação muito compatível dentro do Congresso Nacional.
Não estamos fazendo uma fusão com o Psol, é uma federação – a Rede tem seu programa e o Psol tem o dele. A saída que encontramos foi não nos tratarmos como [partidos] complementares. Pelo menos da minha parte, tentei ajudar com a ideia da suplementariedade: na complementaridade, falta um pedaço de um e de outro, então eles se complementam. Não é disso que se trata. O Psol é um real diferente, a Rede é um real diferente. Somos singulares e as nossas singularidades vão se encontrar de forma suplementar em defesa da democracia, do meio ambiente, dos povos indígenas, da educação e de tantas agendas fundamentais que temos em comum.
Tem sido noticiado que a federação fechará apoio à candidatura de Lula, em vez de Ciro Gomes, de quem você está mais próxima e chegou a ser cotada como vice. Como você avalia essa questão?
Em relação à eleição de 2022, no plano majoritário, o caminho foi trazer aquilo que é também a cultura da Rede nesse encontro com o Psol. Como o Psol é o partido com maior peso decisório dentro da federação, pelo seu tamanho como bancada, expressão de votação em termos eleitorais e uma série de questões, terá 60% da direção da federação, e a Rede, 40%. Foi estabelecido que, oficialmente, a federação irá apoiar a candidatura que o Psol tem maioria para fazer, mas serão liberados aqueles que não concordarem.
Dentro da Rede, o caminho que se está seguindo é esse também. Temos o senador Randolfe que já antecipou sua posição de apoio ao presidente Lula, eu estou participando do debate interno com esse termo de referência – mais do que a gente declarar aos candidatos é fundamental que eles declarem o que estão apoiando e com que estão se comprometendo, e debater em termos dos compromissos, e falo isso no campo democrático. A senadora Heloísa Helena tem manifestado suas posições mais favoráveis à candidatura de Ciro Gomes, mas também ainda está fazendo o debate. De sorte, dentro da Rede, o que vai haver é uma liberação. Óbvio que Bolsonaro de jeito nenhum, do mesmo jeito que foi o segundo turno de 2018 – poderia votar em branco, nulo ou no Haddad, jamais Bolsonaro. Como eu disse, derrotá-lo é um ato de legítima defesa da civilização, da democracia, dos indígenas, da educação, de tudo que é constitutivo de avanços da dignidade humana.
Temos observado grupos evangélicos se articulando em torno das pautas ambiental e climática, a exemplo da coalizão Evangélicos pelo Clima e da iniciativa Fé no Clima, do ISER. Você acredita que as igrejas são um espaço importante para fazer com que essas discussões se aproximem das pessoas que mais sofrem os efeitos da crise climática? Por que isso não acontece ainda, a seu ver?
No mundo inteiro está acontecendo. Esse é um debate que tem que atravessar todas as pessoas, religiões e segmentos. Não são apenas os cristãos que precisam de terra fértil, água potável e ar puro, os ateus, umbandistas e muçulmanos também. Se o capitalista precisa, o trabalhador também; se o jovem precisa, o adulto e o idoso também. É nesse lugar em que todos nos encontramos para buscar as respostas e encontrar a saída ou para continuar aprofundando o Armagedom ambiental que está diante de nós. Os cristãos não estarem preocupados com a biodiversidade, mudanças climáticas, recursos hídricos e todas essas agendas é uma grande contradição, porque quem acredita que Deus criou todas as coisas não pode amar o criador e destruir a sua criação – é uma grande incoerência. Isso em si já é uma grande base para revisitar essa visão que, entendo eu, é equivocada em relação ao Gênesis 1:28. “Dominai a Terra e tudo que nela há”: as pessoas acham que é para destruir e acabar. Mas lá na frente, no Gênesis 2:15, está dito que Deus colocou o homem no jardim para cultivar e guardar – é um domínio cuidadoso. As pessoas pegam fragmentos de um sistema que tem coerência em termos teológicos e derivam para interesses muito particulares e imediatistas de destruir recursos de milhares ou bilhões de anos pelo lucro de poucas décadas. Isso eu entendo que tem que ser tratado nas empresas, igrejas, escolas, teatro, televisão – em todos os lugares. As agendas ambiental e climática são transversais, são a base da vida no planeta, da sobrevivência das espécies – e não só da nossa, obviamente.
Apesar da necessidade de que as agendas ambiental e climática sejam discutidas em todos os ambientes que você citou, no Brasil ainda são muito ideologizadas, encaradas como de esquerda, o que pode ser um problema nas comunidades evangélicas. Como mudar isso?
Existe um cuidado com a agenda ambiental que vem a partir da experiência. Algumas experiências são de contemplação e de aprazimento, mas existe aquele que vem da experiência dolorosa. Uma boa parte das pessoas se mobiliza pela experiência do contato, da beleza, de compreender a importância da natureza, e existem aqueles que aprendem a sua importância nos momentos em que ela se manifesta já na forma de fúria ou que recebe as consequências.
Esse aprendizado das pessoas está sendo muito rápido, o problema é que não temos os governos e a maioria das empresas à altura para, com base nessa sensibilidade, fazer as mudanças necessárias. As pesquisas dão conta de que 80% dos brasileiros acham que a Amazônia é um tema importante para a campanha de 2022, no entanto, a gente não o vê sendo tratado como deveria até agora nas candidaturas a presidente da República. Mais de 80% também acham que já estamos vivendo sob os efeitos das mudanças climáticas e que essa é uma questão importante. Ou seja, a gente tem uma grande sensibilidade, agora, transformar essa sensibilidade em efetividade tem a ver também com a determinação de empresas e governos em fazer o que precisa ser feito. Como diz a música do Gil, “o povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe”. O que o povo sabe e quer, ele cobra agora, o que o povo quer e não sabe, ele cobra lá no futuro. E cobrará de forma altamente legítima, com muita severidade.
Você cita um exemplo para isso?
Quando fui contra Belo Monte e reencaminhei para estudos, muita gente dizia que eu era a “ministra dos bagres” atrapalhando o desenvolvimento do Brasil, a política de energia etc. Hoje, quando a gente vê os maiores índices de violência, onde estão? Belo Monte. Baixíssima eficiência na produção de energia? Belo Monte. Altíssimos impactos ambientais negativos? Belo Monte. Ineficiência do ponto de vista econômico, porque nem viabilidade econômica teve? Belo Monte. As pessoas legitimamente cobram isso agora, mas nós já tínhamos condições de saber naquele momento, então caberia bancar, pagar o preço para não fazer. Acho que essas coisas nos ensinam, espero que ensinem em relação ao Tapajós, à transição energética, ao combate da violência para que nossa população preta, sobretudo os jovens, não seja todos os dias vitimada por uma guerra cuja única razão para ser alvo é ter a cor preta e ter vindo de uma ancestralidade que foi escravizada por um sistema perverso que avilta a dignidade humana.
Os evangélicos constituem base importante de apoio ao presidente Bolsonaro, tanto no Congresso quanto eleitoralmente. O que o governo trouxe efetivamente de benefícios aos eleitores evangélicos? Há algo que justifique repetir o voto este ano?
Temos que olhar para essa realidade não como se 2018 tivesse sido congelado, essa realidade já mudou. Um terço está com Bolsonaro; um terço, com Lula; e o outro terço, buscando novas alternativas. Ou seja, dois terços desse segmento já não estão com Bolsonaro. E por quê? Com certeza, em função das péssimas políticas para saúde e educação, em função do desemprego, do problema grave da corrupção nas vacinas e no MEC. Mas uma parte também está saindo porque é muita incoerência alguém dizer que é Deus acima de tudo e não se preocupar com a saúde das pessoas.
Quando Jesus diz “eu estava doente e tu foste me visitar”, assume para ele o lugar de quem recebe a visita de alguém que se importa com quem está doente, preso, passando fome ou não tem liberdade. Esse governo desdenha da saúde e da morte das pessoas, não se importa com a educação, com a liberdade. Quer liberdade maior do que o livre arbítrio, em que você é senhor absoluto das suas decisões, e que mesmo no sistema de crenças, de quem acredita que tem um Deus criador, você está livre para não escolher Deus? Liberdade é algo fundamental, e [temos] um governo que pisoteia a Constituição no quesito da liberdade. Até o discurso hipócrita do combate à corrupção [cai por terra]: os vendilhões do templo agora viraram os vendilhões do MEC. Os valores que estão no Evangelho não têm nada a ver com você ter dentro do Ministério da Educação pessoas que se dizem pastores trocando a liberação de recursos públicos, que deve obedecer aos princípios da constitucionalidade, probabilidade e impessoalidade, por propina de ouro. Isso é um vitupério. Não tem como generalizar, essa realidade já mudou.
Mas há também o apoio à suposta defesa de Bolsonaro à agenda dos costumes.
É preciso olhar para o seguinte: o Estado é laico e ninguém vai impor a fé para o conjunto da sociedade, mudando a Constituição ou por leis do Congresso. Se isso fosse possível, nem precisava Jesus ter ido para cruz. Quando as pessoas acham que farão todo mundo viver de acordo com aquilo que acreditam que deve ser imposto como os valores da fé cristã, é como se tivessem revogando o sacrifício de Jesus. Você foi para a cruz do calvário porque quis, bastaria dizer para o centrão que, a partir de agora, todo mundo vai viver assim e aprova esse negócio que está aí no Congresso. Não é assim, o Estado é laico e as políticas públicas são para todas as pessoas, para quem crê, para quem não crê, independente da cor, condição social, orientação sexual. Isso é política pública e Estado laico, grandes contribuições da reforma protestante. As pessoas não podem esquecer que a separação entre igreja e Estado é uma contribuição do legado protestante, que está na raiz dos evangélicos no mundo.
O quanto as pessoas, de fato, entendem isso? Se olharmos para o Congresso, por exemplo, há uma bancada evangélica bastante expressiva…
Esse legado da reforma protestante sobre o Estado laico precisa ser trabalhado nas igrejas. Para alguns é importante deixá-lo no esquecimento, porque aí se tem essa expectativa que fica muito feliz em ouvir do presidente da República que quem vai mandar no governo são os pastores evangélicos. Para alguns, é conveniente, para outros – que não são poucos, mas que não fazem, digamos, o embate do dia a dia; estão fazendo o trabalho em suas igrejas e comunidades, com impactos positivos nas vidas das pessoas – é muito ruim esse tipo de atitude. Obviamente, não dá também para olhar para esse conservadorismo, essa instrumentalização da fé pela política e da política pela fé, apenas atribuindo unilateralmente ao segmento evangélico. Qual é o lugar em que você fortalece a interlocução com o cidadão, sabendo que ele tem uma fé, uma visão de mundo? É não tendo também nenhum tipo de preconceito em relação a isso. Eu, por exemplo, sempre fui cristã: primeiro católica – quase fui freira – e sou evangélica desde 1996. Antes [disso], nunca fui acusada de ser uma pessoa fundamentalista.
O que foi que mudou na minha trajetória que passaram a dizer que era fundamentalista, que ia acabar com o Estado laico, com o Sírio de Nazaré, que era uma pessoa homofóbica? Isso é um dado de realidade ou foi a lógica do poder pelo poder, que coloca todo mundo no lugar que lhe interessa, mesmo que não tenha nenhum compromisso com a verdade? Dois terços [dos evangélicos] não estão com o Bolsonaro e não podem ser rotulados de estar fazendo essa instrumentalização. Aqueles que até porventura possam estar têm que ser olhados como pessoas que podem mudar de opinião, não se pode desistir disso, até porque é bíblico – o apóstolo Paulo diz “não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso entendimento”. Muda o entendimento, tem que mudar a ação.