O Brasil foi o penúltimo país do mundo a reconhecer a vitória de Joe Biden como presidente nos Estados Unidos em 2020. Além de ter dado declarações de apoio a Donald Trump, o então presidente Jair Bolsonaro não condenou a invasão violenta ao congresso americano em 6 de janeiro, reforçando a narrativa do aliado sobre fraude eleitoral nos EUA.
Novos documentos obtidos pela Agência Pública via Lei de Acesso à Informação revelam que o ex-presidente contrariou as informações que o governo vinha recebendo do embaixador brasileiro nos EUA, Nestor Forster.
Além de enviar despachos quase diariamente demonstrando como a estratégia de reverter o resultado eleitoral não vingava e tinha pouco fundamento, Nestor Forster descreveu a invasão do Capitólio em termos fortes.
Foster relatou em um despacho diplomático enviado em 7 de janeiro de 2021 que, “em ato sem precedentes na história moderna norte-americana, um grupo de manifestantes invadiu o Capitólio e forçou a suspensão temporária da sessão conjunta, mas falhou em sua intenção de impedir o exercício das funções constitucionais pelos parlamentares”. O embaixador relatou que o Congresso certificou a vitória do presidente Joe Biden e da vice Kamala Harris já na madrugada do dia seguinte à invasão. “mesmo após cenas chocantes de cerco e vandalismo do Capitólio”.
Segundo o despacho diplomático, “a turba de manifestantes teve pouca dificuldade em penetrar surpreendentemente frágil esquema de segurança articulado no entorno do Capitólio”. Relatou ainda que o vice-presidente, congressistas e jornalistas tiveram que ser evacuados às pressas.
“Pouco depois, arruaceiros já se encontravam na parte interna do edifício e invadiram os plenários das suas casas legislativas e escritórios dos parlamentares”, escreveu Nestor Forster. Naquela mesma tarde, o presidente americano, Donald Trump, dizia aos manifestantes: “nós amamos vocês”.
Forster, por sua vez, relatou no despacho que parte dos manifestantes, que já estavam na capital desde o dia anterior, tinham demonstrado “intenção de gerar tumulto e desarranjo à ordem institucional” ao entrar em confronto com a polícia. Forster ainda foi preciso ao relatar, no documento diplomático, que havia milhares de manifestantes reunidos em frente à Casa Branca quando o presidente Donald Trump “voltou a alegar que sua vitória eleitoral teria sido “roubada” pela esquerda radical” e apelou para o vice-presidente Mike Pence não reconhecer os certificados que atestam o resultado eleitoral nos Estados.
Trump “conclamou o grupo a dirigir-se então ao Capitólio, e a situação saiu do controle das autoridades policiais”, relatou Nestor Forster. A narrativa é condizente com a conclusão da CPI do Capitólio, que concluiu no ano passado que “as evidências levaram a uma conclusão absoluta e direta: a causa central de 6 de janeiro foi um homem, o ex-presidente Donald Trump, a quem muitos outros seguiram”.
Forster terminou seu despacho de maneira assertiva: “Toda a Guarda Nacional da cidade — bem como de outros estados – encontra-se mobilizada para evitar novos atos de violência ou iniciativa de subversão da ordem democrática. O presidente-eleito Joe Biden será empossado no dia 21/2, ao meio-dia”.
Porém, enquanto o principal representante diplomático brasileiro nos EUA criticava o ocorrido, Jair Bolsonaro apoiava a versão do seu aliado. Em entrevista na manhã do dia 7 de Janeiro, ele disse que o problema naquele país foi a “falta de confiança no voto”. E ainda espalhou fake news sobre as supostas fraudes eleitorais. “Então lá, o pessoal votou e potencializaram o voto pelos correios por causa da tal da pandemia e houve gente que votou três, quatro vezes, mortos votaram”, disse Bolsonaro.
O então presidente ainda ameaçou que o mesmo poderia ocorrer no Brasil. “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”. De fato, em 8 de janeiro de 2023, após uma intensa campanha de desinformação sobre fraudes inexistentes nas urnas brasileiras, apoiadores de Bolsonaro invadiram a Esplanada pedindo um golpe de Estado.
Embaixador enviou avisos repetidos sobre campanha de Trump contra as eleições
Os telegramas obtidos pela Pública demonstram que o embaixador brasileiro acompanhou e enviou informes detalhados sobre os principais desdobramentos da campanha de reversão do resultado eleitoral capitaneado por Donald Trump a partir das eleições de 2020. Forster avisou algumas vezes, entretanto, que os advogados de Trump não conseguiram comprovar fraudes que pudessem de fato reverter o resultado da eleição.
Em um despacho diplomático em 6/11 ele repete relatos sobre tráfico de cédulas eleitorais, restrição de acesso de observadores a locais de contagem de votos e cédulas supostamente preenchidas de modo indevido por mesários, mas conclui: “Todas, no entanto, parecem ter escopo demasiadamente reduzido, até o momento, pata alterar o curso dos resultados”. “Caberá observar denuncias adicionais que serão levadas às cortes pela campanha do presidente”.
Em 10 de novembro, Nestor Forster noticiou que “o grande volume de denúncias a respeito de irregularidades nas eleições circulado nas redes sociais ainda não se materializaram em iniciativas jurídicas de alto impacto”. Diz ele: “Não houve, até o momento, ações judiciais com potencial para alterar o resultado em qualquer dos estados mais disputados”.
Forster, observador arguto, explicou ainda ao governo brasileiro que a estratégia adotada pela campanha de Trump não era “promover a anulação dos votos em número e em estados suficientes” para reverter o resultado através da Justiça.
Segundo ele, o foco das ações eram“evitar ou atrasar a certificação de resultados eleitorais pelos governos estaduais (…) a fim de prolongar o processo eleitoral e, possivelmente, buscar abrir algum espaço de legitimidade para ações adicionais de natureza política (como por exemplo, a aprovação de resultados eleitorais alternativos pelos legislativos estaduais)”, escreveu.
No dia primeiro de dezembro, Nestor enviou um despacho reproduzindo a fala do procurador-geral William Barr, afirmando que “até o momento, nós não encontramos fraude em uma escala que pudesse ter produzido um resultado diferente na eleição”.
Mesmo assim, o Brasil levaria mais duas semanas para reconhecer a derrota de Donald Trump, o que só foi feito em 15 de dezembro daquele ano, poucas horas depois de Vladimir Putin, presidente da Rússia, e antes de Kim Jong-il, da Coreia do Norte. Antes disso, Bolsonaro havia dito à imprensa que preferia esperar porque tinha “fontes próprias” que garantiam que “realmente havia muita fraude ali”.