Uma área maior que o município do Rio de Janeiro (RJ) deixou de ser derrubada na Amazônia Legal no primeiro semestre de 2023 em comparação com o mesmo período do ano passado. A redução de 33,6% só não foi maior porque um dos estados que concentra o desmatamento no bioma teve um aumento da área derrubada. De acordo com dados do sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Mato Grosso registrou 905,3 km² de corte raso, alta de 7,1% ante os seis primeiros meses de 2022.
O Estado foi o mais desmatado da região – o que não ocorria desde 2017 – e respondeu por 34,1% da perda florestal na Amazônia Legal em 2023. A área equivale a 573 Parques do Ibirapuera.
Como reflexo da retomada da política ambiental capitaneada pela ministra Marina Silva, Amazonas, Pará e Rondônia tiveram quedas significativas na área desmatada – 55,2%, 32,7% e 55,9%, respectivamente, na comparação entre o primeiro semestre deste ano e do ano passado. Foram os três estados quem puxaram a redução do número. Das nove unidades da federação que compõem a Amazônia Legal, somente três tiveram aumento na comparação entre os períodos. Além do Mato Grosso, Roraima e Amapá viram o desmatamento crescer, 49,7% e 7.462%, respectivamente. A área desmatada nos dois estados, porém, representa apenas 4,6% e 0,2% do total da região.
O desmatamento no Mato Grosso em 2023 foi puxado pelo município de Feliz Natal, localizado na região do Parque Indígena do Xingu, a 530 km de Cuiabá. O Deter/Inpe captou 175,4 km² de corte raso no município – 19,3% do total derrubado no Mato Grosso. É o equivalente a uma Aracaju (SE) derrubada. O município foi o mais desmatado de todo o bioma. Os números de Feliz Natal também chamam a atenção quando comparados com o mesmo período de 2022: houve um aumento de mais de 627% na área desmatada.
Além de Feliz Natal, os municípios mais desmatados na Amazônia Legal no Mato Grosso em 2023 foram Colniza (58,4 km²), Juara (52,7 km²), Porto dos Gaúchos (50,3 km²) e Aripuanã (49,4 km²).
O movimento do Mato Grosso na contramão do que está ocorrendo na região vem chamando a atenção. Segundo a diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Ane Alencar, que está analisando a situação, o crescimento do desmatamento tem se dado em duas regiões: no noroeste e no centro do estado. “Na região mais noroeste, em Colniza, Aripuanã, tem um avanço da pecuária. É uma região do estado que ainda está muito florestada, comparada com as outras, então há um um processo mesmo de expansão”, explica. “Já no meio do Estado, onde ficam Peixoto de Azevedo e Feliz Natal, que são áreas de uma fronteira já antiga, é onde os grãos estão se expandindo”.
Aumento da legalidade explica crescimento do desmatamento no MT
Uma possível explicação para o aumento é que o estado tem concedido muitas licenças de supressão de vegetação. Dados da plataforma MapBiomas analisados pela Agência Pública revelam que houve um aumento do número de autorizações de desmatamento concedidas pela Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso (Sema/MT) no início de 2023. Entre janeiro e abril – período para o qual há dados disponíveis –, a porcentagem de área desmatada com autorização passou de 12,5% do total em 2022 para 41% em 2023. Em Feliz Natal, a mais desmatada, quase 97% da área derrubada até abril tinha autorização.
O aumento do número de licenças no estado segue a mesma tendência vista no Cerrado, onde “desmatar legalmente passou a ser fácil”, como afirmou o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, em entrevista à Pública. Na direção oposta da Amazônia Legal, o Cerrado registrou aumento de 21,1% nos números de desmatamento no 1º semestre. Foram desmatados 4.407,7 km² no bioma até 30 de junho, segundo os dados do Deter/Inpe. Somando os índices de Cerrado e Amazônia, foram desmatados 7.056,5 km² entre janeiro e junho, 7,4% a menos do que no mesmo período do ano anterior, quando a soma foi de 7.625,5 km².
A mudança no perfil do desmatamento no estado foi captada pelos técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no Mato Grosso, de acordo com a superintendente estadual do órgão, Cibele Ribeiro. “Nós estamos tratando esses dados com toda cautela para que não haja nenhum tipo de furo e a gente identifique se realmente são desmatamentos legais ou se tem alguma burla”, aponta.
Segundo Ribeiro, não é incomum que produtores fracionem suas propriedades para escapar do processo de licenciamento de áreas maiores, que é mais demorado e envolve estudo de impacto ambiental. O aumento do desmatamento no estado “acendeu o alerta” do Ibama, que pretende começar incursões nas regiões mais desmatadas nas próximas semanas, depois de análises do setor de georreferenciamento.
O secretário adjunto executivo da Sema/MT, Alex Marega, afirmou que o aumento da legalidade do desmatamento no estado é reflexo da agilidade da secretária na análise do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e no combate ao desmatamento ilegal. “O Mato Grosso é o único estado que tem mais de dez mil CARs validados. Isso faz com que as propriedades rurais que tenham excedente de reserva legal possam fazer o desmatamento autorizado, segundo a nossa legislação. O desmatamento ilegal diminuiu, mas como aumentou o autorizado, o número absoluto realmente acaba aumentando”, disse. Segundo levantamento feito pela própria secretaria, a legalidade foi de cerca de 50% no primeiro trimestre do ano.
“Nos últimos dois anos, 2021 e 2022, nós aplicamos mais de R$ 2 bilhões por ano de multas. Então o dono da terra começa a fazer cálculo e vê que não vale mais a pena desmatar ilegalmente. Por isso tem essa migração do ilegal para o legal”, aponta o secretário executivo.
Pelo Código Florestal, as propriedades localizadas no bioma Amazônia dentro do Mato Grosso podem desmatar 20% da área, devendo manter os outros 80%. Há propostas de parlamentares do estado para tirar o Mato Grosso da Amazônia Legal, o que permitiria desmatamentos de 80% da área. Segundo Marega, para poder realizar o desmatamento de maneira legal, além de CAR regularizado, é necessário que o produtor apresente um plano de autorização florestal, destinando a madeira que será derrubada.
O aumento brusco na porcentagem de desmatamento legal, porém, também chamou a atenção de pesquisadores.
“O ICV [Instituto Centro de Vida, que atua no MT há mais de 30 anos] faz análises de legalidade do desmatamento com base no Prodes [também do Inpe] há alguns anos. Essa porcentagem de legalidade tem aumentado, mas em percentuais muito pequenos. Antes era 95% de ilegalidade; na última análise que a gente fez, do Prodes 2022, estava em 89%. Cair para 50% é bastante, né?”, questiona a coordenadora do Programa de Transparência Ambiental do ICV, Ana Paula Valdiones.
Para ela, o ponto central é que o desmatamento como um todo precisa ser combatido. “Com certeza combater as práticas ilegais é uma agenda que tem que estar no centro das atenções dos órgãos ambientais do estado e do governo federal. Mas também que haver incentivos e fomentos a outras atividades que garantam a manutenção da floresta de pé, que não leve nem ao desmatamento ilegal e nem ao autorizado. Nós estamos chegando em um ponto de inflexão da Amazônia”, aponta.
A meta do governo federal de zerar o desmatamento até 2030 envolve combater o ilegal, mas também trazer incentivos para evitar também o legal, restando somente os cortes inevitáveis, que também terão de ser compensados com replantio. Em termos de emissão de gases de efeito estufa, tanto faz se o desmatamento é legal ou ilegal. O CO2 continua indo para a atmosfera, aquecendo o planeta, por isso o objetivo é evitá-lo ao máximo.
Na visão do secretário executivo Alex Marega, a redução do desmatamento como um todo passa pela regulação do mercado de carbono. “Se o governo federal assumir esse papel de criar os caminhos, os meios de financiamento [para o mercado] da venda de redução de emissões, pode surgir uma oportunidade de dar ao produtor rural a escolha entre desmatar e não desmatar. É um caminho viável, mas que depende de uma segurança jurídica. Tem que haver uma regulamentação forte e está caminhando para isso”, afirma.
Mato Grosso também lidera ranking de fogo e degradação
Além de ser o estado da Amazônia Legal que mais desmatou em 2023, o Mato Grosso também carrega o “título” de recordista da degradação e de focos de queimadas na região entre janeiro e 23 de junho deste ano. Ainda não há dados referentes à última semana do mês.
No quesito degradação, também monitorado pelo Deter/Inpe, o Mato Grosso concentrou 66% dos 1.645,2 km² degradados na Amazônia Legal no período, com um total de 1.086,9 km², uma área maior do que o município de Belém (PA). O estado é seguido por Pará (370,3 km²), Roraima (82,52 km²) e Amazonas (67,34 km²). O índice representa um aumento de 98,4% em relação ao mesmo período do ano anterior. Em 2022, o Mato Grosso foi responsável por 54% da área degradada na Amazônia no primeiro semestre. Vale destacar que os números de degradação costumam ser maiores na segunda metade do ano, em que se concentra a temporada de fogo.
Áreas degradadas são aquelas em que há o enfraquecimento da floresta por meio da extração madeireira, queimadas e o do chamado efeito de borda (em que a floresta que resta em pé ao lado de uma região que foi desmatada vai ficando mais seca). Esse processo acaba precedendo o próprio desmatamento, que costuma ocorrer nos anos seguintes.
Durante coletiva do Ministério do Meio Ambiente (MMA) nesta quinta-feira, 6, quando os dados do semestre foram divulgados, o secretário Extraordinário de Controle de Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do MMA, André Lima, foi questionado sobre a situação do Mato Grosso. Na resposta, ele destacou a relação entre degradação e desmatamento. “Vamos aprofundar análise conjunta com o estado para ver o que está acontecendo lá. Inclusive nós vamos mudar os critérios de municípios críticos para incorporar degradação florestal. Tem tido um processo muito rápido de degradação no MT, que depois acaba convertendo em desmatamento muito rapidamente. Então estamos estudando isso e a ideia é articular junto com o estado medidas mais fortes, como o cancelamento de CAR.”
Em relação aos focos de incêndio, o Programa Queimadas/Inpe, detectou 4.569 focos no Mato Grosso na primeira metade do ano, considerando apenas o bioma Amazônia. O número representa quase 55% do total detectado na região (8.344). Depois de Mato Grosso, Pará e Roraima aparecem na sequência, com 1.482 (18%) e 1.261 (15%) focos, respectivamente. Apesar de seguir na liderança, o estado teve um pequeno decréscimo em comparação ao mesmo período do ano anterior, quando foram registrados 4.702 focos, o equivalente a 62,5% do total no bioma. A queda foi de cerca de 3%.
O município com maior número de focos de queimadas na Amazônia nesse período foi Nova Maringá (MT), com 484, seguido por Feliz Natal (422) e Querência (312). Dos 15 municípios com mais focos de incêndio no bioma, 12 são mato-grossenses.
Operação contra desmatamento atingiu cúpula de Feliz Natal
A cidade líder do desmatamento no Mato Grosso e na Amazônia Legal em 2023 tem como mandatários dois políticos acusados de crimes ambientais. Em 16 de maio deste ano, a Polícia Civil deflagrou a ‘Operação Ronuro’, cumprindo 22 mandados de busca e apreensão contra um grupo criminoso com atuação na extração de madeira e no desmatamento ilegal no Mato Grosso. Entre os alvos, estavam as madeireiras do prefeito de Feliz Natal, José Antônio Dubiella (MDB), e do vice-prefeito, Antônio Alves da Costa (PDT).
A Polícia Civil cumpriu 22 mandados de busca e apreensão contra o grupo. As investigações se devem a crimes ambientais cometidos na Estação Ecológica Rio Ronuro, localizada em Nova Ubiratã, município vizinho de Feliz Natal.
De acordo com dados da plataforma CruzaGrafos, da Abraji e do Brasil.IO, Dubiella é sócio da Madeireira Vinícius, com sede no município que ele governa. O prefeito de Feliz Natal e sua empresa acumulam R$ 3,6 milhões em multas aplicadas pelo Ibama. Ao todo, foram 14 infrações, sendo a mais alta de R$ 1,34 milhão, de julho de 2015. Eleito com 53% dos votos no município que tem cerca de 13 mil habitantes, Dubiella declarou R$ 12,3 milhões de patrimônio à Justiça Eleitoral. A maior parte do montante deve-se à Fazenda Chaparral, em Nova Ubiratã. Segundo dados da Sema/MT, ele recebeu duas autorizações de desmatamento legal, em um total de 1.369 hectares. A fazenda do político tem uma das maiores autorizações de desmatamento do estado nos últimos anos.
Já o vice-prefeito é sócio da Madeireira Jatobá, também sediada em Feliz Natal. A empresa de Alves da Costa foi multada em R$ 2,5 mil por uma infração ambiental cometida em 2017. Além da madeireira, o político também é sócio de uma loja de materiais de construção. Ele declarou R$ 540 mil à Justiça Eleitoral.