BELÉM – Foram quatro anos sem espaço de diálogo com o governo federal. E três dias para liberar o grito e a demanda reprimidos. Entre sexta-feira (4) e domingo (6), representantes de centenas de organizações da sociedade civil se reuniram em Belém (PA) para participar dos Diálogos Amazônicos, evento que precede a Cúpula da Amazônia e que teve como objetivo consolidar as propostas dos movimentos sociais para a região.
Em oito plenárias oficiais e mais de 400 eventos paralelos, em clima de protesto festivo, foi discutido de tudo: da proteção dos territórios à segurança alimentar, passando por saúde, sociobioeconomia, novos modelos de desenvolvimento, além, claro, de garantia dos direitos indígenas. Mas entre a profusão de demandas, duas se consolidaram como prioridades: o desmatamento zero e o fim da exploração de petróleo na Amazônia. `
São sobretudo esses os compromissos mínimos que as organizações gostariam de ver assumidos pelos líderes dos oito países membros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) durante a Cúpula da Amazônia, que ocorre nesta terça e quarta-feira, a fim de conter a destruição da floresta e, ao mesmo tempo, evitar a piora do aquecimento global.
Enquanto a conservação da floresta deve ser contemplada em algum grau pela Declaração de Belém, a ser adotada por Brasil e demais países da Pan-Amazônia, a demanda pela eliminação do combustível fóssil não só deve ficar fora do documento como o texto deve trazer um tom mais tolerante em relação a exploração de petróleo e de minérios.
A expectativa é de que a cúpula termine com o objetivo genérico de todos os países da região atuarem conjuntamente para evitar que a Amazônia atinja o chamado ponto de não retorno – conceito estimado por cientistas que prevê que, a partir de um determinado nível de desmatamento e degradação, a floresta se tornará tão empobrecida que acabará perdendo as suas principais características ecológica.
Hoje se estima que isso pode ser alcançado para a região como um todo se houver uma perda entre 20% a 25% da floresta. Mas pesquisas apontam que, localmente, este limite já pode estar sendo ultrapassado nas regiões mais afetadas pelo desmatamento. É o caso do sudeste da Amazônia, onde a temperatura média subiu, as chuvas diminuíram e a floresta já emite mais gás carbônico do que absorve.
Só que para evitar o ponto de não retorno, ressaltam os cientistas, além de parar o desmatamento, é preciso também evitar o pior das mudanças climáticas. Um aquecimento de 2ºC da temperatura média do planeta, aliado ao desmatamento, tende a acelerar esse processo. Quanto mais quente, mais vulnerável a secas e queimadas se torna a floresta, o que pode transformá-la de modo irreversível.
“O problema é que, com as mudanças climáticas, a gente está basicamente tratando do fim do mundo como o conhecemos hoje. E do ponto de vista do Brasil, que quer assumir uma liderança internacional, é preciso resolver o desmatamento, claro, que é a nossa principal contribuição para o aquecimento global”, diz o ambientalista Caetano Scannavino. “Mas o mundo está queimando, e se a gente continuar assim, queimando mais petróleo, vai sair mais caro até do que a receita que viria desse petróleo, incluindo aí a exploração da Foz do Amazonas”, complementou.
Scannavino faz parte da coordenação do Observatório do Clima e é um dos representantes do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais na Comissão Executiva da cúpula, formada por membros do governo e da sociedade civil.
“Não é conciliável exploração de petróleo na Amazônia com qualquer proposta efetiva de desenvolvimento sustentável, de defesa dos territórios e de combate às mudanças climáticas”, concordou o ativista João Pedro Galvão Ramalho, do Foro Social Pan-Amazônico (FOSPA), que também compõe a comissão executiva da cúpula.
A proposta de abandono da exploração de petróleo na Amazônia chegou a ser debatida no âmbito da cúpula pelos governos. A bandeira foi levantada pelo presidente da Colômbia Gustavo Petro durante o encontro preparatório para a Cúpula da Amazônia realizado em julho na cidade colombiana de Letícia. Em pronunciamento naquela ocasião, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não se posicionou sobre o tema.
O assunto entrou em evidência no Brasil devido aos planos da Petrobras de perfurar poços na bacia sedimentar da Foz do Amazonas, entre o litoral do Amapá e do Pará. Um dos pedidos de licenciamento da estatal foi negado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em maio, o que inaugurou uma crise interna no governo Lula.
De um lado, o ministro de Minas e Energia, Alexandre da Silveira, o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, e parlamentares federais da bancada do Amapá, como o senador e líder do governo no Congresso Nacional, Randolfe Rodrigues (Sem partido), se posicionam publicamente a favor da atividade. Do outro, a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, ao qual o Ibama é vinculado, tenta segurar a pressão, alegando que a decisão da autarquia é técnica e não sofrerá influência política.
Em entrevista a rádios amazônicas na última semana, Lula disse que o estado do Amapá pode “continuar sonhando” com o petróleo e que a “Petrobras tem o direito de corrigir falhas no projeto” de licenciamento apontadas na negativa do Ibama.
Marina tem buscado não questionar abertamente a ausência de uma posição sobre o tema na declaração de Belém, mas em suas participações nos Diálogos Amazônicos também não se eximiu de dizer que se o mundo continuar queimando combustíveis fósseis, a crise climática vai se agravar e colocar a Amazônia em risco. “Sabemos produzir energia limpa, por que insistir em energia fóssil?”, comentou na manhã deste domingo (6).
Apesar de se tratar de um evento ligado à diplomacia regional da América do Sul, a Cúpula da Amazônia está sendo vista como um pontapé inicial para a Conferência do Clima da ONU (COP30), prevista para ser realizada também em Belém em 2025. Para Scannavino, este processo deveria ser encarado como uma oportunidade para ditar uma nova postura em relação aos combustíveis fósseis – maior fonte de emissões de gases de efeito estufa em todo o mundo.
A COP vai marcar os 10 anos do Acordo de Paris e será um momento decisivo de acerto de contas. De checar quanto os esforços que os países estão fazendo para reduzir suas emissões estão ou não sendo suficientes para conter o aquecimento global. Antes da conferência do clima, o país também vai presidir a reunião do G-20, em 2024.
“São dois anos para a gente decidir o século, se vamos conseguir alcançar as metas e evitar o pior. Se o Lula de repente toma a decisão de manter o petróleo embaixo da terra, além de trabalhar forte para chegar no desmatamento zero, o país passa a ter um cacife gigantesco para cobrar dos demais nações. E quem sabe aí a gente vai ter a esperança de manter o planeta em uma temperatura menos perigosa”, defende Scannavino.
“A gente nem está falando de o país parar de explorar petróleo. A gente está falando de parar de abrir novas frentes de petróleo. E a margem equatorial é a maior frente de petróleo a ser aberta no planeta. Isso vai sair muito mais caro para o Brasil e para o povo da Amazônia. Porque se a gente caminhar nesse sentido, vai ser um caminho para o ponto de não retorno da Amazônia”, diz.
“E sem as chuvas produzidas na Amazônia, o agronegócio brasileiro será inviabilizado, assim como a geração de energia hidrelétrica. Vai nos levar à pobreza. Agora, se tivermos um estadista que coloque na mesa essa questão, ele poderá cobrar mais recursos dos países do Hemisfério Norte para compensar os países do Sul por abrirem mão desses recursos. Esse estadista vai liderar a justiça climática”, complementa.
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O discurso oficial do governo federal é de que as demandas trazidas pelos Diálogos Amazônicos serão recebidas e analisadas pelos oito chefes de Estado. Pelo menos em teoria, a sociedade civil teria a possibilidade de influenciar a tomada de decisão.
“A gente costuma dizer que temos um lema: nada sobre a Amazônia sem os amazônidas. Por isso, o processo preparatório [para a cúpula] foi bastante amplo e complexo. Procuramos acomodar, ouvir e incluir os mais diferentes atores e grupos com interesses na Amazônia”, disse a embaixadora Gisela Maria Figueiredo Padovan em entrevista a jornalistas na semana passada em Brasília, às vésperas dos eventos em Belém. Secretária da América Latina e Caribe do Itamaraty, ela foi uma das responsáveis, no órgão, pela organização da Cúpula da Amazônia.
Capitaneados pela Secretaria-Geral da Presidência da República, os esforços para a construção dessa ponte com a sociedade civil incluíram a criação de cinco grandes eixos temáticos, cujos trabalhos foram concluídos em plenárias durante os três dias de evento. Aconteceram ainda outras três plenárias com temas considerados transversais a todas as outras: juventude, raça e gênero.
Cada um dos cinco grupos principais tinha sob seu escopo vários temas de alguma forma correlatos, mas ainda assim, diversos. Um deles, por exemplo, concentrava discussões sobre “participação e proteção” dos territórios, ativistas, sociedade civil e povos das florestas e das águas no desenvolvimento sustentável da Amazônia, além da erradicação do trabalho escravo.
Tânia Maria de Oliveira, secretária executiva adjunta da Secretaria-Geral da Presidência, explicou à Agência Pública que os cinco eixos são “grandes guarda-chuvas”. Ela atribui a abundância de assuntos à necessidade de participação social após quatro anos de governo Jair Bolsonaro (PL), que desmontou os canais de consulta popular para a construção de políticas públicas, sobretudo por meio da extinção de conselhos e comitês nacionais.
Isso se refletiu no público que compareceu aos três dias de evento: a Secretaria-Geral da Presidência estima que cerca de 24 mil pessoas participaram dos Diálogos Amazônicos, quando a expectativa inicial era de 10 mil pessoas. “Não tem nada que explique isso, além da demanda reprimida de discussão. As pessoas querem discutir, debater as políticas públicas, e essa possibilidade estava fechada [nos últimos anos]”, analisa Oliveira.
No entanto, enquanto ocorriam os Diálogos Amazônicos, o texto da Declaração de Belém já estava praticamente fechado. O documento foi elaborado durante os meses anteriores pelo governo brasileiro em consulta aos ministérios e submetido aos demais países membros da OTCA. Ele deve ser adotado pelos presidentes no final da terça-feira (8), o primeiro dia da cúpula.
Na manhã do mesmo dia, há a previsão de que os representantes de cada um dos cinco eixos temáticos e de uma das plenárias transversais – a que debateu racismo ambiental na Amazônia – façam um pronunciamento de cerca de 3 minutos aos presidentes e entreguem a eles os relatórios síntese de cada grupo. As organizações avaliam, no entanto, que provavelmente não haverá tempo para que as demandas contidas nos documentos sejam incorporadas à declaração da cúpula.
“Tivemos um espaço legal de participação social, um espaço amplo, acesso aos tomadores de decisão, aos ministros. Mas, ao mesmo tempo, foi aquém do que poderia. Seria importante também estarmos nas negociações da agenda oficial, que é o que, de fato, é canetado, é pactuado. Mas a cúpula começa no dia 8 basicamente com a carta pronta”, critica Caetano Scannavino.
Embora haja certa frustração com esse aspecto, os representantes da sociedade civil ouvidos pela Pública encaram a Cúpula da Amazônia como o primeiro passo de um processo de influência política que culminará na realização da COP em Belém, no fim de 2025.
“Claro que se as nossas demandas não entrarem na declaração da cúpula, isso pode gerar uma insatisfação entre os participantes, principalmente se não houver nenhuma menção a petróleo e mineração”, aponta João Pedro Ramalho, da FOSPA. “Mas o nosso movimento perde força se a gente achar que a ideia era só incidir sobre essa cúpula. Queremos continuar incidindo até a COP30. Esperemos que até lá os governos continuem dialogando sobre esses temas.”
Nesse sentido, os povos indígenas já anunciaram um grupo de trabalho formado por organizações nacionais e regionais dos nove países amazônicos. O objetivo da iniciativa, liderada pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e pela Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coica), é influenciar nos processos de negociação internacional desde a cúpula até a COP em Belém.