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As investigações da Polícia Federal (PF) sobre a conspiração golpista no coração do governo de Jair Bolsonaro resvalaram em uma unidade militar de nome peculiar, o 1º (e único) Batalhão de Operações Psicológicas do Exército. Sediado em Goiânia (GO), o batalhão era comandado até a semana passada pelo tenente-coronel Guilherme Marques Almeida. Ele foi nomeado ao cargo dois meses antes da deflagração da operação da PF, o que demonstra mais uma vez o completo desinteresse das Forças Armadas em limar dos cargos de comando os militares embrenhados na política da extrema direita.
De acordo com o inquérito da PF referido na decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, Almeida trocou mensagens com o então auxiliar de Bolsonaro, o também tenente-coronel Mauro Cid.
Almeida teria afirmado – eu uso “teria” porque não tive acesso à íntegra das conversas e me baseio no que diz Moraes na sua decisão, portanto não é possível a verificação jornalística do material – que “acabou para o Lula!”. Ele também teria comemorado “a criação e organização de um site que contemplaria todo o material fraudulento, hospedado em Portugal, afirmando ‘nosso time é bom demais’”.
O “material fraudulento” referido por Moraes é uma live com uma série de fake news divulgada por um empresário argentino que apresentou “notícias fraudulentas sobre uma suposta investigação sobre as eleições brasileiras”.
No último dia 8, a casa de Almeida, em Goiânia, foi alvo de um mandado de busca e apreensão. O Exército o exonerou do cargo dias depois – claro que ele continua nas fileiras do órgão.
O papel protagonista de Almeida no tema das operações psicológicas no Exército, a ponto de torná-lo comandante do batalhão, recomenda atenção. O currículo de Almeida diz que ele foi instrutor na Escola de Operações Psicológicas do Exército Peruano de 2020 a 2022. Isso indica que sua proximidade com o tema não começou em 2024 e vem, pelo menos, desde o governo Bolsonaro.
É importante lembrar que o batalhão está subordinado ao Comando de Operações Terrestres (Coter). Conforme a Agência Pública explicou há duas semanas, a PF aponta também o envolvimento na conspiração golpista do ex-comandante do Coter até novembro passado, o general Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira.
A PF diz em seu relatório que Estevam “teria consentido com a adesão ao golpe” e seria o “responsável operacional pelo emprego da tropa caso a medida de intervenção [militar] se concretizasse” – o Coter reúne “o maior contingente de tropas do Exército”.
[A sociedade civil hoje nada sabe sobre as ações ou “operações” específicas e outras atividades concretas executadas pelo Batalhão de Operações Psicológicas. Tudo é recoberto convenientemente pelo segredo. A falta de transparência levanta muitas dúvidas.]
É possível compreender uma operação psicológica no contexto de uma guerra. Pode ser usada, por exemplo, para elevar o moral da tropa ou enfraquecer o exército inimigo. Mas, em tempos de paz, qual a sua necessidade? Pode o Exército, sem nenhuma explicação pública, usar seu próprio povo como alvo de operações psicológicas?
Para compreender o batalhão, o que temos à disposição são informações genéricas ou incompletas e linhas gerais da sua natureza. Sabe-se que foi criado pelo Exército em 2005, no governo Lula I, mas planejado desde 1999, no governo FHC II, e antecedido por um destacamento, em janeiro de 2002. O Brasil se baseou em experiências de outros países, como Inglaterra, Colômbia, Peru e Estados Unidos.
De acordo com o trabalho de conclusão de curso realizado em 2021 pelo coronel Fábio Martins da Silveira e submetido à Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) a fim de obtenção de título de especialista em ciências militares, o batalhão de Goiânia “participou efetivamente por [sic] diversas operações reais e exercícios de adestramentos que permitiram a atualização de manuais e consolidação de uma doutrina militar de emprego”.
Segundo o estudo do coronel, de 33 páginas, o Coter “realiza o planejamento, a execução e a condução do emprego das Operações Psicológicas (Op Psc) em um contexto de Defesa Externa ou de Garantia da Lei e da Ordem”.
O coronel fala com conhecimento de causa porque integrou o batalhão de 2006 a 2011, passou por um curso de operações de informação realizado pelas Forças Armadas do Equador e foi oficial de operações psicológicas da Força de Paz no Haiti e instrutor do tema no Peru.
O que são, no entender do Exército, as “operações psicológicas”? O coronel cita, no seu estudo, uma “diretriz organizadora” de um “Sistema de Operações Psicológicas do Estado-Maior do Exército”, datada de 2005, que conceitua tais operações como “procedimentos técnico-especializados, operacionalizados de forma sistemática, para apoiar a conquista de objetivos políticos e/ou militares e desenvolvidos antes, durante e após o emprego da Força, visando motivar públicos-alvo amigos, neutros e hostis a atingir comportamentos desejáveis”.
O estudo diz ainda que “assim como em outros países, a integração de sistemas como a Inteligência, a Comunicação Social e a Guerra Eletrônica são essenciais para o resultado das Campanhas de Operações Psicológicas”.
O coronel cita ainda um “manual Doutrina de Operações Conjuntas” publicado pelo Ministério da Defesa em 2020, que “definiu o conceito de Operações de Informação (Op Info)”. Diz o texto transcrito da Defesa: “As Op Info são planejadas e conduzidas nos Níveis Estratégico, Operacional e Tático em situações de guerra e de não guerra. No Nível Estratégico, as Op Info são concebidas sob o enquadramento de ações estratégicas, as quais são orientadas por condicionantes e diretrizes políticas. Essas ações podem decorrer de exigências ou oportunidades relacionadas aos ambientes interno e externo ao País”.
As campanhas de “operações psicológicas” são executadas por meio das seguintes atividades: “estudo de situação continuado”, “execução de ações de influenciação psicológica”, “confecção e disseminação de produtos”, execução e avaliação de campanhas e “emprego das Equipes Táticas de Operações Psicológicas”.
Um “Grupo Tático” é formado por três “Equipes Táticas”, que por sua vez são compostas, cada uma delas, por três “Turmas Táticas”, tudo “sob controle operacional do escalão apoiado”. “O comandante de uma Equipe Tática é um capitão”, diz o estudo. Para atuar no batalhão, o militar precisa passar por dois cursos de formação, que duram 17 e 18 semanas.
[Não vamos perder de vista as expressões usadas pelos militares: operações reais, objetivos políticos, comportamentos desejáveis, ambiente interno, diretrizes políticas. É um vocabulário perturbador. Quem define o que é um comportamento desejável? As diretrizes políticas podem incluir, por exemplo, levantar dúvidas sobre o processo eleitoral, se isso é perseguido como um objetivo político?]
Quais foram os “produtos” já disseminados pelo Exército ao longo dos últimos anos, inclusive no ambiente digital? Onde e como foram disseminados? Quais foram as operações reais?
O coronel cita de passagem, sem detalhamento, “ensinamentos colhidos” em três operações realizadas há quase 20 anos, em 2004: Timó II, Jauru II e Ajuricaba III, em regiões de fronteira no Norte do país, em Mato Grosso e Rondônia. Cita ainda atuação “em grandes eventos, como os Jogos Pan-Americanos (2007), a Operação Arcanjo (2010), a Copa do Mundo (2014), Jogos Olímpicos (2018) [sic] etc”. Não se sabe como ocorreram, em todos os casos citados, as tais “operações psicológicas”.
Uma segunda monografia sobre o assunto também foi feita por um militar em 2021, com 45 páginas. O uso estratégico das operações psicológicas para o desenvolvimento nacional, do coronel Romar Lira Gonzales Bastos, foi apresentada à Escola Superior de Guerra (ESG) para obtenção do diploma do curso de Altos Estudos de Política e Estratégia.
Citando estudiosos sobre o assunto, Bastos aponta que “a operação psicológica trabalha com a administração da percepção, tendo como base as mais diversas teorias do controle da mente”. “Ou seja, trata-se do chamado ‘poder das ideias’, entendido como a capacidade de persuadir ou manipular a mente humana.”
Bastos, que já foi comandante do batalhão de infantaria em Lins (SP), diz no seu trabalho que as operações psicológicas “facilitam a conquista de objetivos políticos” e que “podem ser utilizadas para auxiliar o Ministério da Defesa na busca por maiores investimentos e, por consequência, favorecer o desenvolvimento nacional”. Ele reitera “a importância de aumentar o orçamento das Forças Armadas”.
“Durante o trabalho ficou claro que as Op Psc podem ajudar o Ministério da Defesa a conseguir o incremento de recursos para a defesa do país. Essa ‘ajuda’ pode ocorrer, principalmente, através de Campanhas de Operações Psicológicas, visando o reconhecimento da nação e das autoridades competentes, do trabalho das Forças Armadas.”
[Atenção, cara leitora e caro leitor: da próxima vez que vocês encontrarem na mídia algo na linha “Forças Armadas não têm recursos”, saibam que vocês podem estar sendo alvos de uma “operação psicológica”. (Isto é uma ironia)]
São muitas as dúvidas, mas infelizmente, nos últimos anos, o Exército rejeitou esclarecer aos cidadãos questões fundamentais sobre o funcionamento do batalhão.
Em 2021, por exemplo, um brasileiro quis saber, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a relação de cursos, palestras, atividades acadêmicas e atividades militares entre o batalhão e “Forças Armadas de nações-amigas”. Ao negar a liberação dos dados, o Exército citou o inciso III do artigo 6º da LAI.
É um argumento aberrante, pois esse trecho da lei apenas diz que cabe aos órgãos públicos assegurar “a proteção da informação sigilosa e da informação pessoal, observada a sua disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual restrição de acesso”. Trata-se de uma disposição genérica dirigida aos órgãos e nada tem a ver com o princípio da transparência.
Quanto mais a PF se aprofunda no papel de militares na conspiração golpista orquestrada por Bolsonaro contra as eleições de 2022, mais a sociedade civil ganha a convicção de que uma parte das Forças Armadas – para muitos observadores, uma parte expressiva – participou de uma trama ao arrepio da Constituição e das leis.
A desconfiança é hoje profunda e geral entre defensores da democracia. Se o Exército e o Ministério da Defesa querem mesmo recuperar a credibilidade das Forças Armadas, deveriam trabalhar também para esclarecer as atividades pouco transparentes do batalhão de Goiânia. E a quem não se importa com nada disso, um lembrete: a próxima vítima sempre pode ser você.