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E se o golpe de Bolsonaro tivesse funcionado? Um país alternativo para os negacionistas

Não se sabe se o golpe duraria muito ou pouco mas a certeza hoje é que o Brasil esteve perto do abismo

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20 de março de 2024
06:00
Ouça Rubens Valente

Rubens Valente

20 de março de 2024 · Não se sabe se o golpe duraria muito ou pouco mas a certeza hoje é que o Brasil esteve perto do abismo

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Depois dos negacionistas das vacinas e da Terra redonda, agora temos os negacionistas do plano de golpe de Jair Bolsonaro. Eles fecham os olhos para as múltiplas evidências coletadas pela Polícia Federal e atribuem tudo a uma “narrativa” da imprensa, conforme acusou o pastor evangélico Silas Malafaia na semana passada. Só uma pergunta ao pastor: e se fosse o Lula?

Os novos negacionistas certamente são encontrados aos milhares na direita, no bolsonarismo, no ruralismo, no meio evangélico. Mas há também os negacionistas de boa-fé que podem ser achados em todos os campos da política. São honestamente céticos ao extremo. Primeiro dizem que Bolsonaro nunca teria conseguido convencer as Forças Armadas, como se elas não estivessem inundadas pelo antipetismo e pelo bolsonarismo de alto a baixo ou como se não tivessem um DNA golpista.

Como se não tivessem permitido os acampamentos na frente dos quartéis. Ou não tivessem desconsiderado a destruição da Amazônia e o genocídio Yanomami, em plena sintonia com a política de Bolsonaro. Em todos esses casos, por onde andavam os ditos legalistas? É claro que nutriam, no mínimo, uma imensa simpatia pelo capitão reformado.

Mas ainda que Bolsonaro tivesse conseguido dar o golpe, dizem os céticos, a ilegalidade pouco duraria porque a pressão internacional seria tremenda, associada aos problemas de ordem interna. Por isso dão-lhe o apelido fofo de “golpezinho”. Ou o classificam como uma aventura louca de um bando de incompetentes. Após consultar suas bolas de cristal, declaram convictos: “Imagina, nunca teria dado certo”. (Antes, eles diziam que Bolsonaro era um democrata e que sua eleição não representava um risco à democracia.)

Saber se o golpe duraria muito ou pouco é puro exercício de futurologia. Mas não custa nada ressaltar que o último dado no Brasil durou 21 anos.

“Ah, mas naquela época havia um apoio maciço da imprensa, do empresariado, da Igreja.” Bolsonaro já tem um amplo apoio no agronegócio, nos bancos, no mercado de capitais e em diversos setores dos meios de comunicação. Além disso, na política, apoio pode ser rapidamente conquistado. O poder é como um ímã que atrai e inebria os deslumbrados, que costumam ser muitos e poderosos.

Além disso, o apoio popular a Bolsonaro continua altíssimo, apesar de tudo o que o país já sabe sobre o ex-presidente. Ou sobre o genocídio Yanomami no seu governo. Ou sobre o uso da máquina para elegê-lo em 2022. Entre seus eleitores, quem se importa? Eles são quase a metade do Brasil.

Sobre as pressões internacionais, cabe lembrar: o governo de Vladimir Putin invadiu a Ucrânia em afronta a poderosas forças políticas e econômicas no planeta e lá permanece há dois longos anos, mantendo um conflito insuportável sob todos os pontos de vista, ao custo de mais de 10 mil civis mortos, inclusive mulheres e crianças.

Um segundo exemplo: após um ataque infame e covarde do grupo terrorista Hamas, o governo de Benjamin Netanyahu em Israel deflagrou uma guerra contra Gaza que já matou mais de 30 mil pessoas, um massacre insuportável sob todos os pontos de vista. Quem conseguiu impedir ou acabar com essas guerras?

“Ah, mas com a Rússia é diferente, a Europa depende do seu gás.” Como se o Brasil não fosse um enorme exportador de grãos para potências globais.

Os negacionistas do golpe, a exemplo dos negacionistas de um modo geral, sempre encontram saídas para suas teorias ao apresentar novas questões que também têm respostas objetivas, mas que sempre serão acrescidas de novas dúvidas. É um círculo vicioso do qual não conseguem nem querem sair.

Não se sabe se o golpe duraria muito ou pouco. A certeza hoje é que o Brasil esteve bem perto do abismo.

Mas, se as provas são insuficientes para convencer os negacionistas, talvez levando adiante o cenário traçado nos planos de Bolsonaro as coisas fiquem mais claras. Teria sido mais ou menos assim:

Em 7 de dezembro de 2022, os comandantes do Exército, Marco Antonio Freire Gomes, e da Aeronáutica, Carlos Baptista Júnior, cedem às pressões de Bolsonaro e do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira Oliveira, unem-se ao comandante da Marinha, Almir Garnier, e passam a apoiar a decretação de estado de sítio no Brasil. Trata-se de um eufemismo para golpe de Estado porque se destina a impedir a posse do adversário de Bolsonaro, Luiz Inácio Lula da Silva, legalmente eleito em outubro dentro das regras democráticas.

Os comandantes militares em seguida comunicam sua decisão aos chefes militares regionais, que, obedecendo à cadeia de comando, repassam as novas diretrizes aos seus subordinados. Não obedecer representaria prisão por quebra de hierarquia e indisciplina.

Gomes e Baptista Júnior dão de ombros para a pressão internacional e todas as consequências internas e externas de um golpe. Cegos pela ideologia incendiária e divisionista do seu líder Bolsonaro, ajudam a enfiar o país numa aventura de desdobramentos imprevisíveis. Se dará certo, não se sabe; o fato é que os comandos das três Forças Armadas resolvem virar a mesa.

Comandantes de todas as unidades militares Brasil afora são orientados a anunciar às suas tropas, reunidas em regime de urgência, que as Forças Armadas não reconhecem a eleição do presidente eleito e que a posse marcada para janeiro de 2023 não mais ocorrerá. Bolsonaro e seus militares criam uma espúria e ilegal “comissão eleitoral” que adota, como primeira medida, suspender os efeitos da eleição de 2022.

Eventuais dissidentes na caserna, como o general Tomás Paiva, são imediatamente presos e mantidos incomunicáveis. Outros críticos identificados no corpo da tropa são removidos em questão de horas. Sem a troca de informações entre os resistentes, o dissenso que poderia aflorar é rapidamente reprimido sem que seja necessário disparar um único tiro.

Como as Forças Armadas estão inundadas pelo bolsonarismo e pelo ódio a Lula e ao PT, a tarefa não é tão difícil. Muitos oficiais precisam só de um empurrãozinho para rasgar a Constituição. Eles raciocinam que é só acompanhar os generais que ninguém será punido. Está no jargão que os militares vivem repetindo, “o exemplo arrasta”.

Tropas das Forças Armadas cercam, inclusive com blindados, os prédios do STF e do TSE em Brasília. O ministro Alexandre de Moraes é imediatamente preso e levado, também incomunicável, a um quartel. Um processo militar é inventado para incriminá-lo e disseminar fake news de “fraude” nas eleições. Eventuais reações dos seguranças ou policiais nos tribunais são facilmente debeladas – afinal de contas, são milhares de militares armados com fuzis, granadas, tanques e caças contra poucas dezenas de funcionários públicos portando apenas armas leves. Impossível resistir, basta ver o que houve no 8 de Janeiro.

Com seus poderes anulados e o prédio fechado pelos militares, o TSE não consegue fazer a solenidade de diplomação de Lula e de seu vice eleito, Geraldo Alckmin, marcada para dali uma semana, em 12 de dezembro. A fim de reduzir uma reação política mais aguda, tropas especiais prendem Lula e outros líderes da oposição, que são levados em aviões da FAB para unidades militares distantes no meio da Amazônia.

Ainda sob o impacto da prisão de Moraes e Lula, o deputado Arthur Lira e o senador Rodrigo Pacheco rapidamente capitulam. Muitos lembrarão que, durante meses a fio, eles se recusaram a iniciar um processo de impeachment contra Bolsonaro. No geral foram mais aliados do que opositores, então está tudo sob controle no campo do Congresso Nacional, já amplamente dominado pelo ruralismo, pelos evangélicos, pela bancada da bala, pela direita. Tanto que Bolsonaro mandara retirar o nome de Pacheco da lista dos presos pós-golpe (o nome de Lira nem aparecia).

A multidão na frente dos quartéis é tomada por um frenesi que vai justificar toda a violência estatal. Eles apoiam e empoderam os militares. Saem em passeata ao lado dos militares, que por sinal nem se consideram sublevados, já que seguem as orientações vindas de cima. Isso lhes dá o argumento falso e inconstitucional de que a hierarquia foi devidamente respeitada. Afinal de contas, banalmente maus, apenas seguem ordens.

Importante notar que os bolsonaristas não precisarão destruir as sedes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário em Brasília – a destruição das instituições ocorre de outro jeito, por dentro, por isso será muito mais efetiva e duradoura.

Em um efeito dominó, as polícias Civil e Militar de diversos estados controlados pela direita anunciam adesão ao golpe. A Polícia Rodoviária Federal bloqueia, com apoio de caminhoneiros, diversas rodovias a fim de dificultar manifestações anti-Bolsonaro.

As embaixadas e líderes de países estrangeiros se apressam a emitir, com palavras fortes, uma condenação ao golpe em andamento no Brasil. Aliados nas Américas e na Europa anunciam retaliações comerciais. Isso terá um efeito na economia, mas incapaz de derrubar o governo. Como não derrubaram Putin.

A parte expressiva do país que apoiou toda a incompetência cínica do governo de Bolsonaro segue apoiando vivamente o golpe. Os empresários da agricultura batem palmas e saem em carreatas empunhando a bandeira nacional.

A fim de calar as críticas internas, Bolsonaro faz uma série de ameaças veladas ou explícitas aos donos dos principais meios de comunicação tradicionais. A família Marinho, dona da TV Globo, que é o principal foco da raiva de Bolsonaro pela capacidade que teve de fazer e amplificar as críticas ao seu governo durante os últimos quatro anos, reúne-se de forma emergencial para decidir se manterá a cobertura crítica ou se recuará a fim de não ver a emissora retirada do ar, o que resultaria em desemprego em massa e quebra da bilionária empresa.

Acionando o instinto de sobrevivência, muitos influenciadores de redes sociais passam a exercer a autocensura.

Aos poucos uma oposição ao golpe começa a ser organizada. Os de sempre que foram à linha de frente nas crises anteriores – a saber: trabalhadores rurais sem-terra, estudantes, professores, indígenas, sindicalistas, advogados, militantes de partidos políticos de esquerda, jornalistas, servidores públicos, profissionais da saúde – tentam organizar passeatas e protestos.

As manifestações são duramente reprimidas. Por meio das tropas de choque das PMs, o regime enfrenta, espanca e até mata. O Brasil dá um mergulho no caos e na violência política com resultados imprevisíveis. O “golpezinho” de Bolsonaro vai mudar a vida de milhões de brasileiros, alguns de forma irreversível. Mas não era só um bando de trapalhões?

O cenário hipotético acima pareceria absurdo uns cinco anos atrás. Hoje, com tudo o que sabemos a partir da investigação da Polícia Federal, é fácil concluir que poderia perfeitamente ter se tornado realidade.

Quando tomou posse na Presidência em janeiro de 2019, Bolsonaro jurou para todo o país, ao vivo na televisão: “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição”. 

A Carta Magna diz, em seu artigo 77, parágrafo 2º: “Será considerado eleito Presidente o candidato que […] obtiver a maioria absoluta de votos”.

Segundo o famoso discurso do deputado Ulysses Guimarães em 1988, “traidor da Constituição é traidor da Pátria”. “Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia.” 

Quase a metade dos eleitores aptos a votar em 2022 escolheu Bolsonaro. Esses milhões de brasileiros aparentemente não se importam em seguir aqueles que optaram por trilhar o caminho maldito. Também são negacionistas da Constituição e da democracia.

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