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Antropólogo Celso Castro reflete que militares vêem civis como ‘personagem de ficção’, menos eficientes que eles

Entrevista
6 de abril de 2024
08:00

No aniversário de 60 anos do início da última ditadura militar brasileira (1964-1985), o Pauta Pública traz uma entrevista especial com o antropólogo, historiador e pesquisador Celso Castro, um dos nomes mais importantes do país no estudo dos militares. Na conversa, Castro discute a ideologia militar e sua influência nos planos de ruptura democrática. Ele avalia também como os militares retornaram à política nos dias atuais, inseridos em governos eleitos democraticamente.

Castro utiliza a metáfora do “círculo de giz”, para dizer como civis são separados dos militares, como se vivessem em um outro mundo – militares são em sua maioria filhos de militares, estudam em academias que são frequentadas em grande parte por não civis e acessam espaços feitos exclusivamente para eles, como clubes e hospitais. Essa separação é fruto da percepção de “dois mundos simbólicos, o civil e o militar”, onde os militares atribuem características negativas para o primeiro e positivas para o segundo.

Leia os principais pontos da entrevista e ouça o podcast completo abaixo.

EP 113 Golpe 60 anos, o militarismo de ontem e hoje – com Celso Castro

29 de março de 2024 · Especial recebe pesquisador referência em estudo dos militares

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[Natalia Viana] O livro Espírito militar, lançado em 1988, foi sua primeira grande obra, marcando sua carreira como antropólogo em estudos militares. Durante um ano, você fez observações na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) para o livro. E uma das coisas que mais me interessam é como se constrói a identidade do militar e como se constrói a diferenciação entre essa identidade com a identidade civil. Na obra, você chama de “a invenção dos civis”. Naquela época, o que essa diferenciação representava em termos de uma volta à democracia? Essa visão ainda hoje continua inalterada? 

Eu fiz essa pesquisa na Academia dos Agulhas Negras (Aman) entre 1987 e 1988, para o meu mestrado de antropologia no Museu Nacional. Defendi a tese em 1989 e o livro saiu em 1990. Na obra, eu falo de uma experiência de 35 anos atrás, um momento imediatamente posterior à transição, quando a política não era um tema discutido lá dentro [da Aman]. O objetivo era perceber como se dava a construção da identidade militar, o que significava tornar-se militar. Esse processo de construção de uma identidade profissional pela qual o cadete passa na academia.

O que me chamou muito a atenção no livro – que é uma percepção que continua até hoje muito clara para mim e para vários outros pesquisadores que usaram a minha interpretação – é como essa identidade implica a construção de dois mundos simbólicos, o mundo militar e o mundo civil. Eu me lembro que no início os cadetes e oficiais falavam “lá fora é assim” e “aqui dentro é assim”. Lá fora é no mundo civil, em contraposição ao mundo militar. Isso era muito, muito forte e continua até hoje. Esses dois mundos têm uma dimensão contrastante muito clara, seja o mundo militar ou o mundo civil, com tipos ideais de organização.

Nessa cosmologia que dividia o mundo entre civil e o militar, as características positivas estavam sempre atribuídas ao mundo militar e as negativas, por oposição e contraste, ao mundo civil. Por exemplo: “Aqui dentro a gente é organizado, lá fora é uma bagunça; aqui a gente é patriota para cultuar as coisas, lá fora é ‘bocha’”. Tinha uma série de elementos que eram contrastados e que os cadetes aprendiam, reproduziam. Os oficiais foram formados assim. E isso me chamava muito a atenção, como se existisse um mundo dividido, como se existisse de fato um mundo civil. 

Eu sou homem, professor, antropólogo, pai de três filhos, vegetariano, torcedor do glorioso Vasco da Gama. Eu ia falar várias coisas e não ia me lembrar de falar “eu sou civil”, porque isso não faz parte. Mas para o militar é ao contrário, a primeira coisa que ele vai falar é “eu sou militar”. Eu sou civil, me sinto civil quando eu estou em interação com os militares, porque eu sou classificado como fazendo parte de um outro mundo. 

No meu caso, tinha uma dimensão biográfica. Eu sou filho de militar, meu pai já morreu há muito tempo, mas foi formado na Aman também. Então tinha uma situação um pouco diferente que fazia parte, em alguma medida, do que eles chamam de família militar. A família militar também não é a família do militar, o cônjuge, o filho. É uma categoria que, como dizem os antropólogos, engloba uma série de valores. Lá na Aman ficou muito clara essa construção de dois mundos. 

Outra coisa que também chamou atenção na época e que pode ajudar a entender questões mais recentes é a presença de um enorme grau de endogenia, de fechamento societal. Quando eu fiz a pesquisa, 50% dos cadetes eram filhos de militar. E se pegarmos uma série histórica vemos como isso é crescente. De mais de 20% em 1940, passou para mais de um terço nos anos de 1960 e 1985. Quando eu estava lá em 1986, isso chega a 50%. Depois, nos anos 1990, vai chegar a 60 ou 61%, se não me engano. Depois diminui um pouco, mas mesmo assim fica em um patamar muito elevado. 

Além disso, durante toda a década anterior, quando eu fiz a pesquisa, 90% dos cadetes tinham estudado em algum estabelecimento de ensino militar. O civil era praticamente um personagem de ficção científica. Várias vezes eu vi eles dizerem “a gente mantém contato com elementos civis”. Ao sair da Aman, o oficial é transferido muitas vezes, dificilmente ele fica mais de dois anos em um lugar. Isso faz com que os vínculos locais, mesmo com a família de origem, diminuam. Passa a ser essa família militar, enquanto categoria, que é o grupo de referência, que acolhe, que dá apoio. Os depoimentos são sempre esses, quem apoia, quem ajuda a resolver problemas de saúde dos filhos, de moradia é essa família militar.

Essa questão do mundo civil na construção militar como parte de um outro cosmos, eu gosto de lembrar de uma entrevista que eu fiz com o general Villas Bôas em 2019. Tem um momento em que ele fala do “círculo de giz”, que se refere a esses dois mundos. E ele diz que somente aos 49 anos de idade, quando ele foi fazer um curso na ESG, que foi conviver com civis pela primeira vez. Também é uma pessoa que vê isso, veio de uma família militar, estudou, foi transferido, teve sempre esse grau muito elevado de interações dentro desse mundo. É interessante que ele fala desse círculo de giz, que separa esses dois mundos, e da dificuldade que ele teve de lidar. “O civil pensa diferente da gente”, disse. Essa marca de dois mundos é muito forte, permanece e se soma a uma realidade de um grau de endogenia muito alto, a morfologia social da instituição faz com que isso fique mais forte, mais presente. 

Essa geração que esteve muito atuante na política recentemente, em particular no governo Bolsonaro, também é fruto desse mundo. Eu pesquisei na década seguinte, mas a grande maioria deles se formou nos anos 1970. O general Heleno se formou na Aman em 1969, mas o Villas Bôas se formou em 1973, o general Mourão em 1975, o general Fernando Azevedo Silva em 1976 e o general Ramos em 1979. E todos esses que eu mencionei são filhos de militares.

Ou seja, esse “círculo de giz”, como o Villas Bôas falou, marca também essa geração que chega já no auge da sua carreira, com essa experiência de afastamento e de presença dentro desse mundo. 

[Natalia Viana] Muito interessante sua análise, justamente levando em conta que essa foi a geração que, bem ou mal, voltou a atuar na política como ministros, como desestabilizadores da República. E eu identifico também nas entrevistas que fiz com alguns deles – quando já generais – outros elementos dessa visão militar/civil que tocam a política. Por exemplo: “Nós não somos corruptos, os civis são corruptos’; ‘Os militares são mais efetivos, são mais eficientes”. Como isso fez com que essa geração desejasse voltar ao poder e adquirir poder político?

Eu sempre gosto de chamar atenção para essa realidade, vamos dizer, sociológica dessa geração. Como pano de fundo, essas características nos ajudam a entender alguns atributos dessa geração.

Você mencionou duas coisas que eu acho muito importantes: corrupção e eficiência. Para eles, o militar é menos corrupto e mais eficiente, pela formação, pelos valores. Quando você conversa com os militares ou escuta eles conversando entre si, vê que são dois elementos muito fortes.

Tem um exemplo que eu sempre gosto de dar e que eu vi muitas vezes na vida, não só na Aman, como exemplo de corrupção e de honestidade, um conjunto de valores: a questão da cola. Desde a Aman era assim, colou aqui, está fora da academia, não é tolerado; fora de lá não estão nem aí. Eu o vi inúmeras vezes ao longo da vida como um elemento exemplificador dessa diferença. Porque na Aman a classificação individual que você vai obter em termos de nota vai ser decisiva em todos os momentos da sua carreira. Depois que você se forma em uma determinada classificação individual, não tem empate. Você vai poder, por exemplo, escolher onde você quer servir. Essa ordem que é obtida na Aman continua durante toda a carreira. É um mundo absolutamente diferente para a gente. 

Na academia, colar é um crime capital, você está enganando os seus colegas, não está se enganando, não é um truque individual. Você está cometendo um crime contra a humanidade militar, porque é um jogo de somar zero, você vai ganhar e ele vai perder. Na faculdade civil, isso não faz a menor diferença, porque a classificação não tem a menor relevância. Esse é um exemplo de uma visão sociológica que permite ver como esse mundo é constituído.

A segunda coisa que você mencionou foi eficiência – uma ideia que vem de uma formação muito isolada, muito fechada em si mesmo – do que é uma formação excelente, que serve para ser formação básica e pode ser adaptada para qualquer missão. A missão pode ser atuar em Garantia da Lei e Ordem, atuar com refugiados venezuelanos na Operação Acolhida, cuidar da covid, como no caso do Pazuello [general que atuou como ministro da Saúde durante o governo Bolsonaro]. Enfim, toda essa questão seria uma decorrência de uma formação básica, daí para coisas muito menos louváveis, como, enfim, auditar as urnas eletrônicas e coisas do gênero. Mas é uma formação básica que permite um grau enorme de outras missões.

São duas marcas, como eu disse, de uma formação ainda muito marcada por essa concentração no interior da própria família militar, do mundo militar. Não estou dizendo, evidentemente, que isso vai ocorrer necessariamente só entre militares, em outras profissões também existe isso. Mas o grau era muito elevado, muito marcante, a ponto dos próprios militares não perceberem isso. Ou, como o general Villas Bôas chamou a atenção, terem essa surpresa de, aos quase 50 anos de idade, lidar com um civil e ver que pensa diferente, e como é difícil se adaptar a ele. Então, quando isso se soma à ideia de salvar a pátria – um certo messianismo militar, um interesse menos louvável de intervir na política –, você tem uma espécie de reserva moral da nação e eficiente para qualquer missão, por causa dessa formação básica.

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