Inquérito da Polícia Federal (PF), ao qual o Clip e o ICL Notícias tiveram acesso, mostra que o consultor político argentino Fernando Cerimedo atuou em coordenação com alguns dos principais assessores do ex-presidente Jair Bolsonaro e com militares brasileiros para atacar o sistema eleitoral e fazer falsas imputações de fraude na eleição presidencial de 2022. Os investigadores confirmaram à reportagem, sob anonimato, que vão incluir Cerimedo na lista de responsáveis pela tentativa de golpe de Estado. Cerimedo será apontado pela PF como um dos integrantes da organização criminosa que tentou abolir o estado democrático do Brasil.
Os mesmos arquivos usados por Cerimedo para embasar as acusações feitas por ele em uma live após a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foram utilizados como fundamento em outras contestações feitas por aliados de Bolsonaro, como um relatório apresentado por seu partido ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
As evidências constam no relatório da PF, de mais de mil páginas, produzido para a Operação Tempus Veritatis, deflagrada em 8 de fevereiro deste ano. A reportagem obteve a íntegra do documento, além de termos de depoimento dos envolvidos à PF. A partir da documentação foi possível verificar uma série de descobertas sobre como Cerimedo e os aliados de Bolsonaro cooperaram. A PF chegou a escrever um tópico inteiro sobre o argentino no capítulo “Disseminação de conteúdo falso por Fernando Cerimedo e outros investigados”.
Em entrevista, Cerimedo e os demais envolvidos negam ter cometido quaisquer irregularidades ou mantido contato. (Veja ao final.)
No relatório, o nome de Cerimedo já está listado entre os núcleos da organização criminosa que tentou dar um golpe de Estado. O nome dele aparece no “núcleo de desinformação e ataques ao sistema eleitoral”. O grupo é descrito pelos policiais como responsável por “produção, divulgação e amplificação de notícias falsas quanto a lisura das eleições presidenciais de 2022 com a finalidade de estimular seguidores a permanecerem na frente de quartéis e instalações, das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para o golpe de Estado”.
Além de Cerimedo nesse núcleo, estão outras nove pessoas como o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, o ex-assessor especial da Presidência da República Tércio Arnaud Tomaz e o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid.
Os investigadores afirmam que a live de Cerimedo fez parte de um esforço articulado pelo núcleo duro de Bolsonaro para atacar o sistema eleitoral. Nesse sentido, a escolha de um estrangeiro teve como objetivo fugir da jurisdição da Justiça Eleitoral brasileira. Elementos colhidos mostram que Cerimedo atuou em conjunto com brasileiros ligados a outras frentes de ataque às urnas, como o relatório formulado a pedido do PL, partido de Bolsonaro, pelo Instituto Voto Legal, onde acusações de manipulação dos resultados similares às de Cerimedo foram elencadas.
A investigação da PF descobriu que uma pasta de compartilhamento de arquivos na nuvem no Google Drive foi criada e divulgada por Cerimedo. No mesmo local, outras pessoas ligadas ao esquema de disseminação de fake news de Bolsonaro criaram e editaram arquivos. É o caso de Eder Balbino, dono da empresa Gaia.io, que foi um dos formuladores de um relatório apresentado pelo PL, partido de Bolsonaro, ao TSE. Um militar brasileiro que ocupou cargos de destaque no governo Bolsonaro também disponibilizou arquivos na mesma pasta.
Os investigadores chamam o grupo golpista de “milícia digital” e argumentam que, após a derrota de Jair Bolsonaro, em 2022, a organização criminosa investigada “amplificou por multicanais a ideia de que as eleições presidenciais foram fraudadas, estimulando seus seguidores a ‘resistirem’ na frente de quartéis e instalações das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para uma intervenção federal comandada pelas forças militares, sob o pretexto de atuarem como uma espécie de Poder Moderador”.
Além das manifestações públicas de Bolsonaro, os policiais reuniram uma série de dados apreendidos em celulares e descobriram como os investigados “utilizaram especialistas na área de tecnologia” para tentar obter elementos que pudessem desacreditar as urnas eletrônicas.
Segundo o que foi apurado pela PF, o conteúdo com informações falsas ου não lastreadas foi direcionado para influenciadores nas redes sociais e na mídia tradicional, com grande poder de influência e penetração nos públicos de interesse, inclusive, para pessoas no exterior, para burlarem as ordens judiciais de bloqueio. “Nesse sentido, identificou-se a ação coordenada dos investigados Fernando Cerimedo […] na produção e difusão de ‘estudos’ que teriam identificado inconsistências nas urnas eletrônicas produzidas antes de 2020, fato que, inclusive, embasou representação do Partido Liberal (PL) para anular os votos computados nas referidas urnas”, apontam os investigadores.
Como Cerimedo foi utilizado
Cerimedo se apresenta como consultor político e especialista em marketing digital. Em uma transmissão ao vivo (live) realizada em seu canal no YouTube, em 4 de novembro de 2022, ele disseminou uma série de dados falsos e notícias fraudulentas sobre o sistema eleitoral brasileiro. A live foi vista por mais de 415 mil pessoas.
Os investigadores brasileiros descrevem que a transmissão ocorreu de modo premeditado porque a “milícia digital” queria “difundir a desinformação” sobre o sistema eleitoral para alimentar teorias e fortalecer as manifestações dos seguidores do então presidente Jair Bolsonaro em frente a instalações militares e, assim, “criar um falso ambiente de apoio da população a um golpe de Estado, que estava sendo arquitetado”. O Brasil enfrentou mais de 230 bloqueios em estradas por cerca de dez dias após o fim do segundo turno eleitoral. Já os acampamentos golpistas em frente a quartéis se estenderam por dois meses. O que estava em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília, só foi desfeito após os atos de vandalismo e violência de 8 de janeiro de 2023.
A PF reuniu provas de que Jair Bolsonaro e seus assessores tinham consciência da inexistência de fraudes nas eleições após a derrota dele em 2022. Mensagens de Mauro Cid com outros militares mostram que eles tentavam a todo custo encontrar algum dado que permitisse discutir o resultado eleitoral, mas não tiveram sucesso. Mesmo assim, um núcleo de militares e assessores dele promoveu ações para seguir desacreditando o sistema eleitoral.
Nessa linha, os policiais identificaram alguns oficiais do Exército que disseminaram “estudos” que diziam ter identificado fraudes, mas sem nenhum lastro. “Dando seguimento à execução do plano, o mesmo conteúdo falso foi utilizado pelo argentino Fernando Cerimedo”, apontam os policiais. O material também foi publicado em ‘https://derechadiario.com.ar“
Em seguida, a live foi disponibilizada no serviço nuvem Google Drive. De acordo com registros obtidos pela PF, no mesmo dia Tercio Arnaud Tomaz, ex-assessor especial de Bolsonaro e apontado como chefe do chamado Gabinete do Ódio, enviou dois arquivos de vídeo para Mauro Cid: a íntegra da transmissão ao vivo e uma versão editada, com apenas 8 minutos e 59 segundos. Na visão dos investigadores, o corte tinha como objetivo facilitar a circulação das falsas alegações por meio de redes sociais e aplicativos de mensagens, como WhatsApp e Telegram.
Questionado pela PF sobre suas relações com Cerimedo, Arnaud respondeu que não o conhecia. No entanto, os policiais fizeram registrar no depoimento que havia provas documentais de que Arnaud estava no Palácio da Alvorada no momento em que ocorreu a live e ele enviou os arquivos a Mauro Cid. Ao falar disso, o ex-assessor de Bolsonaro afirmou que não se lembrava se alguém pediu que ele fizesse o download, mas que o fez porque podia “cair a qualquer momento” e que era um “tema acompanhado pelo pessoal”. O “pessoal”, segundo Arnaud, era a internet em geral. Ele, porém, enviou o arquivo a Mauro Cid por mensagem no WhatsApp.
Procurado, o advogado de Arnaud, Luiz Eduardo Kuntz, afirmou que tudo que “era de objeto da investigação foi devidamente respondido. Estamos aguardando que, em breve, ele fique absolutamente de fora desta história toda”.
Tese de Cerimedo foi passada adiante
A tese falsa difundida pelo argentino passou a embasar outros ataques de bolsonaristas contra o sistema eleitoral, como um relatório encomendado pelo PL, partido de Jair Bolsonaro, contra o resultado do segundo turno.
A empresa contratada foi o Instituto Voto Legal (IVL), que envolveu também a empresa Gaia.io no documento, que repetia a versão falsa de Cerimedo sobre as urnas. Considerando que o partido agia de má-fé, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, então presidente do TSE, descartou a ação e aplicou uma multa de R$ 22,9 milhões ao PL, que teve as contas bloqueadas.
Além do relatório do PL, a live também serviu de subsídio para um documento enviado ao então ministro da Defesa, o general Paulo Sérgio Nogueira, com ataques ao sistema eleitoral. Uma cópia dele foi encontrada pela PF no celular de Mauro Cid. Segundo a PF, o texto parece ser uma minuta de manifestação que tinha o intento de ter assinatura de líderes partidários. A tese sustentada nessa minuta é a mesma da live de Cerimedo – de manipulação dos dados das urnas anteriores a 2020. “Fato novo surgiu ao apagar das luzes da construção do relatório castrense e que obriga seja examinado”, diz trecho da minuta encontrada no celular de Cid, em uma referência aos argumentos do argentino.
A PFl identificou também que militares disponibilizaram o material produzido por Fernando Cerimedo em servidores localizados fora do país depois que o TSE mandou retirar a live do ar.
Em 8 de fevereiro do ano passado, Paulo Figueiredo, um dos apresentadores da Jovem Pan, pediu a Mauro Cid, por mensagens no WhatsApp, o contato de Cerimedo. O ex-ajudante de ordens de Bolsonaro então pediu o número de telefone a um outro oficial: “Tem o cc do argentino?”. Na sequência, o número foi enviado. A Jovem Pan está sendo processada pelo Ministério Público Federal por ter reproduzido e incentivado as teses e manifestações golpistas ao longo de 2022. O processo, que é civil, está em fase final e a rádio pode perder suas concessões públicas.
“Visita” em meio a campanha eleitoral
No ano passado, o Clip e a Agência Pública revelaram no projeto “Mercenários Digitais” que, em meio ao disputado segundo turno das eleições de 2022, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) aproveitou uma missão oficial a Buenos Aires para se encontrar com Cerimedo.
Eduardo ainda fez pagamentos a um funcionário de uma das empresas de Cerimedo para trabalhar na campanha de reeleição do deputado no mesmo período. O filho de Bolsonaro, inclusive, viajou à Argentina acompanhado de Giovanni Larosa, correspondente no Brasil do portal La Derecha Diario, veículo que pertence a Cerimedo, o mesmo que publicou as informações falsas sobre as urnas no momento da live. Segundo as prestações de contas de Eduardo no TSE, Larosa recebeu pelo menos R$ 3,9 mil da campanha do filho de Bolsonaro.
Cerimedo forjou laços com a extrema direita em outros países da região, como Chile e Argentina. A última campanha eleitoral brasileira com Bolsonaro o aproximou do então candidato presidencial argentino Javier Milei. Cerimedo elevou-se em seu país: ofereceu entrevistas aos meios de comunicação nacionais para se afirmar como peça-chave da estratégia digital de Milei e ainda disse que geria 50 mil contas na rede social Twitter que funcionava a favor deste líder de direita.
A aparência de Cerimedo era fantasmagórica. Como revelaram o Clip e o Chequeado no ano passado, era praticamente desconhecido este consultor que montou, em menos de quatro anos, um grupo empresarial sediado em Buenos Aires composto pela sua agência de publicidade, Numen SRL, e uma academia que oferece cursos de digital e político marketing. Ele garante que administra também 30 pequenos sites, uma empresa de segurança privada e no total tem quase 200 funcionários.
Entre seus sites, Cerimedo possui o domínio do La Derecha Diario, portal de notícias que criou para “influenciar” milhões de seguidores da extrema direita, dirigido por Natalia Basil, sua sócia. O consultor diz que trabalhou de graça para levar Milei para a Casa Rosada porque ele não vive da política. Suas horas como consultor aparecem como uma contribuição para a campanha eleitoral de Milei nas especiarias. Seu grupo empresarial – esclarece o consultor – lucra com suas atividades privadas.
A influência de Cerimedo, no entanto, foi diluída desde que Milei assumiu a Presidência em dezembro passado. O consultor era passageiro frequente do Hotel Libertador, onde o economista argentino ficou mais de um mês após ter sido eleito. No entanto, Cerimedo não aparece na Casa Rosada, onde funciona a equipe de comunicação digital do presidente argentino, averiguou o Clip entre fontes que trabalham naquele edifício.
Do partido no poder garantiram que Cerimedo não tem influência sobre a estratégia digital do novo governo, que é desenhada pelo seu conselheiro Santiago Caputo. Apesar do grande número de vagas que Milei teve que preencher no Estado, Cerimedo não foi nomeado funcionário. Nem quaisquer contratos do governo argentino aparecem em registros públicos em nenhuma de suas empresas.
Mas a sua sombra reapareceu há poucos dias, quando Juan Pablo Carreira, ex-editor do La Derecha Diario, foi nomeado diretor de Comunicação Digital da Presidência. Basílio, sua esposa, foi apontada pelo jornal Perfil como uma das pessoas que – sem ser citada como funcionária – toma decisões na Administração Nacional da Seguridade Social (Anses), um dos maiores órgãos do Estado. Cerimedo rejeitou que Basilio tivesse qualquer relação com essa agência.
Que impacto uma investigação sobre Cerimedo poderia ter na Justiça brasileira? O partido governista argentino está convencido de que não haverá repercussões negativas na imagem de Milei, uma vez que a consultora não é funcionária pública. No entanto, a sua elevada exposição pública a favor do presidente argentino poderá dar-lhe dor de cabeça.
Perguntas a Fernando Cerimedo
A Polícia Federal brasileira o identificou como integrante do núcleo de desinformação da organização criminosa que tentou dar um golpe de Estado no Brasil. Você tem algo a dizer sobre essa acusação?
Cerimedo: O que é uma vergonha, pois não tive nenhum relacionamento com nenhum dos citados no caso, e apenas me limitei a trabalhar com dados públicos e nada mais. Na verdade, ainda existem muitos vídeos meus pedindo para não irem ao Capitólio. Não há uma única evidência para essa acusação. Tudo o que fiz é público e documentado. Por isso, se o caso avançar apresentarei queixa à Comissão Internacional de Direitos Humanos, pois se trata de uma perseguição sem respaldo ou provas. A Justiça brasileira vai ter que entender (porque não há provas) que essa informação está errada e vai ter que me compensar por me difamar.
Qual tem sido sua relação com o Comandante Denicoli? Você se comunicou com ele para preparar a transmissão ao vivo no dia 4 de novembro de 2022? Por que tinha o número do celular dele?
Cerimedo: Nenhum, milhares de pessoas lá têm meu telefone porque em algum momento começaram a entrar em contato comigo para me enviar dados e fazer videochamadas. Lembro-me de Denicoli porque um jornalista me perguntou sobre ele, pois parecia que ele havia carregado um arquivo em um drive de acesso público, onde compartilhei todos os dados públicos não processados do Tribunal Superior Eleitoral. Nunca mais tive contato com ele e não sei se ele me escreveu, pois não tenho o contato dele. Mas não tive comunicação com ele.
Qual tem sido sua relação com Tércio Arnaud Tomaz? Você se comunicou para que ele pudesse editar a transmissão ao vivo de 4 de novembro de 2022?
Cerimedo: Não tenho a menor ideia de quem ele é.
Que relacionamento você teve com Mauro Cid?
Cerimedo: Nenhum, nunca o vi nem falei com ele. Eu ouvi falar dele agora com este tópico.
Você recebeu dados do Instituto Voto Legal para preparar a transmissão ao vivo do dia 4 de novembro de 2022?
Cerimedo: Não, recebi dados deles após a apresentação que fizemos no Congresso. Antes eu não tinha acesso a eles nem ao seu trabalho, o que na verdade não coincidia com a metodologia já que trabalhamos apenas com dados de resultados.
Você está ciente de que os militares brasileiros e Jair Bolsonaro sabiam que não havia problema com o sistema eleitoral e mesmo assim inventaram mentiras sobre isso?
Cerimedo: É a sua opinião. Não sei o que pensaram os militares ou os brasileiros. E sobre as mentiras, não sei a quais você está se referindo, só mostrei dados públicos. Se meus dados eram mentiras então estão presumindo que o Tribunal Superior Eleitoral publicou dados falsos.