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Em um país onde os homens assediam, estupram e matam, o machismo também condena as vítimas

Enquanto a violência contra as mulheres cresce, atitude de desembargador escancara a misoginia no sistema de justiça

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20 de julho de 2024
06:00

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A cada seis minutos uma mulher ou menina é estuprada no país. Na grande maioria dos casos – 76% –, são estupros de vulneráveis, em que as vítimas são menores de 14 anos ou incapazes de consentir por deficiência ou doença. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, divulgado ontem (18/7), que registrou também 1.467 mulheres vítimas de feminicídio em 2023 (75% cometidos por companheiros ou ex-companheiros).

Ainda assim, permanecem as dificuldades para que meninas e mulheres grávidas de estupro realizem o aborto legal, apesar da determinação do STF que, em maio, derrubou recomendação do Conselho Federal de Medicina inviabilizando o aborto legal acima de 22 semanas.

Nem a ordem do ministro Alexandre de Moraes, que no dia 19 de junho deu prazo de 48 horas para que os hospitais paulistas provassem que estão cumprindo a lei e realizando o procedimento, surtiu efeito. A intimação se deveu ao fechamento do serviço de aborto legal pela prefeitura de São Paulo – sob falsos pretextos, como revelou a Agência Pública – do Hospital Nova Cachoeirinha, a unidade com o maior número desses atendimentos no país.

No dia 21 de junho, depois, portanto, da ordem de Moraes, uma mulher vítima de estupro procurou, sem sucesso, o serviço de aborto legal no Hospital Campo Limpo, que é um dos quatro hospitais municipais que realizariam o procedimento, segundo a prefeitura informou ao STF. O direito ao aborto legal ainda seria negado três vezes (em dois hospitais municipais e um estadual) até a vítima ser encaminhada ao Hospital São Paulo (que é federal), onde finalmente foi atendida no dia 30 de junho. 

O STF, porém, tão criticado por exagerar em outras medidas, até agora não tomou nenhuma atitude em relação a essa contumaz violação de direitos – e de suas próprias ordens.

Há falhas ainda maiores no Judiciário, que deveria não apenas punir, mas prevenir a violência sexual, principalmente em relação às crianças. Um dos muitos casos, esse recente, veio à tona na quarta-feira passada (17), quando o desembargador Luís César de Paula Espíndola, do Tribunal de Justiça do Paraná, foi suspenso do cargo pela Corregedoria Nacional de Justiça.

Em audiência, no dia 3 de julho, que analisava o assédio de um professor a uma menina de 12 anos, o desembargador Espíndola votou contra o pedido de medida protetiva feito pela vítima, disse que não iria “estragar a vida do professor” e afirmou: “Quem está assediando, quem está correndo atrás dos homens, são as mulheres, essa é a realidade, as mulheres estão loucas atrás dos homens”. O desembargador foi condenado no ano passado por violência doméstica contra a irmã e a mãe.

A punição claramente insuficiente ao desembargador misógino – um afastamento temporário sem prejuízo para seus polpudos rendimentos – revela a que ponto chega a naturalização do machismo e o privilégio dos juízes, especialmente nas instâncias superiores. 

Como disse a jurista Eloísa Machado, professora da Fundação Getulio Vargas ao podcast Café da Manhã, “se é verdadeira a afirmação de que a gente tem racismo estrutural no sistema de justiça, também é verdade quando a gente diz que tem um tipo de machismo estrutural entranhado no Poder Judiciário”. Um machismo que “influencia, sim, a maneira de julgar”, como explicitou a jurista.

Aliás, vale lembrar: também são as mulheres e meninas negras a maioria das vítimas de violência sexual e feminicídio.

Se não podemos confiar no Congresso – que deve votar no segundo semestre o PL do Estupro, que equipara o aborto acima de 22 semanas ao homicídio –, maior risco representa ainda a contaminação do Judiciário pelo racismo e machismo – que vai dos tribunais à polícia, esta sempre pronta a desestimular e menosprezar as vítimas de violência sexual e doméstica como assinala, mais uma vez, o Anuário deste ano. 

A igualdade entre as pessoas, independentemente de gênero, cor da pele ou orientação sexual, é garantida pela Constituição como direito fundamental. Os “guardiões da democracia” parecem não lhe dedicar a devida atenção.

PS. Esse texto, de minha inteira responsabilidade, foi inspirado por nossa reunião de Conselho, em especial por Fabiana Moraes 

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