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O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou, no último dia 16, a abertura de um inquérito policial sigiloso a fim de apurar o que ele chamou de “fatos aqui apresentados”. A decisão foi tomada no corpo de outro inquérito até hoje sob sigilo, o de nº 4.781, instaurado lá em 2019 por uma portaria do então presidente do STF Dias Toffoli, com base controversa no regimento do tribunal, e que ficou conhecido como “Inquérito das Fake News”.
Moraes mandou que o novo inquérito fosse encaminhado diretamente ao diretor-geral da Polícia Federal com a determinação, além de “outras diligências que se fizerem cabíveis”, de que fosse tomado o depoimento do ex-assessor do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Eduardo de Oliveira Tagliaferro. Por fim, ordenou a requisição da cópia integral de um inquérito aberto pela Polícia Civil de São Paulo, em maio passado, no município de Franco da Rocha (SP), sobre um episódio de violência doméstica.
Três dias depois, o inquérito recém-instaurado ganhou um número dentro do STF (4.972). A Coordenadoria de Processamento Inicial então certificou que os novos autos “foram distribuídos” ao ministro Moraes pelo critério de prevenção, uma regra processual que define uma competência. O inquérito justificador da prevenção foi justamente o de nº 4781.
Moraes, portanto, atuou como juiz instaurador do inquérito, relator da apuração e ordenador, digamos assim, de medidas de investigação. Neste último domingo (25), não se sabe exatamente por quais motivos, Moraes determinou que a nova apuração não tramitasse mais como inquérito, mas sim como uma petição, que passou então a ser “distribuída por prevenção ao inquérito 4.781”. Segundo Moraes, “o objeto investigado nestes autos é conexo com aqueles já investigados no referido inquérito”.
O inquérito nasceu em um inquérito sigiloso e começou a tramitar de forma autônoma, mas apenas nove dias depois voltou ao primeiro inquérito, agora como “petição”, tudo por ordem do mesmo juiz. Às vezes é fascinante acompanhar os vários caminhos que o Supremo pode utilizar para fazer valer sua vontade. Eu me solidarizo com os professores de Direito (os de boa-fé) tendo que explicar esses desdobramentos aos seus alunos.
Sim, juízes podem requisitar abertura de inquéritos. Nesse caso, porém, tem sido apontado o evidente interesse direto do ministro nos rumos e no objetivo da apuração. Para o desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo Wálter Maierovitch ao UOL, a vedação para que Moraes atue nesse caso “é clara como a luz do sol”. Os advogados de Tagliaferro disseram, em uma arguição de impedimento no STF, que “o ministro é diretamente interessado no feito”.
Há também uma questão de transparência. A decisão sobre a abertura do inquérito é datada de 16 de agosto, mas a existência da apuração foi reconhecida publicamente pelo STF somente no dia 21. No dia seguinte, 22, o tribunal divulgou, em texto no seu site, que Moraes acolheu um pedido da PF para apreender o telefone celular de Tagliaferro após uma manifestação favorável da Procuradoria-Geral da República (PGR).
O tribunal, contudo, deixou de lado as seguintes informações: a) foi Moraes quem abriu o inquérito; b) Moraes deu ordens à PF sobre o que fazer. A apreensão ocorreu porque Tagliaferro se recusou a entregar seu telefone, mas a ordem para a tomada do seu depoimento partiu de Moraes.
No final do texto, o STF disponibilizou ao público, em arquivos separados, a manifestação da PGR e uma decisão de Moraes. Esta, porém, foi a segunda decisão sobre o assunto. A primeira foi aquela que abriu a investigação, tomada no outro inquérito. Só fica sabendo disso quem tem tempo e curiosidade para ler a íntegra do inquérito nº 4.972, cujo sigilo foi levantado por Moraes.
Como já fiz na coluna da semana passada, a minha intenção neste texto não é entrar no mérito das revelações feitas pelos jornalistas Fabio Serapião e Glenn Greenwald na Folha de S.Paulo a partir de mensagens trocadas entre Tagliaferro, no TSE, e auxiliares de Moraes no STF. O que as mensagens podem representar de legal ou de ilegal, de ético ou de antiético tem sido alvo de intenso debate dentro e fora das redes sociais e na imprensa.
Pelo menos por enquanto, o que me importa aqui é ver o modo pelo qual as mais altas autoridades em Brasília têm reagido às revelações que constrangem um dos servidores públicos mais poderosos do país e o próprio STF.
Por ordem de Moraes e consentimento da PGR, nesse assunto a PF atualmente investiga supostos dois delitos previstos no Código Penal: “divulgação de segredo” (art. 153) e “violação de sigilo funcional” (art. 325). Por outro lado, um pedido para averiguar o conteúdo das mensagens foi imediatamente arquivado pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. O STF também nada fez internamente para apurar. A cúpula do tribunal já defendeu publicamente Moraes. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que aliás é presidido pelo presidente do STF, Luís Barroso, também não se interessou, mandou o tema para o arquivo.
Moraes, STF, PF e PGR preferem averiguar tão somente a origem das informações que chegaram aos jornalistas e foram publicadas pela Folha de S.Paulo. É a velha história de matar o mensageiro em vez de refletir sobre a mensagem.
É também necessário, sem dúvida, investigar o vazamento e a origem das informações, inclusive para eventualmente descartar os supostos delitos citados por Moraes na sua decisão. Mas e todo o resto? Infere-se, pela decisão de Moraes de abertura do inquérito, que é desnecessário investigar “o resto” porque o vazamento é ação de uma “possível organização criminosa” que tem, entre os seus objetivos, “desestabilizar as instituições republicanas, principalmente aquelas que possam contrapor-se de forma constitucionalmente prevista a atos ilegais ou inconstitucionais”.
No mesmo ponto da decisão, Moraes deu um passo complicado. Ele escreveu que “o vazamento e a divulgação de mensagens particulares trocadas entre servidores dos referidos tribunais [STF e TSE] se revelam como novos indícios da atuação estruturada de uma possível organização criminosa”.
A divulgação foi feita nas páginas impressas e no site da Folha de S.Paulo. Se Moraes considera “divulgação” o ato de entrega dos dados aos jornalistas, deveria ter escrito isso em bom português – a ambiguidade do texto impressiona em uma decisão do Supremo que teria enorme repercussão.
As reportagens têm evidente interesse público. Não é preciso concordar com tudo o que tem escrito e falado, nos últimos anos, um dos seus autores, Greenwald, para reconhecer que os assessores do STF e do TSE precisam explicar tudo o que foi feito por eles mesmos nos últimos anos.
Não ajuda em nada a democracia, aquela que Moraes defende tão arduamente, demonizar a imprensa quando ela divulga uma verdade inconveniente. Esse tipo de raciocínio conspiratório cabe mais nos corações e mentes bolsonaristas. Ainda em maio de 2017, na primeira do que seria uma sequência de acusações à Folha, Bolsonaro sugeriu que o jornal recebia dinheiro para atacá-lo, após reportagens sobre seu passado militar. “Vocês estão recebendo de quem para fazer matéria? Vocês estão recebendo de quem para me perseguir?”, perguntou o então deputado federal.
Na campanha eleitoral de 2018, durante entrevista ao Jornal Nacional, Bolsonaro disse, sobre a Folha, que “esse jornal se acabou”. Ele reclamava de reportagens críticas sobre o uso de funcionários e recursos do seu gabinete na Câmara dos Deputados.
Os ataques à Folha foram apenas um dos capítulos do assédio sistemático de Bolsonaro e do bolsonarismo ao trabalho jornalístico que se estendeu a diversos veículos e profissionais, principalmente mulheres. Chamou jornalistas de “urubus”, deu duas “bananas” aos repórteres, acusou a imprensa de espalhar “pânico” sobre a Covid-19, bateu recordes de ataques à imprensa e aos jornalistas.
Agora em maio de 2024, a Agência Pública foi alvo de uma campanha de desinformação protagonizada pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e diversos aliados após uma reportagem revelar como ele e uma comitiva articularam com parlamentares dos EUA punições ao Brasil. São os mesmos que estufam o peito para falar em liberdade de expressão.
Dá pra passar horas falando sobre o verdadeiro ódio direcionado por Bolsonaro e seus seguidores à imprensa antes, durante e depois do seu governo.
Pelo raciocínio de Alexandre de Moraes, porém, eis que agora um trabalho feito dentro de regras consagradas do jornalismo seria, no mínimo, objetivo de um esquema criminoso em prol do golpe de Estado naufragado em 8 de Janeiro de 2023. Chamar o fazer jornalístico de associação criminosa contra a democracia seria uma ilação sem lógica, forçada, e por isso deveria ser rotulada como fake news.
(Disclaimer: trabalhei, sempre como repórter, 23 anos em três empresas do Grupo Folha.)