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Eleição em Belterra passa ao largo dos impactos socioambientais causados pela chegada da monocultura à região

Reportagem
28 de setembro de 2024
04:00

Belterra, um pequeno município no sudoeste do Pará com 18 mil habitantes localizado perto do rio Tapajós e da rodovia BR-163, a 49 km de Santarém, vive o boom do agronegócio. Seus defensores falam que é necessário para o desenvolvimento do município, cujas raízes remontam a 1934, quando a companhia do bilionário norte-americano Henry Ford (1863-1947) construiu um vilarejo a fim de explorar os seringais da região. Poucos anos depois, o negócio deu errado e foi abandonado. Agora vastas áreas de soja e milho começam a dominar a paisagem antes marcada por florestas fechadas e árvores imensas. É como uma replicação do que ocorreu na zona rural de inúmeros municípios do vizinho Mato Grosso.

“Aqui é um ou dois que são contra a agricultura. Esquerdistas. Mas eu não tenho nada contra a esquerda também não. Se não tivesse a esquerda, não tinha graça também”, disse à Agência Pública o vereador Sérgio Cardoso de Campos (MDB), 67 anos, o Serjão, segundo mais votado na cidade em 2020, ele próprio ligado a um grupo empresarial que opera seis fazendas na região, a família Menolli.

Por que isso importa?

  • A Agência Pública está percorrendo a BR-163, entre os estados do Mato Grosso e Pará, e o município de Belterrra é um dos locais dessa rota onde nossa equipe investiga como o tema das mudanças climáticas e meio ambiente vem sendo discutido nas eleições municipais. A região é extremamente marcada por fogo, conflitos e desmatamento, com cidades que registram grande adesão ao bolsonarismo.

Campos é um dos principais apoiadores da campanha à reeleição do prefeito Ulisses José Medeiros Alves (MDB), 48 anos, em coligação com Republicanos, PSB e Avante. O único outro candidato a prefeito é o ex-deputado estadual Antonio Rocha (PP), em uma coligação que, a exemplo de Santarém, faz uma salada ideológica que junta a direita do União Brasil com PT, PCdoB e PV.

A esquerda quase inexiste em Belterra. Rocha, 70 anos, construiu sua carreira na política, mas passou a ser empresário de navegação e hotelaria, declarando agora um patrimônio pessoal de R$ 5,9 milhões. Ele também é um produtor rural, tendo declarado 1.903 cabeças de bovinos e bubalinos, uma fazenda e um trator. Até o início de 2024, Rocha estava no MDB, do qual saiu para enfrentar Ulisses. Seu vice é do PT. As duas campanhas majoritárias passam ao largo das discussões sobre as consequências da chegada da monocultura à região.

O olhar mais detalhado, contudo, mostra como o agronegócio traz uma nova realidade bem mais problemática em Belterra. Desde 2016, segundo professoras ouvidas pela Pública, já são inúmeras as denúncias de que agrotóxicos aplicados por fazendas invadem salas de aula de uma escola municipal hoje cercada por plantações de soja. O episódio mais recente ocorreu em junho, quando professores e alunos relataram náuseas e coceiras pelo corpo.

A poucos quilômetros dali, uma antiga comunidade de pequenos produtores rurais chamada Tracuá hoje praticamente sumiu do mapa. A maioria dos moradores vendeu a terra para fazendeiros da monocultura. Nem o pequeno cemitério usado pela comunidade, o Santa Isabel, passou incólume: agora está inteiramente cercado por um milharal, com pés de milho plantados a poucos centímetros das covas.

Moradora de uma comunidade ao lado da Tracuá, a Morada Nova, a pequena agricultora Ivanilde Silva disse que mora ali há 50 anos e presenciou o esvaziamento da região nos últimos anos. “Essa comunidade aí [Tracuá] se acabou. Aqui tá sendo quase igual lá. Aqui também tá se acabando o pessoal. Aqui tinha muita gente, moço. Gente, gente, gente. Venderam tudinho pros gaúchos. Eu acho que tinha uns 300, 400 moradores aqui. Hoje não dá cem”, disse a moradora.

No lugar está agora “uma só fazenda, um só vaqueiro”. Mas por que eles venderam? “Pra sair daqui, pensando que lá na beira do asfalto ia ser melhor. Entendeu? Eu não sei se ficou melhor pra ir lá.” Ela tem uma pequena roça de mandioca, mas não sabe se vai vingar. O desmatamento, disse a moradora, está tornando a região mais seca, com mais incêndios, do que nunca.

“Antes não tinha esse calor aqui. Você vai ver que até em julho a gente colhia feijão. Era chuva [forte]. Agora, os pés de maniva aí, tudo seco, murcho. Não sabe nem se vai dar batata que a gente plantou no inverno que passou.”

Sua vizinha, Terezinha de Jesus Pereira da Silva, disse temer que o rio Tapajós seque. “Porque eu vejo no jornal que o pessoal está andando longe para pegar água, lá no Amazonas. E nós aqui ainda estamos em setembro, até chegar dezembro…”

Para as moradoras, a culpa da seca é dos desmatamentos provocados pelos gaúchos. É como os paraenses da região denominam os agricultores que vieram do Sul do país. Muitos, na verdade, vieram de Mato Grosso, onde se estabeleceram há décadas vindos do Sul.

Um estudo de campo feito nas comunidades de Tracuá e Jenipapo em 2011 e 2012 pelos professores João Santo Nahum, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e Paulo Roberto Carneiro da Paixão Júnior, da Universidade Federal do Pará (UFPA), detectou que “eram aproximadamente 60 famílias que viviam na localidade de Jenipapo e 40 na de Tracuá antes que o agronegócio da soja chegasse” à região.

“Até 2012, somente duas permanecem em Tracuá […]; em Jenipapo, dez, compostas, em sua maioria, por anciões solitários. Foram três, considerados produtores pequenos, que compraram as terras dos camponeses em Jenipapo e apenas um, considerado grande, em Tracuá.”

O estudo mencionou as diversas dificuldades que as famílias pequenas produtoras enfrentavam para seguir vivendo nessas comunidades, como a ausência de energia elétrica. Ela só chegou depois, por meio do programa Luz Para Todos. A Pública ouviu razão semelhante em conversas com moradores de Belterra.

Escola sofre com contaminação por agrotóxicos

A monocultura vai comendo espaços em todos os lados de Belterra, com consequências diversas. Na escola municipal Professora Vitalina Motta, que fica bem ao lado da rodovia BR-163, o avanço do agronegócio ganha contornos dramáticos e põe em alerta toda a comunidade escolar. Hoje a escola atende cerca de 130 alunos de 6 a 15 anos de idade, todos provenientes de comunidades da região, como Amapá e Portão, inclusive filhos de trabalhadores que hoje dependem das fazendas da monocultura.

A professora Heloise Rocha, ex-presidente do PSOL de Santarém e ativista sindicalista, foi uma das duas pessoas citadas pelo vereador Serjão como supostas críticas ao agronegócio no município. Ela dá aulas na Vitalina há nove anos e começou a ter contato com o problema por volta de 2016, quando uma infestação de insetos tomou conta da escola. As aulas tiveram que ser interrompidas porque os bichos invadiram a caixa-d’água. Tomaram paredes inteiras. Foram necessários dois dias para limpar tudo.

“Nós fomos ouvir os comunitários e eles falaram: ‘Não, isso é normal, é quando eles estão aplicando veneno’, em referência aos fazendeiros da região. Aquilo não podia ser normal. Como assim, uma escola infestada? Aquilo já estava normalizado.”

Depois desse episódio, segundo a professora, houve vários outros problemas, como a fuligem que chega à escola como produto da operação de colheita de grãos e provoca tosses e coceiras. As coisas ficaram ainda mais sérias em janeiro de 2023, quando uma nuvem de veneno invadiu a escola e as aulas tiveram que ser suspensas. O agrotóxico fora aplicado por uma máquina agrícola no campo de soja que fica quase colado ao muro da escola. Em março de 2023, o Ibama anunciou ter multado o fazendeiro Renato Zambra, vizinho da escola, em R$ 1 milhão pela aplicação irregular de agrotóxicos.

Em junho passado, um terceiro episódio de contaminação foi denunciado por professores e alunos da escola, dessa vez atingindo 33 pessoas. Eles foram atendidos na unidade básica de saúde com sintomas semelhantes: dor de cabeça, alergias, náuseas e coceiras.

“Nesse dia, a gente sentiu um cheiro muito forte logo pela manhã, logo que a gente chegou à escola. É um cheiro característico, como o de veneno de barata, de Detefon.”

A professora de geografia Bárbara Leonora Santos Teixeira, que dá aulas na escola desde 2018, presenciou todos os principais surtos de veneno na escola. Ela explicou como todo o processo de ocupação do território acabou por colocar a escola como um alvo dos agrotóxicos.

“A gente tem uma mudança no padrão de produção aqui na região. Tanto nessa região, de Belterra, quanto em Santarém e Mojuí, a mudança ocorreu a partir dos anos 2000. Houve um incentivo tanto do [governo do] estado quanto de empresários locais que passaram a incentivar essa migração de produtores de soja, principalmente de Mato Grosso, da região Sul, por conta das terras que são mais baratas e as características de planalto da nossa região. Aí a gente começa a ver uma substituição da vegetação natural da região.”

A supressão da vegetação, conforme a professora, “não dá nem para ser chamada de desmatamento”, pois “são áreas todas autorizadas, isso tudo acontece com o aval do Estado”.

A professora vê a necessidade de um estudo aprofundado sobre a contaminação do ar e da água e a saúde dos habitantes da região.

“A gente sabe que não é preciso manipular de fato um agrotóxico para haver a contaminação. O vento leva a contaminação, há contaminação do solo, da água. Existem estudos que relacionam áreas de produção agrícola que usam agrotóxico com, por exemplo, uma incidência maior de casos de câncer. É preciso levantar tudo isso. Outra situação que a gente observa relacionada à saúde é o número de autistas na escola. Hoje na escola nós temos um público autista. Em praticamente todas as turmas, agora temos pelo menos um aluno autista.”

A Pública tentou, na última quinta-feira (19), falar sobre esse e outros assuntos com os dois candidatos a prefeito de Belterra, mas eles não foram localizados. Foram deixados recados, tanto na prefeitura quanto no comitê de campanha, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.

Edição: | Fotógrafo:
Magno Borges/Agência Pública
José Cícero/Agência Pública
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