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A Pública analisou os planos de governo de cinco das cidades que mais sofrem com o calor; menos de ⅓ trata do assunto

Reportagem
13 de setembro de 2024
04:00

Ondas de calor matam mais que chuvas. E de maneira silenciosa. “Muito provavelmente, o Rio Grande do Sul neste ano terá mais pessoas que infelizmente vão falecer em função de ondas de calor do que aquelas que faleceram diretamente vinculadas ao incidente das chuvas de maio”, aponta Renato Corradi, diretor no Brasil do Iclei, uma rede global de governos locais comprometidos com a sustentabilidade.

A menos de um mês do primeiro turno das eleições municipais, o país passa por uma nova e intensa onda de calor, chegando a figurar como a região mais quente do hemisfério sul na segunda semana de setembro. Pelo segundo ano consecutivo, o mês veio com temperaturas muito acima da média para o período, com termômetros passando dos 40 ºC em boa parte do Brasil. O calor que temos passado nos últimos anos, ressalta Corradi, não é a mais variação normal de temperatura ao longo do ano. São as mudanças climáticas agindo.

Apesar da gravidade do cenário, se depender dos candidatos a prefeito de cidades que estão passando por picos de calor, a situação pode permanecer ruim ou até piorar. A Agência Pública mergulhou nos planos de governo de candidatos a prefeito de cinco médias e grandes cidades que passaram por ondas de calor sem precedentes desde o ano passado: Rio de Janeiro (RJ), Cuiabá (MT), Corumbá (MS), Unaí (MG) e Balsas (MA).

O resultado: a adaptação não é uma prioridade. Segundo o levantamento, nos cinco municípios analisados, menos de um a cada três candidatos fala diretamente sobre o tema. Dos 26 planos de governo analisados, somente oito abordam, em diferentes níveis de profundidade, as ondas de calor que vêm atingindo as suas respectivas cidades.

A reportagem conversou com especialistas no tema, que apontam: as cidades ainda não estão preparadas para lidar com as ondas de calor, apesar de existirem medidas simples que poderiam ser tomadas para dar mais qualidade de vida à população. Eles apontam também como a forma como as cidades são geridas acaba piorando a situação.

Por que isso importa?

  • Ondas de calor estão relacionadas a mais mortes que as chuvas. Nos últimos anos, mais cidades brasileiras têm passado por picos de calor, cada vez mais frequentes.
  • Levantamento mostra que o tema não é tratado de forma direta pela maioria dos candidatos a prefeito em cidades que têm passado por esse problema.

O Rio de Janeiro continua quente

É impossível falar de ondas de calor no Brasil sem citar o Rio de Janeiro. A capital fluminense, além de registrar com frequência temperaturas acima de 40 ºC – chegou a 42,5 ºC no ano passado –, frequentemente ganha as manchetes por alcançar índices de sensação térmica alarmantes, beirando os 60 ºC. A medição considera a temperatura e a umidade relativa do ar.

Na eleição carioca de 2024, somente quatro dos nove candidatos abordam diretamente o calor, em diferentes níveis de profundidade. A arborização urbana aparece no programa de cinco candidatos e a climatização de ônibus e salas de aula é tópico em sete dos nove planos de governo.

Atual prefeito e favorito à reeleição ainda no primeiro turno, Eduardo Paes (PSD) promete climatizar todas as salas de aulas da cidade e quer criar o programa “ZN Verde”, para “produzir mudas em larga escala para arborizar e reduzir as ilhas de calor na Zona Norte”, a mais quente do Rio.

Seus dois principais adversários são os deputados federais Alexandre Ramagem (PL) e Tarcísio Motta (PSOL).

O ex-diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), apoiado por Jair Bolsonaro, também propõe a instalação de ar-condicionado nas escolas. Seu plano de governo defende a implementação de programas de reflorestamento em áreas degradadas. O foco, no entanto, é especialmente em encostas e margens de rios, sem relacionar isso com as ondas de calor.

Já o programa apresentado por Tarcísio aborda a temática com bastante recorrência. Em uma das seções do plano, o psolista aponta que “as condições de habitabilidade” da cidade estão em risco, questionando como os cariocas vão “suportar as ondas de calor do verão”. O candidato defende a atualização da Estratégia de Adaptação às Mudanças Climáticas municipal e a revisão e efetiva implementação do Plano Diretor de Arborização Urbana, “começando pelas ilhas de calor e regiões mais quentes da cidade”. Tarcísio sugere também a climatização de ônibus e escolas e a implementação de descontos no IPTU para edifícios que, entre outras medidas, “promovam políticas ecológicas de redução do calor”.

Entre os demais candidatos, que não passam de 1% nas pesquisas de intenção de voto, a atenção dada ao tema varia.

O deputado federal Marcelo Queiroz (PP) defende a climatização de ambientes, criação e recuperação de áreas verdes para mitigar os efeitos das ilhas de calor e a construção de infraestruturas que resistam a eventos climáticos extremos, incluindo ondas de calor. 

Carol Sponza, candidata do Novo, também fala em ar-condicionado em escolas e sugere descontos no IPTU, mas não aborda o calor diretamente em seu programa. O bolsonarista Rodrigo Amorim (União), que está com a candidatura indeferida, tem como única proposta no tema garantir ar-condicionado em 100% dos ônibus da cidade.

No campo da esquerda, Cyro Garcia (PSTU) lembra que o “microclima piora” a cada ano e que isso tem relação com a “ausência de vegetação e ampliação da manta asfáltica”, mas não apresenta propostas para resolver o problema. Juliete Pantoja (UP) aborda as mudanças climáticas, mas não cita diretamente as ondas de calor, ainda que proponha a climatização de escolas e replantio de árvores. Já o candidato do PCO, Henrique Simonard, apresenta o plano único do partido para o país, que não fala de mudanças climáticas.

Em “Cuiabrasa”, arborização aparece no plano de todos os candidatos

Entre os municípios analisados pela Pública, o campeão de calor é Cuiabá (MT), que tem registrado as maiores temperaturas do país entre todas as capitais nos últimos anos. No dia 11 de setembro, por exemplo, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) marcou 42,2 ºC em uma das estações de medições da capital mato-grossense. No ano passado, Cuiabá chegou a registrar 44,2 ºC.

O município no Centro-Oeste, que já foi conhecido como “cidade verde”, ganhou recentemente o apelido de “Cuiabrasa”. As mudanças climáticas têm papel preponderante, mas não é só isso: segundo um estudo do Instituto Centro de Vida (ICV), Cuiabá perdeu mais de 55 mil hectares, o equivalente a 17% da sua cobertura vegetal, entre 1988 e 2017. E, segundo o engenheiro florestal Lucas Araújo, que atua no ICV em Cuiabá, esse processo continuou ocorrendo, com outros 7,9 mil hectares perdidos entre 2018 e 2023. 

As últimas gestões municipais, avalia Araújo, adotaram algumas iniciativas de arborização em conjunto com outros órgãos e com a iniciativa privada, mas, por outro lado, promoveram projetos que pioram a arborização. “Como a construção do Contorno Leste, que é uma avenida que extrapola o limite do perímetro urbano. [Esse tipo de construção] também vai fomentar a perda da cobertura vegetal”, aponta.

Para o analista em geotecnologias do ICV, a despeito de medidas ambíguas das últimas gestão, a arborização é uma medida popular entre o eleitorado local, além de necessária para combater as ondas de calor. Não por acaso, a defesa da pauta aparece, com diferente ênfase, no plano de governo dos quatro candidatos a prefeito, de bolsonaristas a petistas.

É o caso do deputado federal Abilio Brunini (PL), apoiado por Jair Bolsonaro, ex-presidente e notório negacionista das mudanças climáticas. Na contramão de seu padrinho político, Brunini dedica boa parte de seu programa de governo ao tema. Logo na introdução, diz que está cada dia mais “mais difícil viver em uma cidade com o clima cada vez mais abafado e quente” e critica o atual prefeito, Emanuel Pinheiro (MDB), por cortar árvores. Diz também que quer construir uma cidade preparada “para [lidar com] os impactos do calor extremo e da escassez hídrica”.

O candidato do PL, arquiteto e urbanista de formação, traz uma série de propostas de combate às ondas de calor, como arborização urbana, incentivos na conta de IPTU para quem adotar medidas sustentáveis e climatização de salas de aula e ônibus.

Posicionado do outro lado do espectro político, o petista Lúdio Cabral também traz a adaptação às ondas de calor em Cuiabá como central em seu programa, lembrando que “a alta temperatura e a baixa umidade do ar” causam impactos na saúde, em especial de pessoas mais vulneráveis, como idosos e crianças.

Lúdio defende uma série de medidas de arborização e reflorestamento para trazer “conforto ambiental”, além de propor a climatização de ônibus e de estações de ônibus. O deputado estadual sugere também uma política municipal de adaptação e mitigação das mudanças do clima.

Eduardo Botelho, do União Brasil, fala em “escolas com menos cimento, mais verde e mais ventilação” e quer incentivar a “arborização no perímetro urbano”. O candidato traz ainda outras propostas relacionadas às mudanças climáticas, mas sem relação direta com as ondas de calor e seus impactos.

Já Domingos Kennedy (MDB), apoiado pelo atual prefeito, fala apenas em arborização urbana e climatização de abrigos de ônibus, sem se aprofundar no tema do calor.

A última pesquisa Quaest, divulgada no final de agosto, traz Botelho com 31%, seguido de Abilio Brunini, com 25%, e Lúdio, com 21%. Kennedy tem 5% das intenções de voto. A margem de erro é de três pontos percentuais para mais ou para menos.

Nas cidades médias, ondas de calor mal aparecem em planos de governo

Além das duas capitais, a Pública analisou também os planos de governo de candidatos de três municípios com histórico recente de ondas de calor e população acima de 80 mil pessoas. Nessas cidades, o tema aparece ainda menos.

Corumbá, por exemplo, chegou a registrar 43,3 ºC em novembro do ano passado. A despeito disso, nenhum dos quatro candidatos do município sul-mato-grossense de 96 mil habitantes falou sobre as ondas de calor que vêm atingindo a cidade. 

O candidato Luiz Antônio Pardal (PP), apoiado pelo atual prefeito, Marcelo Iunes (PSDB), defende arborização urbana e o combate a incêndios florestais, mas não relaciona as medidas ao calor extremo. 

O ex-senador Delcídio do Amaral (PRD), que foi cassado e chegou a ser preso no âmbito da Operação Lava Jato, mas depois foi inocentado, fala apenas em “abrigos nos pontos de ônibus”, proposta que também aparece no plano de André Campos (PL). Já Dr. Gabriel, do PSB, defende que Corumbá se torne uma “cidade carbono zero”, mas nada fala sobre calor.

O cenário é ainda pior em Balsas, que registrou 41,9 ºC em setembro do ano passado, além de ter ultrapassado os 40 ºC na segunda semana de setembro. O município maranhense de 101 mil habitantes tem três candidatos à prefeitura e nenhum deles abordou as ondas de calor.

O candidato do PRD, Alan da Marissol, não propôs nenhuma medida que se relacione com o tema, mesma situação do candidato Professor Francisco Cunha, do Novo. Já o atual vice-prefeito, Celso Henrique (PP), fala em “potencializar os serviços ecossistêmicos e a biodiversidade da cidade” com projetos de arborização urbana, mas não aborda diretamente o calor.

Em Unaí, apenas um dos seis candidatos tratou diretamente do calor em seu plano de governo, ainda que de maneira tímida. A cidade mineira de 86 mil habitantes chegou a registrar 42,6 ºC em novembro de 2023.

Trata-se de Alino Coelho, do PSDB. Ele propõe um programa de incentivo à arborização urbana, que pode “proporcionar sombra, melhorar a qualidade do ar e ajudar a regular a temperatura urbana”. Coelho é apoiado pelo atual prefeito, José Gomes Branquinho, do mesmo partido. Branquinho foi vice de Antério Mânica, ex-prefeito condenado por chacina de quatro fiscais do trabalho, que fiscalizavam fazendas da região.

Os candidatos Calixto Souto (PSB), Andréa Machado (PRD), Chicão Sincero (PT) e Thiago Martins (PL) sugerem diferentes medidas de arborização, mas não falam sobre as ondas de calor. Rafhael de Paulo, do Novo, não traz nenhuma proposta relacionada ao tema.

Cidades não estão prontas para lidar com calor

As cidades estão preparadas para lidar com essa nova realidade? “Infelizmente, não”, aponta Renato Anelli, doutor em arquitetura e urbanismo e coordenador de um grupo de pesquisa que aborda estratégias para a redução das vulnerabilidades das cidades brasileiras às mudanças climáticas na Universidade Mackenzie. “Pelo contrário, inclusive: elas estão agravando essas condições [de calor extremo] à medida em que se faz um processo de verticalização muito denso e que agrava a situação de aquecimento da superfície e do ar”. A isso, explica Anelli, se soma a falta de espaçamento entre os prédios e a redução de áreas verdes nas zonas urbanas. 

Em outras palavras, o calor que vem da atmosfera é sentido de forma mais intensa pela população por conta da maneira como estamos construindo as cidades. Ao invés de se dissipar, o calor permanece mais tempo na superfície, formando as chamadas “ilhas de calor”, em especial nas grandes cidades.

Os prefeitos que serão eleitos em outubro não têm o poder de interromper sozinhos o processo de aumento da temperatura média do planeta. Mas é justamente no âmbito municipal que medidas mais diretas de combate a esse tipo de evento climático extremo podem ser tomadas, apontam pesquisadores. 

“O gestor público no Brasil não incorporou dentro do seu contexto de planejamento territorial, de planejamento urbano, as questões relacionadas ao clima. Com relação às ondas de calor, é menos ainda”, afirma Jean Ometto, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e coordenador científico do AdaptaBrasil, plataforma que reúne informações sobre diversos riscos de impacto das mudanças do clima para cada um dos 5.570 municípios do país.

Fornecimento de água de maneira pública, disponibilização de ambientes climatizados de maneira mais ampla, incentivos a construções que possuam melhor ventilação natural e protocolos de saúde, em especial considerando populações mais vulneráveis ao calor extremo, estão entre as medidas apontadas pelos especialistas ouvidos pela Pública. Eles citam também suspensão de atividades de risco quando temperatura e umidade atingirem certos níveis, mudanças nas leis de zoneamento, criação de planos de ação climática e avanços na comunicação e na educação ambiental e climática como centrais neste novo cenário.

Afinal, ainda que recebam menos atenção do poder público do que extremos climáticos relacionados à chuva, as ondas de calor matam muito mais, e de maneira silenciosa.

Edição:
Tânia Rêgo/Agência Brasil
Ricardo Stuckert/PR
Marcelo Camargo/Agência Brasil

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