São quase dez da noite de uma terça-feira quente em um dos bairros mais pobres da periferia de Rurópolis (PA), a cerca de 950 km da capital, Belém. Cabos eleitorais trazidos de ônibus agitam bandeiras, dançam os jingles da campanha eleitoral no ritmo do tecnobrega e lotam a rua São Paulo, a principal do bairro Bom Jardim, quase todo ele ainda sem asfalto.
Um dos dois únicos candidatos à prefeitura da cidade, José Filho Cunha de Oliveira, o “Zé Filho da Farmácia” (PP), encerra seu discurso de 20 minutos na carroceria de um caminhão que traz, no para-brisas, uma fúnebre frase da Epístola aos Filipenses: “Viver é Cristo, morrer é lucro”.
No palco improvisado estão as mais de três dezenas de candidatos a vereador da coligação, que envolve PP, Republicanos e PL. Um por um, eles foram ao microfone, ligado a oito potentes caixas de som resfriadas por ventiladores, para fazer as promessas de praxe, como a construção de uma creche e o tão sonhado asfalto. Dois deles reclamaram genericamente que adversários estão distribuindo cestas básicas em troca de votos. Nenhum tocou nos temas do desmatamento e das queimadas que assolam o município.
Em sua fala, “Zé Filho” apresentou propostas para saúde, administração e educação, mas também nada falou sobre meio ambiente. Rurópolis registrou, apenas de agosto para cá, mais de 2 mil focos de calor. No ano passado, com 7,7 mil focos, foi tanta fumaça que as pessoas lotaram o hospital local.
Por que isso importa?
- A Agência Pública está percorrendo a BR-163, entre os estados do Mato Grosso e Pará, e o município de Rurópolis é um dos locais dessa rota onde nossa equipe investiga como o tema das mudanças climáticas e meio ambiente vem sendo discutido nas eleições municipais. A região é extremamente marcada por fogo, conflitos e desmatamento, com cidades que registram grande adesão ao bolsonarismo.
Mas o adversário direto de “Zé Filho” também silencia sobre meio ambiente. O atual vice-prefeito da gestão de Joselino Padilha (MDB), o Taká, Erzenir Orben (MDB), é apoiado por partidos que no cenário nacional são antagônicos, pelo menos em tese, como o União Brasil, o PT, o PCdoB e o Avante. Porém, a exemplo do que a Agência Pública já divulgou sobre a disputa em Santarém (PA), a salada ideológica que une o PT à direita também é o prato servido aos eleitores de Rurópolis.
No plano de governo de Orben, as palavras desmatamento e queimadas inexistem. No trecho dedicado ao meio ambiente, ele fala sobre tratamento de lixo, criação de um canil municipal, caminhadas ecológicas e, genericamente, “promover a conservação e preservação ambiental e da paisagem em sintonia com o desenvolvimento local, a segurança alimentar e a agroecologia”.
O vice-prefeito do MDB tem o apoio declarado do governador do Pará, Helder Barbalho (MDB). Ele, o candidato e o prefeito, Taká, são todos do mesmo partido. Belém vai sediar, no ano que vem, a conferência mundial da ONU sobre a emergência climática, a COP30. As eleições municipais demonstram como Helder segue com um pé em cada canoa: ora um árduo defensor do meio ambiente, ora um apoiador de candidaturas favoráveis à expansão do agronegócio e sem compromisso declarado contra o desmatamento, o garimpo e as queimadas.
Município é uma das 15 áreas críticas de decreto do governador do Pará
Em fevereiro de 2023, o governador do Pará assinou um decreto que declarou “estado de emergência ambiental” a fim de reduzir o desmatamento em 15 municípios do estado. Segundo o documento, que teve a duração de 180 dias, esse grupo de municípios concentrou “76% do desmatamento no período de 2019 a 2022 no Estado do Pará, por estarem afetados por condições climáticas que favorecem a propagação de focos de calor e incêndios florestais sem controle”.
Durante os quatro anos de governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), o desmatamento no Pará aumentou 79% em relação aos quatro anos anteriores. A área desmatada no Pará, ainda conforme o decreto, “representa 34% de todo o desmatamento da Amazônia Legal”. Só em 2021, o Pará emitiu 381 milhões de toneladas de CO2, o maior volume desde 2006 e que “equivale a 42% do total registrado na região amazônica”.
Entre os 15 municípios cruciais listados pelo governo do Pará está Rurópolis, com 35 mil habitantes, criado há 50 anos a partir dos projetos de colonização da ditadura militar (1964-1985) ao longo da Transamazônica. Ele fica bem no entrocamento entre a Transamazônica (BR-230) e a rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém).
Empresa de “Neném da Serraria” é alvo de apuração
Embora Rurópolis ocupe essa posição prioritária nas preocupações sobre o desmatamento no Pará, o tema da emergência climática desapareceu da campanha eleitoral do município. O candidato da situação à prefeitura, aliás, leva o desmatamento no próprio apelido: o nome eleitoral de Erzenir Orben é exatamente “Neném da Serraria”, em referência à empresa que ele e sua família mantêm, desde 1986, em uma comunidade no km 74 da Transamazônica.
Uma das classificações secundárias de atividade econômica da Serraria União Cupari é a “extração de madeira em florestas nativas”. Os apoiadores de Orben na cidade dizem que ele só trabalha com madeira legal, oriunda de projetos de manejo florestal. Na internet, ele se apresenta como “empreendedor nos ramos de combustíveis e agroflorestal”.
Em maio passado, a 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), que funciona na Procuradoria-Geral da República (PGR), em Brasília, votou pela realização de mais diligências em uma apuração aberta neste ano pela Procuradoria da República em Altamira (PA) sobre uma pessoa e duas empresas, incluindo a Serraria União Cupari, a fim de “apurar ilícitos na execução de Plano de Manejo Florestal Sustentável”, no qual foram expedidas, pela Secretaria de Meio Ambiente do governo do Pará, 73 guias florestais em áreas rurais de Rurópolis.
Segundo a ata da sessão da 4ª Câmara, a apuração trata de “indícios de fraude em Autorizações para Exploração Florestal visando ‘esquentar’ madeira explorada ilegalmente, provenientes de faixas florestais da União, Unidades de Conservação Federais, que somam aproximadamente 400 hectares desmatados em locais como a Floresta Nacional do Trairão, Florestas Nacionais de Itaituba I e II, Parque Nacional da Amazônia e Parque Nacional do Jamanxim, inclusive com registro de proliferação de estradas clandestinas nas UCs ao redor, a maioria aberta na Reserva extrativistas Riozinho do Anfrísio”.
“R$ 50 por árvore”
Em dezembro passado, Orben apareceu no centro de uma outra investigação, aberta pela Delegacia Especializada de Conflitos Agrários da Polícia Civil de Santarém (PA). Durante a 40ª fase da Operação Amazônia Viva, formada por diversos órgãos do governo estadual, uma equipe da polícia autuou “em flagrante delito” os trabalhadores braçais Junior Alves Pereira e Miguel Morreira de Lima pelo “suposto crime de desmatamento e exploração ilegal de uma área de mata nativa” na Gleba Cupary, na zona rural de Rurópolis, “pertencente à União/Incra”, segundo ofício enviado pela polícia ao Judiciário. Os policiais chegaram à área a partir da análise de imagens de satélite.
No ofício, assinado pelo delegado José Kleidson de Castro, a polícia apontou que Orben foi autuado “por ser o autor intelectual do crime, tendo o domínio do fato”. Ele teria contratado os dois braçais para derrubar as árvores a serem “transportadas posteriormente para sua serraria”. Por ser um crime com pena inferior a quatro anos, todos foram liberados após o pagamento de uma fiança.
Quando foram confrontados pela polícia, Lima e Pereira disseram ter sido contratados por “Nenê”, segundo o relatório policial. Eles levaram a polícia até a serraria de Orben. Lima teria dito à polícia, segundo relatório policial, que recebia R$ 3 mil por mês e que seu colega, Pereira, era remunerado à base de “R$ 50,00 por árvore”. A polícia calculou que a área desmatada atingiu 51 hectares. Quando foram ouvidos na delegacia na presença de advogados, porém, Pereira disse que não era remunerado por Orben e Lima recorreu ao direito de ficar em silêncio. Indagado por que estava voltando atrás, Pereira preferiu o silêncio.
Em seu depoimento, Orben negou ter remunerado os dois braçais para corte de árvores. Disse que conhecia Pereira “há 20 anos” e que ambos já haviam trabalhado para a serraria, três meses antes, em “serviços de manejo florestal”. O vice-prefeito de Rurópolis disse ainda que é sócio administrador da serraria “apenas no contrato social, que a empresa é administrada por um irmão, Altenir”, e que “as tomadas de decisão são da sua genitora”, Luiza. Orben pagou uma fiança de R$ 7,9 mil. A investigação continua.
Orben declarou à Justiça Eleitoral um patrimônio pessoal de R$ 1,4 milhão, incluindo dois lotes rurais de 100 hectares e criação de bovinos.
Sob a alegação de incompatibilidade na agenda, Orben se recusou a falar com a Pública. Sua assessoria foi informada previamente de que um dos temas prioritários da entrevista seria o meio ambiente. A reportagem esteve três vezes no comitê de campanha do candidato, no centro de Rurópolis, em busca de uma entrevista. Depois, a reportagem solicitou ao seu assessor um email para que enviasse perguntas ao candidato, mas não houve resposta. A prefeitura, também procurada por email e telefone, não deu resposta a um pedido de contato com a assessoria do vice-prefeito.
Candidato da direita defende “concessão das florestas públicas”
“Zé Filho da Farmácia”, que aceitou falar com a reportagem em seu comitê de campanha, disse que uma das formas de “melhorar a economia de todo o povo de Rurópolis” é procurar “parcerias com cooperativas de industriais do setor madeireiro” a fim de “estar buscando, via governo federal, a concessão das florestas públicas que hoje margeiam o município”. Isso ocorreria por meio de “projetos de manejo”. Ele disse que não apoia a “exploração ilegal de madeira”.
Incidem sobre Rurópolis duas importantes áreas de conservação: a Floresta Nacional do Tapajós, de 582 mil hectares (23,7% sobre a área de Rurópolis), e a Floresta Nacional do Trairão, de 257 mil hectares (22,9%).
“A gente tem que fazer essa concessão integrando as pessoas que estão vivendo, que já moram lá, os povos tradicionais, integrando também a economia do nosso município, alavancando isso, reativando a indústria da madeira”, disse “Zé Filho”.
Com a madeira, disse o candidato, vai se gerar “emprego e renda, reaquecer um setor que ao longo do tempo foi desconstruído”. Ele também defende a abertura de portos e a utilização do rio Tapajós para escoamento de grãos produzidos em Mato Grosso e no Pará.
“Zé Filho” disse que, 50 anos depois da criação da localidade, dentro do projeto da Transamazônica aberta na selva pela ditadura militar (1964-1985), “ainda estamos vivendo como em 1984”. Segundo o IBGE, em 2021 o PIB per capita em Rurópolis era de apenas R$ 9,4 mil, o que colocava o município na 5.075ª posição entre os 5.570 municípios do país.
A coligação que apoia “Zé Filho” inclui o PL de Jair Bolsonaro, que indicou seu vice. Na segunda-feira da semana passada, a Pública encontrou, na sede do diretório municipal do partido, o deputado federal Lenildo Mendes Sertão, o “Delegado Caveira” (PL-PA). Ele costuma usar uma camiseta preta com o grande desenho de uma caveira branca que lembra a do personagem fictício dos quadrinhos Justiceiro.
“Caveira” criticou o governador Helder Barbalho, defendeu os garimpos e o aumento da área de desmatamento legal das propriedades rurais e recorreu à velha teoria conspiratória sobre supostos interesses estrangeiros na Amazônia.
“O garimpeiro precisa tomar conta do Brasil, tomar conta das nossas riquezas que estão todas escondidas. Temos diversas riquezas que estão sendo escondidas, imagino que para que outros países venham tomar conta do Brasil em algum momento. Não estão interessados em proteger a Amazônia. Estão interessados em proteger as riquezas, que é o nosso minério, que pode movimentar e fazer com que o Brasil vire a primeira economia do mundo.”
O deputado estava ao lado do presidente do diretório municipal, o produtor rural Bartolomeu Martinez. Ele reclamou de Helder e do governo federal, que seriam os responsáveis por multar injustamente proprietários de terras nas quais foram registrados incêndios.
“Se entrar um fogo na área do governo, nós é que somos multados e não temos como recorrer para se sair dessas multas. Esse é o grande crime que eles estão cometendo. A nossa área aqui está toda vermelha, ninguém consegue sacar [empréstimo bancário]. De cada 100 lotes aqui, 90 está com restrição vermelha, [e] em quase todos os casos, não foi culpa daquele agricultor ou daquele colono. São fogos que vêm de um outro lugar. Não existe nada para parar o impacto, para segurar esse fogo, mas ele prejudica todos. E ele [Helder] criou uma lei que eu não consigo mais me defender fazendo um boletim de ocorrência. Então, eu vou ser multado, a minha terra vai ficar com restrição e eu não consigo trabalhar com banco.”
Na política do sudoeste do Pará, Helder e o PT apoiam um candidato dono de uma serraria que mal fala sobre meio ambiente e ainda assim são atacados pela direita. A disputa municipal em Rurópolis revela, em suma, além da quase inexistência da esquerda, uma divisão na própria direita.