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ONGs denunciam sistema de vigilância do Ministério da Justiça; resposta tem sido silêncio

Organizações apontam que o Córtex, foco de série de reportagens da Pública, é “uma violação sistemática” a direitos

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13 de novembro de 2024
06:00

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Há mais de um mês, no último 10 de outubro, encontrei-me casualmente com o secretário nacional de Segurança Pública (Senasp) do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Mário Luiz Sarrubbo, com quem eu nunca havia falado na vida. Ele acabara de dar uma palestra em um seminário do Superior Tribunal de Justiça (STJ). No intervalo, eu o abordei com um pedido de entrevista à Agência Pública sobre o programa Córtex do MJSP, que está sob a sua direta responsabilidade desde que foi nomeado para o cargo, há oito meses, pelo ministro Ricardo Lewandowski.

A secretaria de Sarrubbo é responsável também pelas atividades de inteligência do ministério, a cargo da unidade subordinada Diretoria de Operações Integradas e de Inteligência (Diopi), hoje chefiada por Rodney da Silva. A Pública revelou que essa área de inteligência produziu nada menos que 4,5 mil relatórios sigilosos durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) e outros 1,7 mil somente nos primeiros nove meses do governo Lula.

O conteúdo da absoluta maioria desses documentos é desconhecido e foi blindado, inclusive com o apoio da Controladoria-Geral da União (CGU), pelo “sigilo eterno”, uma prática contrária ao espírito e ao texto da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Tanto Silva quanto Sarrubbo vieram do Ministério Público (Rodney de Goiás, Sarrubbo de São Paulo, onde chegou a procurador-geral de Justiça). O secretário da Senasp e o ministro Lewandowski, é bom repisar, não criaram o Córtex nem a inteligência do MJSP, ferramentas que vieram de governos anteriores e ganharam um impulso extraordinário no governo de Bolsonaro. Mas hoje são os responsáveis diretos por toda essa área no ministério que continua em plena expansão com acúmulo de dados sensíveis sobre milhões de brasileiros.

Pois bem, no STJ abordei Sarrubbo para que falasse sobre o Córtex. Visivelmente contrariado com as reportagens que a Pública começara a publicar no dia anterior sobre o programa, Sarrubbo se recusou a dar uma entrevista. Disse que, primeiro, eu deveria mandar um e-mail para a assessoria de comunicação do ministério. Indaguei se, depois disso, ele iria nos atender, ele respondeu: “A gente marca, vamos ver”. Ele reclamou de novo das reportagens e cortou a tentativa de diálogo.

O email foi enviado no mesmo dia. O ministério respondeu que estava “ajustando dia e horário na agenda do secretário” e que eu receberia uma resposta sobre a solicitação no “início da semana”. Porém, nenhum retorno foi dado até o momento, mais de um mês depois.

Nos dias seguintes ao email, Sarrubbo apareceu em diversos meios de comunicação, inclusive ao vivo em duas emissoras de TV a cabo. Claro que, em todas essas oportunidades, ele não falou nem foi indagado sobre o Córtex e o sigilo sobre os relatórios de inteligência. No último dia 24, ele disse ao Estado de S. Paulo que o Brasil “já se encontra num estágio de máfia”, uma declaração bombástica que produziu manchetes. À CNN, afirmou que a PEC da segurança pública “é essencial para combater o crime organizado”.

Mas o aparecimento mais sensacional de Sarrubbo na mídia ocorreu no dia das eleições municipais, 27. Após o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), ter dito, sem apresentar nenhuma prova, que “o PCC” havia orientado voto em Guilherme Boulos (PSOL), eis que Sarrubbo, aqui de Brasília, saiu falando à imprensa sobre supostas informações em poder do ministério. Ele alegou que os órgãos de inteligência “não indicaram ação do PCC pró-Boulos”.

A rusga eleitoral demonstrou mais uma vez que a inteligência da segurança pública virou um ativo político para diferentes posições no espectro político. Eis outro motivo para intensificar o escrutínio da cidadania sobre todo esse setor que cresce vertiginosamente no país.

Enquanto Sarrubbo tem o Córtex ao seu alcance, Tarcísio tem à sua disposição um seu irmão direto, a “Muralha Paulista”, que, por sinal, funcionou sem decreto regulador durante um ano e meio. Como se fosse um jogo de pôquer, autoridades sacam seus argumentos da “inteligência” da manga a fim de derrotar o adversário com uma surpresa quase impossível de ser averiguada de forma independente.

É curioso perceber como Sarrubbo falou à imprensa sobre o avanço da criminalidade no país justamente quando as práticas do seu setor foram questionadas pela Pública. Isso remete a uma característica marcante do chamado “subsistema de inteligência da segurança pública”. Sempre que se questiona a regularidade ou a transparência do que faz esse setor, alguém saca a carta do “combate ao crime”. Num país aterrorizado e oprimido pela violência, no qual pessoas são metralhadas no seu maior aeroporto, o argumento da segurança pública parece funcionar. Cabe perguntar: a que preço?

Especialistas e entidades não governamentais que trabalham com o tema conhecem bem essa estratégia e não deixaram de notá-la novamente no “caso Córtex”. Na última sexta-feira, em uma nota demolidora, a Coalizão Direitos na Rede (CDR) ressaltou que “o tratamento de dados pessoais no âmbito da segurança pública não deve servir como justificativa para uma coleta massiva de dados com menos parâmetros de transparência e segurança”.

A CDR é uma rede formada por mais de 50 organizações acadêmicas e da sociedade civil em defesa dos direitos digitais, tendo como temas principais de atuação o acesso à informação, a liberdade de expressão, a proteção de dados pessoais e a privacidade na internet. A nota da CDR, emitida a propósito das reportagens recentes da Pública, é a mais poderosa advertência já feita sobre os perigos do Córtex e o papel do MJSP nessa história.

“As entidades que subscrevem essa carta compreendem que o Córtex está em desacordo com os preceitos constitucionais, legais e da segurança de informação”, afirmou a nota, subscrita também por uma importante entidade de advogadas e advogados preocupados com o tema dos direitos humanos, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). A nota solicitou que o governo federal e o MJSP “reavaliem” tanto a “utilização quanto as diretrizes de funcionamento, proteção de dados, segurança informacional e transparência do Sistema Córtex”.

“O Sistema Córtex e sua atual gestão representam uma violação sistemática à proteção de dados pessoais, direito fundamental consagrado no texto constitucional pela Emenda nº 115/2022 e referendado pelo Supremo Tribunal Federal. Ao permitir o tratamento de dados pessoais (entre eles potenciais dados sensíveis) sem medidas de transparência, governança de dados, segurança de informação, entre outros preceitos fundamentais, a coordenação do Córtex e órgãos estão violando de forma frontal um direito tão caro e ainda em concretização na sociedade brasileira”, pontuou a nota.

“Como um sistema que promove a vigilância massiva, o Córtex avança nos caminhos de potencializar a violência de Estado e repressão política no Brasil. A ferramenta cria possibilidades de perseguição a jornalistas, defensores de direitos humanos, militantes e ativistas de movimentos sociais, assim como agentes políticos em um país que vive cada vez mais violência dessa ordem. […] Na defesa dos direitos mais essenciais para efetivação da democracia, não há lugar para vigilância massiva, predatória e irrestrita.”

É difícil ser mais direto e incisivo sobre esse assunto do que foi a nota da CDR. Também é impossível relativizar o silêncio programado do Ministério da Justiça. Mas o quadro pode ser ainda pior. Pode ser que tanto o secretário Sarrubbo quanto o ministro Lewandowski entendam que não há problema algum no atual sistema e que todos os seus críticos estão errados. Neste caso, regredimos rapidamente ao obscurantismo da gestão Bolsonaro.

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