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Se você se interessa, como eu, por acompanhar a grande batalha das pessoas de diferentes cantos do mundo contra as Big Techs, deveria prestar atenção no Quênia. Este país de 52 milhões de habitantes tem agido para pressionar empresas como a Meta, abrindo espaço para ações semelhantes em outros cantos.
O Quênia tem uma particularidade: por ser um país populoso, que fala inglês e com relativa penetração da internet para os padrões do continente (22 milhões de pessoas, mais de 40% da população), muitas empresas contratam moderadores locais para filtrarem tudo que tem de pior nas redes sociais, além de treinar Inteligência Artificial. Esses trabalhadores passam horas vendo vídeos e fotos horripilantes ou tagueando imagens banais, como um sofá, pra ensinar os robôs a reconhecer, de fato, um sofá. Apenas uma empresa operando no país, a Sama, empregava mais de 3 mil moderadores por salários cinco vezes menores do que aqueles que faziam o mesmo trabalho nos Estados Unidos.
Mas é justamente por essa exploração de mão de obra precarizada do mundo virtual que o Quênia vai se tornar um interessante campo de batalha jurídica nos próximos meses. Em 3 de abril, a Corte Suprema do país decidiu aceitar uma demanda judicial feita por dois etíopes contra a Meta por promover conteúdo que incitou violência étnica e mortes na Etiópia entre 2020 e 2022. A empresa americana lutou até a última instância alegando que suas regras de uso limitam a jurisprudência aos Estados Unidos. Não colou.
A fundamentação dada pela Justiça queniana é justamente essa: o país pode abraçar a causa a respeito do país vizinho devido à grande quantidade de trabalhadores que a Meta emprega no país. Trata-se, portanto, de assunto de interesse público.
A decisão é relevante porque mostra que, a despeito da aliança com Trump, a Meta vai seguir tendo que responder à Justiça de diferentes países se quiser valer-se de sua força de trabalho e de sua clientela.
Quem processa a empresa é Abrham Meareg, filho de Meareg Amare, professor universitário na Universidade de Bahir Dar, no norte da Etiópia, assassinado na sua casa em 2021, durante a guerra civil no norte do país depois de ter sofrido doxxing, tendo seu endereço publicado no Facebook junto com mensagens ameaçadoras. Outro demandante é Fisseha Tekle, ex-pesquisador da Anistia Internacional, que recebeu ameaças de morte pelo Facebook pelo seu trabalho em defesa dos direitos humanos na Etiópia. Ele diz que a rede social é responsável pela insegurança que o impede de voltar a viver em seu país.
Ambos pedem uma indenização de 2,4 bilhões de dólares, mais de 14 bilhões de reais. O processo teve apoio de grandes organizações que defendem o direito à informação e liberdade de expressão, como Anistia Internacional, Artigo 19 e Global Witness. Para Mandi Mudarikwa, da Anistia Internacional, a decisão “serve de aviso às grandes plataformas digitais de que a era da impunidade terminou”.
Já Abrham Meareg demonstrou, em entrevista ao Guardian, sua revolta contra a empresa americana: “É inaceitável que a Meta pretenda se colocar acima da lei no Quênia”, disse. “Vidas africanas importam.”
Uma das bases do processo judicial é uma investigação do site Bureau of Investigative Journalism que provou que a Meta sabia que havia conteúdo incitando ódio e espalhando desinformação na região de Tigray, piorando a guerra civil em curso. Procurada na época pelo site investigativo, a empresa limitou-se a dizer que havia investido em medidas de segurança. Na época, a whistleblower Francis Hauguen, ex-funcionária do Facebook, deu um forte depoimento ao Congresso Americano, onde afirmou que a empresa estava “literalmente incendiando a violência étnica” por se recusar a investir em supervisão adequada de moderação fora dos Estados Unidos.
Mas antes mesmo deste processo judicial, a Meta enfrenta outros casos de grande repercussão. Em 2023, 185 moderadores de conteúdo quenianos que trabalharam para a empresa terceirizada Samasource de 2018 a 2023 processaram a Meta como “efetiva empregadora” responsável pela situação precária a que eram submetidos. Os relatos – e os números – são chocantes. Reproduzo aqui o que um desses trabalhadores afirmou ao Guardian. “Lembro da primeira vez que vi um assassinato num vídeo ao vivo… Fiquei em choque, levantei e comecei a gritar sem nem perceber. Perdi a noção de onde eu tava e até de quem eu era”.
Muitos afirmam terem sido ludibriados com promessas de um trabalho em serviço de atendimento ao cliente, algo também muito comum por lá. Eles passavam 8 horas por dia assistindo vídeos de suicídios, violência, abuso de crianças. Quatro destes moderadores desenvolveram tripofobia, uma fobia de ver círculos pequenos juntos, por terem assistido vídeos repetidos de corpos sendo decompostos durante suas horas de trabalho. No total, 144 trabalhadores foram examinados e 100% foram diagnosticados com transtornos depressivos, ansiedade ou estresse pós-traumático.
“Em qualquer outra indústria, se descobríssemos que 100% dos trabalhadores de segurança estão sendo diagnosticados com uma doença causada pelo trabalho, os responsáveis seriam forçados a renunciar e enfrentar as consequências legais por violações em massa dos direitos humanos”, afirmou Martha Dark, da ONG britânica Foxglove, que também faz parte da acusação.
A Meta não ficou parada diante deste processo. Em março de 2024, fez uma ação de lobby de alto nível, enviando uma delegação liderada por seu então presidente de assuntos globais, Nick Clegg – ex-vice-primeiro-ministro britânico, país que tem laços culturais com o Quênia pelo passado colonial. Eles se reuniram com o presidente queniano William Ruto e legisladores. O assunto, oficialmente, era promover uma parceria com o governo. Mas, meses depois, o Congresso e o próprio presidente passaram a defender os interesses da Meta. No final do ano passado, o Senado propôs uma mudança na lei trabalhista que explicitamente proibia funcionários terceirizados empregados no país de processarem os “clientes” das suas empresas – ou seja, as Big Techs. O líder da maioria no Senado, Aaron Cheruiyot, defendeu o projeto de lei num comentário de Twitter: “Não seria viável conciliar competitividade global com o cumprimento de nossa legislação trabalhista? Que fundamento justificaria a insistência em processar terceiros, considerando que a relação empregatícia existe apenas entre o trabalhador queniano e a empresa local?”
“Os líderes da indústria insistem que, para atingirmos todo nosso potencial, eles pedem só isso como nação”, escreveu. Além da Meta, a Open AI, Microsoft, Google, Apple e Intel também buscam mão de obra no país, que tem uma taxa de mais de 60% de desemprego entre jovens. “Não seria do interesse do crescente número de jovens desempregados fazer o necessário para abrirmos mais oportunidades”. É difícil saber como a Meta reagirá se esses dois processos judiciais forem perdidos no país africano. Mas, é interessante observar que lá, como aqui, as Big Techs perceberam que é mais fácil convencer congressistas a se curvarem aos seus interesses do que a Justiça. E, também por lá, parece que os interesses dessas empresas têm levado a uma discórdia entre os poderes que vale a pena observar.