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Advogada Letícia Ueda Vella analisa os obstáculos ao aborto legal para crianças vítimas de violência sexual

Entrevista

A cada seis minutos, uma criança é vítima de abuso sexual no Brasil. Nove em cada dez são meninas, a maioria negras e com menos de 14 anos de idade. Esses dados alarmantes são do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2024 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Sem redes de proteção e assistência eficazes, parte dessas vítimas enfrentam ainda a negação do aborto legal, garantido pela legislação brasileira desde 1940 em casos específicos, inclusive quando a gravidez é resultado de estupro.

Na prática, esse direito muitas vezes não é respeitado, como no caso recente, de uma menina de 13 anos, vítima de estupro em Santa Catarina, que enfrentou ação judicial para barrar seu acesso ao aborto.

Em entrevista ao Pauta Pública, Letícia Ueda Vella, advogada do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e integrante da campanha Criança não é mãe, aponta como redes anti-direitos atuam articuladamente para impedir o acesso ao aborto legal, e como o Estado tem se omitido da responsabilidade de garantir um direito previsto na legislação. “Não estamos falando de um contexto de descriminalização, mas da defesa daquilo que já está previsto na legislação, que é a proteção dessas crianças e a garantia e de seus direitos”, destaca.

Vella também traz reflexões sobre infância, justiça, saúde pública e democracia, chamando atenção para a importância de articulações políticas como a iniciativa Criança não é mãe, que lançou em 21 de maio a campanha Maternidade Não É Coisa de Criança. A campanha também mobiliza contra o Projeto de Lei 1904/2024, que equipara o aborto legal ao crime de homicídio, mesmo em casos de estupro. Leia os principais pontos e ouça o podcast completo abaixo.

EP 170 Tem criança na sala – com Letícia Ueda Vella

Advogada analisa o atual cenário político em relação ao combate ao abuso infantil e o direito ao aborto legal no Brasil

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Qual é o objetivo da campanha Criança não é mãe e por que ela é tão importante nesse momento?

A campanha já vem de longo prazo [2020], mas ganhou bastante visibilidade no último ano, especialmente no contexto da tentativa de aprovação do regime de urgência do PL 1904, que estabelecia uma certa limitação de acesso ao aborto em casos de estupro, que já estão previstos em lei desde 1940. A campanha tem por objetivo promover o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes e principalmente a gravidez no contexto da infância e adolescência.

É uma campanha que também é espelhada e inspirada no movimento latino-americano chamado Niñas, No Madres, que tem bastante visibilidade e tem atuado em diversas casas de meninas, que tem seu acesso ao aborto legal vedado em alguma medida, ou por restrições legais, ou por imposição de barreiras indevidas. A importância dessa campanha reside principalmente nos dados extremamente preocupantes de violência sexual contra meninas e crianças adolescentes no Brasil e também dados extremamente preocupantes sobre gravidez na infância e adolescência.

A gente está falando de uma realidade dramática que precisa ser urgentemente enfrentada com seriedade pelo Estado brasileiro e pela sociedade brasileira como um todo. Por isso, a importância da campanha no momento atual.

Temos visto uma forte investida contra o aborto legal, inclusive de crianças e adolescentes. Parece uma operação meio orquestrada entre profissionais de saúde, advogados, ativistas de direita. É isso mesmo? Essas pessoas se articulam para impedir o aborto, inclusive em casos previstos na legislação?

Sim. Podes ver a articulação dessas redes, que eu vou chamar de redes anti-direitos, que tentam vedar o processo de crianças e adolescentes e de mulheres, ou pessoas que podem gestar, em geral, ao aborto legal, em vários sentidos.

Primeiro, é possível verificar a presença dessas organizações e dessas redes dentro das próprias instituições. Por exemplo, o Poder Legislativo é extremamente marcado para um movimento institucional de tentativa de imposição de barreiras de acesso ao aborto da forma como ele já tá previsto em lei. Então o PL 1904 é um exemplo, a PEC 164 [que estabelece o direito à vida desde a concepção], é outro exemplo e foram duas questões que a gente enfrentou no ano passado.

Podemos verificar também o comportamento de juízes, juízas que não necessariamente compõem essa rede, mas que em alguma medida posicionam-se, de maneira a impedir o acesso ao aborto legal também institucionalmente dentro do Poder Judiciário. Por exemplo, o caso de uma menina no Goiás – que agora o Conselho Nacional de Justiça determinou a abertura de um procedimento administrativo para investigar tanto a conduta da desembargadora quanto da juíza em relação ao impedimento de acesso ao aborto legal dessa menina. Claro que essa ligação entre juízes e redes anti-direitos, ela não pode necessariamente ser feita, mas a gente consegue ver como essa ideologia está permeada dentro das instituições.

Outro caso recente aconteceu em Santa Catarina, onde a gente pode ver essa articulação dessa rede anti-direitos nesse mesmo sentido. Primeiro tentando uma influência diretamente com a família e com aquela criança. E, quando isso não funciona, com o acionamento das instituições para tentativa de imposição de barreiras de acesso ao aborto legal, com uma litigância excessiva. Apresentação de processos judiciais, proposituras de ações, justamente com o objetivo de impedir que o serviço de saúde garanta ali o acesso a esse direito.

Como você avalia o posicionamento do governo Lula em relação a essas pautas?

A chegada do governo Lula inicialmente foi extremamente comemorada pelo movimento de mulheres, especialmente considerando que grande parte dos votos também foi em razão de uma mobilização do movimento feminista em prol da eleição de um governo que nos parecia mais progressista em relação às nossas pautas. Infelizmente, apesar da gente ter uma grande expectativa em relação a avanços em direitos sexuais e reprodutivos, e mais especificamente em relação à pauta do aborto e à pauta do aborto legal, o que a gente pode ver do Poder Executivo é um comportamento muito aquém da garantia de direitos que a gente esperava.

A gente esperava que esse governo novo eleito poderia em alguma medida garantir aquilo que tá previsto em lei. Não estamos falando aqui de descriminalização, porque isso a gente entende que em outra esfera, mas estamos falando de garantia de um direito que está previsto desde 1940 para todas as mulheres e meninas. O que a gente verifica é que apesar dos dados, apesar de se tratar de uma pauta de saúde pública, apesar disso colocar milhares de mulheres e meninas em risco, apesar da gente ter uma dificuldade enorme de acesso ao aborto legal no Brasil, a gente não viu nenhum avanço do governo em relação a este tema. A Resolução 258 [ que define a obrigatoriedade ao direito à interrupção da gravidez em casos previstos na Constituição], apesar da dificuldade de aprovação, está vigente. Agora é papel do governo implementar.

É isso que estamos tentando travar de diálogos com o governo federal. A gente espera então que agora seja implementado, porque não adianta dizer no contexto internacional que estamos fazendo e na hora de implementar e colocar dentro da política pública isso não acontecer, e isso é uma mera resolução que está prevista no papel.


Mais de 70% das meninas, vítimas de violência sexual, são negras. De que maneira raça e classe atravessam essa estatística no Brasil?

Raça e classe atravessam todas as estatísticas de violação de direitos humanos no Brasil. Do ponto de vista da maternidade na infância e adolescência, isso não deixa de ser a regra novamente, infelizmente. Não há como a gente olhar para esse tema sem racializar e sem olhar para essa questão da classe e entender que quando estamos falando de quais são as principais meninas vitimadas, estamos falando principalmente dessa intersecção.

É preciso olhar para políticas públicas que racializem, que deem nome, cor e classe para essas meninas, para que se possa efetivamente fazer o devido enfrentamento da violência sexual e garantia do acesso ao aborto legal no Brasil. Como todo o tema de direitos humanos, essa é uma análise central. Quais são as políticas públicas intersetoriais que tão acontecendo dentro do Poder Executivo para garantir o acesso dessas meninas ao aborto legal? Porque são majoritariamente meninas negras a quem é negado esse acesso. São majoritariamente meninas negras que se tornam mães tão precocemente.

São majoritariamente meninas negras que por serem mães abandonam, têm altos índices de evasão escolar. Que tem problemas de saúde, depressão em decorrência da gravidez precoce, da gravidez na infância e adolescência. Então, a racialização é essencial pra gente pensar tanto no enfrentamento do problema, quanto também para fazer uma análise qualificada do que estamos vivenciando na realidade brasileira.

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