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Entrevista

Hip-Hop aponta caminhos para construção de políticas públicas nas periferias, diz escritor

Autor do Livro Vermelho do Hip-Hop analisa a histórica perseguição à cultura negra e periférica na história do Brasil

Entrevista
19 de outubro de 2025
17:00

Em várias cidades brasileiras, avançam projetos como as chamadas “lei anti-Oruam”, apontadas por pesquisadores como tentativas de criminalizar expressões periféricas. Enquanto isso, outras ofensivas semelhantes ganham corpo nas casas legislativas do país, a exemplo da CPI dos Pancadões, em São Paulo, que trata os bailes funk como problema de segurança pública, e tramita desde maio de 2025.

Segundo um levantamento da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMC Racial), do início de 2002 a maio de 2025, foram identificadas 130 proposições legislativas que tentam criminalizar o funk. Essa onda de censura reacende uma ferida histórica do Brasil. Desde o período colonial e mesmo após a abolição da escravidão negra e indígena, as manifestações artísticas destas populações foram criminalizadas no país sob diversos argumentos, desde a “manutenção da ordem pública” à “moral e aos bons costumes”.

A capoeira, por exemplo, já foi tipificada como crime e o delito de vadiagem, com o uso do Código Penal de 1890 para perseguir pessoas negras recém-libertas, que portavam instrumentos ou tocavam tambores nas ruas.

No Pauta Pública desta semana, o jornalista e antropólogo Spensy Pimentel analisa esse processo de perseguição à cultura periférica e mostra como o movimento hip-hop, que completou 40 anos no Brasil, segue sendo uma ferramenta de pertencimento, consciência política e resistência. Autor do “Livro Vermelho do Hip-Hop”, Spensy defende que é preciso lutar por espaço e dignidade para uma população que foi historicamente marginalizada.

“A perseguição às artes negras e indígenas é muito antiga [porque] sempre tiveram um grande potencial de mobilização de corpos e espíritos. Por isso, não surpreende que, num momento de ascensão da extrema direita e do supremacismo branco, esse processo se reviva[…]”. As formas de organização do hip-hop, segundo ele, dialogam com experiências políticas anteriores, como os Black Panthers [Panteras Negras], e apontam caminhos para pensar políticas públicas que realmente melhorem a vida nas periferias, em vez de apenas estimular a presença violenta da polícia nesses territórios.

Leia os principais pontos e ouça o podcast completo abaixo.

EP 188 Criminalização da cultura periférica

Autor do Livro Vermelho do Hip-Hop analisa a histórica perseguição à cultura negra e periférica na história do Brasil

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O “Livro Vermelho do Hip Hop” foi escrito em 1997 e lançado uma nova edição agora em 2025. Nesses quase 30 anos pesquisando o Hip Hop, quais foram as principais mudanças que aconteceram nessa cena?

Falar hip-hop engloba vários elementos, como o rap, a arte dos DJs e MCs, o grafite, o breaking e outras atividades também. Mas, principalmente falando dessas três, o rap se tornou aquilo que alguém lá no livro chama de música popular mundial, quer dizer, tem uma referência mainstream dentro da indústria da música. Se você vai a todas as listas dos maiores produtores de hits, de todos os tempos, hoje, tem uma maioria, literalmente uma maioria de rappers, superando muitos artistas do rock, muitos artistas do jazz, artistas clássicos, que às vezes as pessoas imaginam que fossem artistas ainda de referência, mas foram superados efetivamente pelos rappers. O grafite também passou a influenciar o design de tal maneira, num mundo que está em todas as partes e integra o nosso cotidiano. Esses artistas estão também integrados no circuito mainstream de artes.

O espaço marginal que o hip-hop ocupava, por um lado, foi superado, mas por outro continua. Tem algo paradoxal. Ao mesmo tempo que ele ocupa esse palco principal hoje, em muitos aspectos, a marginalização continua. Hoje, há leis reconhecendo alguns dos aspectos do hip-hop como, por exemplo, as batalhas de rima, como parte do patrimônio cultural imaterial do Brasil e dos estados, conquistando muitos jovens. Se você vai hoje às batalhas de rima, você vai ver que, embora algumas referências do rap sejam dos anos 90, é possível perceber novas obras, novas ideias e novos produtos ainda sendo produzidos e influenciando as mais diversas artes.

Estamos vendo no Brasil uma crescente criminalização da cultura periférica. Além da lei “anti-Oruam” e CPI dos pancadões em tramitação neste ano, temos os dados de que entre 2002 e 2025 foram identificadas 130 proposições legislativas, por exemplo, para criminalizar o funk. Na sua opinião, ao que isso se deve isso?

A perseguição às artes negras e indígenas, de uma forma geral, é muito antiga, remonta à colonização. A gente precisa perceber que quando estamos falando do funk e do rap que são derivados do hip-hop, estamos falando de artes que são consideradas periféricas.

Artes que têm a sua raiz negra e indígena. Essas músicas e danças eram perseguidas desde sempre, porque elas tinham um potencial de mobilização de corpos e espíritos, o que era incrível.

Não é à toa que, no século XVI se tem notícias de rebeliões indígenas que eram rebeliões lideradas por xamãs, que conclamavam a população indígena das comunidades para deixarem aquele trabalho que estava sendo imposto pelos europeus e voltarem aos seus costumes tradicionais, cantando e dançando. Da mesma forma, entre as populações africanas, as escravizadas. Em 1739, a Rebelião de Stono, por exemplo, na América do Norte, em que a mobilização aconteceu a partir dos tambores. Os tambores chamaram as pessoas para a rebelião. E os colonizadores perceberam isso. Tanto que, no ano seguinte, começaram a ser aprovadas nas várias colônias ali, leis que proibiam a população escravizada, justamente, de tocar seus tambores. Isso, inclusive, tem efeitos, que a gente discute no livro. Essa repressão faz parte da história da música negra e da música indígena.

Então, não é de espantar que, quando a gente chega num momento polarizado, num momento de ascensão, hoje, dessa extrema direita, desse supremacismo branco, que a gente passa, que isso se revive. Junte-se a isso o abandono também que os bairros de periferia vivem no Brasil, uma associação distorcida, que às vezes é feita entre essas formas de arte e o crime organizado, por parte de representantes de um Estado que muitas vezes não assume as suas responsabilidades diante dessas populações. Muitas vezes essas artes ficaram relegadas em determinados ambientes e foi exatamente pelo abandono do poder público, pela indiferença do poder público a elas.

Tivemos um momento de apoio a essas artes, por exemplo, com projetos dos Pontos de Cultura, ainda da época do ministro Gilberto Gil, cuja elaboração inicial teve apoio, inclusive, de gente que estudava hip-hop e se mobilizou junto ao movimento. Então, hoje vemos um apelo grande para certos políticos, que fazem barulho junto a um certo eleitorado, perseguindo essas manifestações, em vez de tentar entender que tipo de apoio elas precisam para, justamente, florescer e ter, uma politização positiva.

Às vezes, as pessoas reclamam sobre as letras, a qualidade das letras, etc. Grupos como “Racionais MCs” e outros vários que surgiram não foram jovens que simplesmente, do nada, começaram a ter acesso a uma série de informações. Você tinha pessoas mais velhas que se aproximavam desses jovens, que percebiam o potencial e que os apoiavam. Gente como Milton Salles, como Edson de Deus e tantos outros militantes ligados ao movimento. E, por outro lado, os jovens negros que se juntaram a esses jovens e propiciaram que eles tivessem também uma formação política, para que as suas obras florescessem. A discussão que precisamos ter é o que fazer para que essas artes possam florescer de uma maneira também que seja admirável.

Em vez desses projetos de leis que proíbem manifestações culturais, quais políticas públicas você enxerga que poderiam efetivamente fortalecer a juventude periférica, a juventude do hip-hop, sem recorrer à censura, obviamente.

Desde o início dos anos 90, já fazemos muitas coisas em relação ao hip-hop. Eu diria que o Brasil é um país pioneiro e exemplar, no que tange a políticas públicas que dialogam com as formas de organização do hip-hop. Elas dialogam com formas de organizações políticas que, pouco antes do surgimento do hip-hop, que só tinham proeminência nesses bairros negros e latinos, como os Black Panthers.

Então, a chave, justamente, eu creio, pra pensar nessas políticas públicas, vai nesse caminho. Porque, se você vai, por exemplo, ao programa dos Black Panthers, você vai ver que a demanda do movimento Black Power era uma demanda por políticas públicas nos bairros. Políticas públicas que efetivem de fato uma transformação dessas comunidades. Da mesma maneira, a gente tem uma série de políticas que seriam necessárias, e isso já está sendo muito dito por movimentos sociais de vários ramos, do que deveria ser feito nas periferias para combater, por exemplo, a influência do crime organizado e propiciar que as pessoas tenham uma vida digna sem correr determinados riscos seríssimos, que correm justamente quando ficam ali abandonadas, podendo ser coagidas pelo crime organizado, nas suas mais variadas expressões.

Então, me parece evidente que o acesso a diversas políticas públicas, começando por políticas públicas de acesso à educação e à cultura de melhor qualidade nas periferias, certamente se contraporem a essas influências que são tão demonizadas e tão combatidas por certos políticos, só de boca. Porque, na prática, qual a contribuição que essas pessoas estão dando para que, efetivamente, a vida nas periferias melhore, além de instigar a polícia a chegar nesses locais e matar e ferir as pessoas?

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