Uma pesquisa feita com cerca de 300 Yanomami de nove aldeias na região do alto rio Mucajaí, em Roraima, apontou que todos os indígenas estão contaminados com mercúrio. O grupo de 47 espécies de peixes consumido pelos indígenas também está contaminado.
“Isso significa que o mercúrio usado pelos garimpeiros está contaminando toda a biota, todo o pescado, e a população, quando ingere tais alimentos automaticamente, está se contaminando. Os invasores que atuam no território com a garimpagem ilegal de ouro estão deixando sua marca, provocando danos importantes na natureza e nos indígenas”, disse o médico sanitarista e doutor em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Paulo Cesar Basta, coordenador da pesquisa.
Por que isso importa?
- A contaminação por mercúrio pode ter relação com o desenvolvimento cognitivo de crianças em fase de desenvolvimento.
- Substância é usada largamente no garimpo.
O estudo foi realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) em parceria com a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio e apoio da Hutukara Associação Yanomami, da Texoli Associação Ninam de Roraima e do Instituto Socioambiental (ISA).
A coleta de mechas de cabelo dos indígenas para a análise laboratorial foi feita em outubro de 2022, último ano do governo Jair Bolsonaro, no auge da invasão garimpeira que levou a uma grande crise humanitária com elevados índices de desnutrição e mortalidade no território.
A contaminação por mercúrio foi detectada “em homens, mulheres, crianças, adultos e idosos, sem exceção” e “a ingestão de mercúrio foi de 2,1 a 3,1 vezes maior do que a dose de referência preconizada pela US EPA”, a agência de proteção ambiental do governo norte-americano.
“Enfocando nos extratos populacionais mais vulneráveis aos efeitos do mercúrio, mulheres em idade fértil, crianças de 6 a 12 anos e crianças de 2 a 5 anos ingerem 2,7, 2,9 e 2,1 vezes mais mercúrio [respectivamente] do que a dose considerada segura pela agência [US EPA]”, concluiu a pesquisa. Do total estudado, apenas “três participantes [1% dos 287 indígenas avaliados] apresentaram níveis de mercúrio abaixo de 1,0 μg/g, [o] limite recomendado”.
Embora o estudo não faça uma relação direta de causa e efeito, também chamou atenção dos pesquisadores que nenhuma das 58 crianças indígenas pesquisadas, todas contaminadas por mercúrio, “atingiu um nível satisfatório no quociente de inteligência”.
“Dentre as 58 crianças para as quais foi possível estimar o Quociente de Inteligência Total (QIT), 55,2% apresentaram déficit de inteligência; 34,5% foram consideradas com inteligência limítrofe; e 8,6% expressaram índice de inteligência mediano inferior. Somente um menino de sete anos apresentou índice de inteligência considerado mediano para a idade.”
A contaminação pelo mercúrio pode ser um dos fatores dos problemas de cognição. “Em nosso estudo, as alterações neurológicas foram contrastadas com as concentrações de mercúrio detectadas nas amostras de cabelo dos participantes e revelaram associação estatística significativa entre déficits cognitivos e alterações somatossensoriais com os mais elevados níveis de exposição ao mercúrio. Em outras palavras, indígenas com níveis mais elevados de mercúrio nas amostras de cabelo apresentaram déficits cognitivos e polineuropatia periférica com mais frequência.”
Outros achados causam grande preocupação. “A análise da situação de saúde dos menores de 11 anos indica que mais de um quarto das crianças encontrava-se com anemia, quase metade (43,8%) apresentava déficits de peso para idade e quase 80% apresenta déficits de estatura para idade, mantendo o mesmo padrão de desnutrição descrito anteriormente por diferentes autores, em diferentes locais na Terra Indígena (TI) Yanomami.”
O estudo apontou que “a cobertura vacinal foi baixíssima. Apenas 15,5% das crianças que apresentaram a caderneta de saúde para conferência estavam com as vacinas do calendário nacional de imunização em dia. Esse cenário de vulnerabilidade aumenta exponencialmente o risco de adoecimento das crianças que vivem na região e potencialmente pode favorecer o surgimento de manifestações clínicas mais severas relacionadas à exposição crônica ao mercúrio, principalmente nos menores de 5 anos”.
O estudo apontou também que 61% dos Yanomami “consomem água diretamente do igarapé/rio, 70% não têm banheiros no domicílio e 70% dos dejetos humanos são descartados em locais inapropriados, tais como no mato ou no entorno das casas”.
A pesquisa lista uma série de recomendações ao governo federal, como “a interrupção imediata do garimpo e do uso do mercúrio, assim como a desintrusão de invasores da TI Yanomami. A interrupção da atividade garimpeira, bem como a desintrusão das áreas afetadas, são ações essenciais, todavia, não são suficientes se não houver garantia de segurança e soberania ao povo dentro de seu próprio território”.
Ainda no campo das medidas emergenciais, o estudo apontou ser “necessário que o Estado brasileiro – por intermédio de ações intersetoriais, incluindo Ministério da Justiça, Ministério dos Povos Indígenas, Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Saúde e outros órgãos – busque estabelecer uma reorganização nos territórios afetados, incluindo a implementação de ações de recuperação dos equipamentos públicos disponíveis na região, tais como: postos de fiscalização da Funai, escolas, pistas de pouso, postos de saúde e alojamento para equipes, entre outras melhorias de ordem logística e de apoio à população local”.
Em janeiro de 2023, o governo recém-empossado declarou uma emergência sanitária e começou uma ampla operação de retirada dos garimpeiros da terra Yanomami. Porém, ao longo dos meses a operação enfrentou diversas dificuldades, grandes grupos de garimpeiros permanecem no território e o índice de mortalidade continuou alto. O presidente Lula ordenou a adoção de uma nova abordagem sobre a crise, que agora envolve a instalação de uma “casa de governo” em Boa Vista e a mobilização de mais de R$ 1 bilhão para enfrentar a crise no território Yanomami.